À BEIRA DA FOGUEIRA, MAS AINDA NA CAVERNA
À BEIRA DA FOGUEIRA, MAS AINDA NA CAVERNA
“A educação seria […] a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão [o olho], não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe meios para isso.”
[Platão, em Politeia ou “A República”, ca. 350 aC.].
Viola, Saúde e Paz!
Antes de qualquer coisa, se considerar como velho e ultrapassado o Mito da Caverna de Arístocles (vulgo “Platão”), talvez deva repensar: a alegoria atravessou os séculos e é tanto estudada seriamente até hoje, por vários ramos da Ciência, quanto influencia obras de ficção como o livro Admirável Mundo Novo (de Aldous Huxley) e, no cinema hollywoodiano, de filmes como Matrix, Show de Truman e Avatar.
Já se for daqueles que desprezam livros e filmes, cuidado: pode ser que esteja ainda algemado no fundo de uma caverna, ou esteja no máximo desfrutando do conforto da beira de uma fogueira, mas sem nunca ter conhecido o sol – a maior e mais verdadeira fonte de luz e calor… Ficção nem sempre é apenas divertimento.
O Mito da Caverna foi relatado no livro VII da obra hoje mais conhecida, nas línguas latinas, como A República. É mais citado como relativo à filosofia geral, ou à filosofia política. À filosofia geral, pode-se entender que sim, porém no mais amplo sentido possível, já que à época de Platão não existia ainda o significado que hoje damos à scientia (latim para “ciência, conhecimento”), portanto, φιλοσοφία (“filosofia”, em grego) seria todas as Ciências, seria philo (“amor” ou “amizade”) à sophia (“conhecimento, sabedoria”).
Já sobre as interpretações políticas, “república” (termo hoje entendido como um sistema de governo), teria surgido só cerca de 400 anos depois (!), a partir do romano Cícero, um admirador de Platão que escreveu o texto Da Republica, seguido e citado em seu outro texto De Legibus – ambos sobre política romana dos primeiros séculos da Era Cristã (no caso, a república romana). A influência em Cícero era tão latente que, assim como Platão, escrevia em forma de diálogos, como foi o caso destes dois textos citados. Platão, por sua vez, escrevia diálogos pela principal defesa de seu mentor, Sócrates: dialogar como meio para evolução intelectual. E colocou Sócrates, figurativamente (pois já teria sido assassinado) como o personagem principal do texto a que nos referimos, mas seria só a voz figurativa das ideias de Platão, que notadamente teria ido além do que desenvolveu seu mentor.
O título original de A República é Πολιτεία (“Politeía”, em grego), e embora o radical polis seja, não de todo equivocadamente, relacionado a “cidade”, antes e acima disso significaria “vários, diversos”. Sim, a cidade teria sido o núcleo político-econômico grego, mas também significava “coletivo, grupo de pessoas” (no caso, seria o principal coletivo, o mais importante polis). Politeía é sobre a cidade, sobre como poderia ou deveria ser uma “cidade ideal” à luz do Conhecimento mais amplo. E também não nos foge (nem a outros estudiosos, mas poucos), a percepção que aquela “cidade” fictícia também poderia ser um paralelo com o indivíduo, com a governança que cada um deve ter de sua própria vida…
Complicou um pouco? Pois é… Trata-se de um dos textos mais discutidos em todos os tempos, e há poucos consensos a respeito. Humildemente (ou com grande dose de coragem, talvez?) ousamos afirmar que não teria sido escrito para deixar tudo claro a todos que o lessem. Sim, que Platão teria deixado claro, logo no início, que falava da cidade, física, afastando a possibilidade de estar a usar metáforas neste particular… porém… lembra que citamos que o texto todo (10 livros!) seria narrado por alguém que já teria morrido, à época? Isso é metafórico… Além disso, também já citamos que aqui vamos falar sobre um dos vários “mitos” utilizados por Platão… Entendeu? O cabra falou de coisas sérias, palpáveis, mas sem assumir diretamente a autoria. Criticou a consolidada visão poética da época, que segundo ele poderia às vezes ser muito ilusória, imitativa – mas usou mitos, alegorias (verdadeiras parábolas) para exemplificar seus raciocínios…
Nossa experiência como escritor / compositor nos alerta que “aí tem” (ou “tinha”). Algo teria por detrás das palavras escritas… E alguns analistas, pelos tempos, embora poucos, também teriam tido a mesma impressão. A nós, fica claro na leitura completa do texto. Neste caso, em português, mas confiamos em traduções e análises sérias a partir do original em grego, das quais escolhemos as de Maria Helena da Rocha Pereira, de 1949. Ela teria consultado um respeitável conjunto de fontes, e acrescentou generosas notas de rodapé, inclusive com termos originais e análises das opções de tradução. Naturalmente, conferimos também algumas outras traduções e citações em inglês, espanhol e francês, além de checar que a portuguesa Maria Pereira é muito respeitada pelo que publicou, além de apontar ser pesquisadora bem metódica. Recomendamos a leitura.
