“SÃO GONÇALO”: O BEATO ALÉM DAS LENDAS

3 – “SÃO GONÇALO”: O BEATO ALÉM DAS LENDAS

(Sabia que Gonçalo nunca foi “santo” de fato?)

“São Gonçalo de Amaranto,

Fazei-me este pedido

Para o Anno que vier,

De vir eu com meu marido”

[jornal O CEARENSE (06/08/1871, nº 90, p. 1)]

Viola, Saúde e Paz!

Todo janeiro lendas costumam ser relembradas sobre um “santo” padroeiro dos violeiros (que tocaria viola para as prostitutas dançarem e não irem para trabalhar), além de casamenteiro, protetor dos viajantes, dos construtores de pontes e outras atribuições fantásticas. Em Portugal, grande festa em 10 de janeiro principalmente na região de Amarante, onde Gonçalo teria falecido; no Brasil, vários festejos com as Danças de São Gonçalo. Trovinhas antigas são recantadas, ganham-se curtidas nas redes, etc…   

A ligação com as violas e a curiosa constatação de que Gonçalo do Amarante na verdade nunca foi canonizado pela Igreja Católica – sendo, portanto, apenas beato e só a partir do século XVII – nos levou a pesquisar mais a respeito, num exercício da metodologia que desenvolvemos, citada no livro “A Chave do Baú” – no caso, cruzando dados históricos sobre “São Gonçalo” com os do nosso maior foco, o nome “viola”.

Á luz de verdades comprováveis, descobrimos várias curiosidades interessantes, não citadas em dezenas de publicações pesquisadas. Gonçalo, que teria vivido entre fins do século XII e início do século XIII, foi beatificado em 1561 e entrou numa “disputa por canonização” a partir de 1593 com Pedro Gonçalves ou “Pero Gonçalo Thelmo”, galego-espanhol beatificado bem antes (1254) e preferido de Filipe II de Espanha (no período de domínio de Portugal, entre 1580 e 1640). Os portugueses teriam redirecionado a ação também (ou em preferência) ao beato português, e assim nenhum dos dois veio a ser canonizado. Em 1615, o Papa teria esclarecido dúvida ao apontar que Gonçalo era dominicano e a partir daí o culto a ele passaria a predominar, com a transferência a ele de algumas atribuições de outros “santos”, como a de protetor dos “marinares” (profissionais ligados às ações marítimas), mesmo que Gonçalo só tenha tido registros de viagens por terra.

No contexto nacionalista da disputa, faria sentido também juntar o “beato preferido da concorrência” às violas – nome de cordofone popular mais usado pelos portugueses. Não foram observadas tais atribuições antes daquela época, nas muitas narrativas sobre a vida inteira de Gonçalo. Sem contar que o nome “viola” só tem registros em Portugal a partir do século XV.

Sobre ser casamenteiro, a principal relação encontrada seria que a Festa de Gonçalo foi designada para tentar coibir o paganismo ancestral das Festas das Regateiras, onde mulheres buscariam graças de casamentos e/ou muitos filhos por meio de demonstrações públicas bem despudoradas, entre elas doces e outros objetos em formato fálico (que representariam a fertilidade). A imagem de Gonçalo então teria entrado nesta “roubada”, passando a ser alvo das fiéis regateiras em atos e orações.

Convenhamos: esta história é tão divertida quanto as inventadas, não? A diferença é que é embasada, tem fundamento em registros de época…

A confusão depois só aumentaria: em 1621, o Regimento dos Tanoeiros (de Portugal) já se referia a uma “dança pelo dia de S. Gonçalo”; em 1627 teria ganho o título de “Venerável” um que viria a ser o único “santo de verdade” entre três nomes semelhantes: São Gonçalo Garcia (canonizado só em 1827); depois, em data estimada a 1690, o importante jesuíta português Antônio Vieira (1608-1697) parecia fazer uma defesa de canonização ao citar várias vezes “santo, e admiravelmente santo” em seu “Sermão de São Gonçalo” – mas curiosamente citou a possibilidade das pessoas serem “[…] santos sem aspirar a canonização” – o que sem dúvida deve ter colaborado com a confusão.

