VIOLA OU VIOLA? A PIONEIRA AULA-MASTER

VIOLA ou VIOLA? A pioneira aula-master

“[…] para uns é uma vihuela, para outros uma guitarra […] Para um português esta contenda não faz qualquer sentido, já que, tanto no séc. XVI como actualmente, se designa este instrumento simplesmente por viola…”

[Manuel de Morais, artigo A Viola de Mão em Portugal, 1985, p. 418] 

Viola, Saúde e Paz!

Em homenagem à primeira vez que demonstramos nossos estudos em ambiente acadêmico (no projeto Viva Música, da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, em 23 de agosto de 2023), resolvemos trazer para este Brevis Articulus um resumo, complementado, do recorte que lá apresentamos: propriamente dito, foi uma resposta à pergunta que, se já teria sido feita, ainda não teria sido respondida com atestações científicas: “por que se consolidaram na língua portuguesa dois instrumentos musicais tão diferentes – um dedilhado, outro friccionado por arco – mas ambos com o mesmo nome viola?”.

O primeiro aspecto para o qual chamamos a atenção é que, no desenvolvimento de nossa metodologia, amadurecemos um olhar múltiplo, não apenas de pura abrangência musicológica-organológica, mas que, entre outras técnicas e ciências, agregamos conceitos de História e Sociologia (chamado “contexto histórico-social”) e um significativo banco de dados de nomes de instrumentos (nas línguas pertinentes, desde o latim do século II aC.).

Esta somatória nos permite, por exemplo, ir além da atual falta de consenso mundial de estudos linguísticos e organológicos, com descobertas como reflexos atestáveis de mudanças em instrumentos musicais em situações históricas de grande impacto social, como invasões, guerras, imposição de línguas, manifestações culturais como o Trovadorismo e outros. Isso, só vimos ter sido intuído, mas não desenvolvido como o fazemos, pela antropóloga carioca Elizabeth Travassos, no artigo O destino dos artefatos musicais de origem ibérica e a modernização no Rio de Janeiro, de 2016.

A mesma somatória de visões também nos leva a tratar os nomes de instrumentos com muito mais cuidado e atenção que praticamente todos os estudos que investigamos (e não são poucos): para nós, um nome de instrumento musical tornou-se nunca aleatório – ao contrário, assim como outras características organológicas, a análise histórica do nome pode trazer informações importantíssimas, que normalmente teriam passado despercebidas pela maioria dos pesquisadores. Análise histórica que significa descobrir o mais remoto registro conhecido daquele nome, na língua original, para estimar aquele período histórico e as comoções sociais a que estaria sujeito – e seguir acompanhando pelos séculos os contextos histórico-sociais em paralelo a possíveis alterações dos nomes em outras línguas e de características musicológicas gerais. Os nomes de instrumentos já teriam sido vistos de maneira similar, mas também não de forma aprofundada e contextualizada como desenvolvemos, pelo musicólogo alemão Curt Sachs, no The History of Musical Instruments, de 1940.

Por este motivo nos chama tanto a atenção o paradoxo “viola ou viola” só na língua portuguesa, e nos atrevemos a investigar o que não teria sido talvez sequer cogitado por estudiosos muito mais experientes que nós – mas que não teriam argumentos como os que cientificamente apresentamos, embasados na metodologia desenvolvida e até hoje semanalmente confirmada.

“Metodologia científica” parece um troço chato, complexo, difícil, não? Pois é… não à toa, em nosso livro A Chave do Baú figuramos o assunto como uma “caça ao tesouro”, onde a metodologia nada mais é que a tal “chave” que abre baús…

Para chegarmos ao “tesouro”, que seria uma resposta atestável e bem explicada do paradoxo, precisamos primeiro contextualizar que “violas dedilhadas” é assunto pouco citado em estudos além da língua portuguesa e, em parte na língua espanhola, por causa das vihuelas – estas que, entretanto, caíram em desuso no século XVII. Neste ponto, precisamos lembrar que poucos teriam observado e citado que o nome “viola”, após ter aparecido no século XII em textos em latim, depois em occitano e catalão, apareceu no século XIII (ca.1240) em espanhol, no cancioneiro Libro de Apolonio, de autor desconhecido. Na verdade, neste mesmo texto teriam aparecido as variações VIHUELA, VIUELA e… VIOLA – que vários autores até citam, mas sem contextualizar que, portanto, “vihuela” e “viola” seriam equivalentes, pela somatória de línguas antecessoras e influenciadoras diretas do espanhol (e do italiano, e do português, entre outras).

Destacamos “na língua italiana” pois é nesta que, após os registros em espanhol do século XIII que acabamos de citar, segundo a cronologia que revela e atesta (e por isso é base científica nossa), é pelos italianos que “viola” teria o próximo registro, no século XIV (por Giovani Bocaccio, no Decameron, ca.1350) e seguiria sendo citada por Tinctoris, no século XV em Nápolis (De inventione et uso musicӕ, entre 1435 e 1511), e no século XVI por Giovanni Lanfranco (Scintille di musica, 1533), Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto, 1536) e Silvestro Ganasi (Regola Rubertina, 1542).  Enquanto que na língua portuguesa, só a partir do século XVI apareceriam registros de “violas” (em cartas do Rei D. Afonso V).

Atesta-se não somente que a ordem de uso do nome “violas” para cordofones partiu da Espanha, depois Itália até chegar a Portugal, mas principalmente por características apontadas nestas e outras fontes que a maioria dos estudiosos não teria percebido, por não terem em mente que desde as vihuelas, “viola” era nome comum a instrumentos dedilhados e friccionados por arco. A maioria dos estudiosos ocidentais só teriam em mente as violas friccionadas, que se tornaram famosas e muito estudadas por participarem do circuito erudito, das escolas, das orquestras.

Os registros, nas várias línguas e épocas distintas, e até desenhos apresentados em métodos são muito claros: vihuelas teriam sido de pendola (“plectro, paleta”) e de arco, segundo Juan Ruiz (Livro de Buen Amor, entre 1283 e 1350); “violas” teriam sido sine arculo (“sem arco”, ou seja, dedilhadas) e cum arculo (“com arco”), segundo o já citado Tinctoris, e seguindo citações já feitas, teriam sido ao mesmo tempo o vero lauto (“como alaúdes”), ou seja, dedilhadas, segundo Milano e da braccio (“braço”) e da gamba (“perna”), friccionadas por arco, segundo Lanfranco e Ganasi.

Isso sem contar pelo menos duas outras curiosidades que observamos em outras línguas: geige seria o nome tanto para dedilhados quanto e para friccionados, em latim e em alemão, segundo Hanz Judenkuning (Utilitis et Compendiaria Introducto, 1523) e em inventários do Rei Henrique VIII, a citação de Gitterons […] caulled Spanishe Vialles  (“chamados Vialles na Espanha”), onde Gitterons aponta para “guitarras”, instrumentos dedilhados. Esta citação faz parte de fontes levantadas pelo grande musicólogo inglês Francis Galpin (Old English Instruments, 1911), que entretanto, como tantos outros, não teria considerado existência de violas dedilhadas, apontando equivocadamente aquelas vialles como friccionadas por arco.

Há também evidências de que o uso de arcos em território europeu só teria registros a partir do século X, em instrumentos que inicialmente teriam sido apenas dedilhados e que por grande período continuariam a ser tocados de ambas as maneiras, sem que houvesse motivo para serem usados nomes diferentes. Estas evidências foram apontadas por estudiosos sérios e muito embasados, de várias regiões da Europa e em estudos publicados desde o século XIX – ou seja, a bivalência teria registros bem antigos e continuaria em Portugal e no Brasil até os dias atuais, portanto, estudiosos já poderiam ter percebido, se não tivessem o foco distorcido por imaginarem que só teriam existido violas de arco.

Bastam, entretanto, os apontamentos que fizemos, de entre os séculos XIII e XVI, pela ordem cronológica, em espanhol, depois italiano e depois em português, para atestar que é por isso que temos hoje o paradoxo tema de nossa aula e deste Brevis Articulus – com o agravante de atestação que a partir do século XVII, com a queda das vihuelas, cordofones cinturados com braço passaram a ser chamados de guitarra na espanha, alcançando fama suficiente para serem seguidos por nomes muito similares como guitarre (francês), Guitare (alemão), Guitar (inglês). Na Itália, as violas dedilhadas passaram a ser chamadas chitarras e só em Portugal continuou o uso de um mesmo nome “viola” para dedilhadas e friccionadas por arco. Contextualizamos que este peculiar comportamento português tem explicações e atestações que apontam um peculiar nacionalismo destes – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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