Ou seja… é compreensível o surgimento e divulgação de tantas lendas, por quem não pesquisar com bastante atenção e honestidade, né? Tinha Gonçalo santo, Gonçalo espanhol, Gonçalo português… No Brasil, registros de Festas de São Gonçalo a partir de 1718 (para Gonçalo do Amarante, na Bahia) e em 1745 (para São Gonçalo Garcia, em Pernambuco). Estas festas, depois perseguidas e proibidas, teriam muita adesão pública, com dança nas ruas e violas sendo tocadas – mas não seriam ainda as “Danças de São Gonçalo”, cujo mais remoto registro que encontramos no Brasil no anúncio do jornal “O Cearense”, destacado no início deste artigo.

Sugerir que as “Danças de São Gonçalo” seriam tradições desde os tempos dos jesuítas, só pela imaginação caipirística (que em si, só tem registros a partir do século XX) e, como sabemos, a História não é como gostaríamos ou imaginamos que tivesse sido. Checamos, entre outros, uns muito citados registros de uma dança “d’escudos a portuguesa” registrada em 1583 pelos padres Cristóvão Gouveia e Fernão Cardim, mas além de não haver citação a Gonçalo, não haveria muito sentido ligar estes relatos ao beato porque o culto a ele teria sido autorizado há muito pouco tempo – enquanto danças similares existiriam pelo menos desde a expulsão dos mouros (1492), chamadas “autos”, segundo pesquisas de Curt Lange. Danças para Gonçalo, só após o século XVII – e sobre as circunstâncias que citamos.

Um dado coerente seria a devoção por Gonçalo enquanto protetor dos viajantes, inclusive com várias cidades tendo sido batizadas com seu nome pelo Brasil – vez que registros apontam que ele teria realmente passado muitos anos viajando, tendo peregrinado até Jerusalém (por terra) e, naturalmente, também voltado de lá a Portugal. É bastante chão.

A ligação de violas às Danças de Gonçalo é importante, pode e deve ser respeitada, preservada e defendida como um tesouro cultural – mas não é necessário inventar nada: as verdadeiras histórias ajudam, inclusive, a ensinar fatos históricos à população e até, quem sabe, a aumentar o interesse por verdades comprováveis, para que nos acostumemos a não a viver com menos nem sermos enganados.  

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna Viola Brasileira em Pesquisa às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor; seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).      

 

Principais Referências:

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CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005 [1954].

 

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[original gentilmente enviado pelo autor].

 

GONÇALVES GUIMARÃES, Joaquim Antônio. A Festa de S. Gonçalo em Vila nova de Gaia: Novas achegas para uma análise do culto gonçalvino popular. Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia, v. 8, nº 53, p. 17-24. Vila Nova de Gaia, ACAG, 2001.

[original gentilmente enviado pelo autor].

 

GONÇALVES GUIMARÃES, Joaquim Antônio. A Legenda Cristoforiana na História e na Geografia. In: São Cristóvão Eça de Queiroz. Vila Nova de Gaia (Portugal): Gailivro, 2006.

 

LA BARBINAIS, Le Gentil. de. Noveau Voyage autour du Monde. Tomo III. Paris: Chez Briasson, 1728.

 

LANGE, Francisco Curt. As Danças Coletivas Públicas no período Colonial Brasileiro e as Danças das Corporações de Ofícios em Minas Gerais. Barroco 1 – Revista de Ensaio e Pesquisa, p. 15-62,. Belo Horizonte, UFMG, 1969.

 

MOSCHKOVICH Beto et al. São Gonçalo do Amarante. [art. Ind.]. Brasília: s/n, [2013].

 

OTÁVIO Valéria Rachid. A Dança de São Gonçalo: Re-leitura coreológica e História. 2004. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes UNICAMP – São Paulo, 2004.

 

[PEREIRA, Nuno Marques]. Compendio Narrativo do Peregrino da América. v. II, 6ª ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira, 1939. 

 

QUEIROZ, Luciano. As Histórias do Santo “São Gonçalo”. São Paulo, ed. do autor, 2009.

 

SANT’ANNA, Romildo. Moda caipira: dicções do cantador. Revista USP, São Paulo, n.87, p. 40-55, set./nov. 2010.

 

SANT’ANNA, Romildo. A moda é viola: ensaio do cantar caipira. 4ª ed. São Paulo: Ed. UNIMAR, 2015 [2000].

 

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TOLLENARE, Louis François; CARVALHO, Alfredo (trad.) Notas Dominicaes. Tomadas durante uma residência em Portugal e no Brasil nos anos de 1816, 1817 e 1818. Recife: Jornal do Recife, 1905.

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