A República, podemos dizer, é na verdade sobre justiça, sobre buscar a mais alta expressão do Bem, como citava Platão (“bem” que seria a somatória das maiores virtudes, o bem viver, o bem entender a Humanidade e a Vida). Entendemos que abrangeria a busca por praticamente todos os tipos de Conhecimento. Não teria sido por acaso que, a partir da crítica ao modelo de educação da época (baseado em “ginástica” e “música”), estas duas ciências e várias formas e noções de matemática, sociologia e até astrologia foram listadas e analisadas pormenorizadamente no texto. E a conclusão foi que os mais aptos a governar seriam os… “filósofos” – os “amigos de todos os Conhecimentos”!
Tudo, naturalmente, conforme os entendimentos daquela época, na Grécia – e tudo também num contexto de apontar “a melhor forma de governança de uma cidade ideal” (nesta última frase, entendam que estamos a piscar um olho para quem nos lê, coisa típica de mineiro). Sim: desconfiamos até de nós mesmos…
Ora, nos permita o atrevimento de irmos além do que a maioria aponta: o tempo todo é apontado um paralelo entre como as pessoas e como deve ser a cidade ideal – portanto, ambos os assuntos são ao mesmo tempo dissecados, explicados, contextualizados – mas o tal modelo de governança de Platão sempre teria sido bem diferente do praticado, por exemplo, na Monarquia e na Democracia: Platão discorreu sobre a formação de uma parte da sociedade, selecionada até com algum eugenismo e preparada desde cedo com educação (formação científica, “filosófica”) mais ampla que a usual na época. Deste grupo de pessoas especialmente selecionadas e preparadas é que deveriam ser escolhidos os governantes… Não temos certeza em outras culturas, mas no Ocidente nos parece que este modelo nunca teria sido colocado em prática! Utopia pura, portanto, enquanto reformulação social e política… Mas e quanto à reformulação dos indivíduos, será que foi útil?
Talvez considerando o laço consanguíneo ou alegadas iluminações Divinas como suficientes para seleção, vê-se pela História, em muitos tipos de monarquias e impérios, herdeiros sendo doutrinados num conjunto de Ciências, conforme proposto por Platão… Também, ainda hoje há um formato de ocidental de preparação educacional que, na totalidade, também seria similar em tempo previsto e disciplinas sugeridas por Platão, inclusive a preparação física (infelizmente, só o ensino curricular de música teria caído de uso em algumas nações).
É possível que o aprendizado de música possa levar o povo a pensar demais, como vemos aqui agora: um músico a pensar além das caixinhas! E isso talvez não seja interessante a alguns governantes… A música era importante não apenas até aquela época, quando era a “arte das Musas”, onde as palavras (poesias) seriam indissociáveis dos sons e, junto com a ginástica, seriam a base principal da formação das pessoas das classes mais altas. Platão, que sem dúvida considerava a música muito importante, segundo vários de seus textos, em A República ainda teria proposto o alargamento de conceito, com análises pormenorizadas sobre “palavras, harmonias e ritmos”. As palavras, quando muito ilusórias, seriam alvo de crítica por Platão, mas, no entendimento moderno, refletiriam as melodias – e daí temos o conceito muito respeitado até os dias atuais, que é da música ser entendida como uma somatória de “melodia, harmonia e ritmo” (estes três conceitos formadores básicos estando hoje com contextos bem mais modernos que na época).
Como curiosidade, e para não dizer que desta vez não falamos de flores (ops, de flores, não, de instrumentos!), Platão teria preferência por instrumentos “com menos cordas e harmonias” que harpas, sugerindo praticamente apenas o uso de λίρες (“liras”), σαντούρι (“citaras”) e instrumentos de sopro como αυλός (“aulos”, tipo de oboés) e συριγξ (“siringe”, tipo de flautas de Pan).
Naturalmente, contextualizações específicas de política (como as de Cícero), sociológicas (como as de Max e Engels, já no século XIX), entre outras, não seriam completamente equivocadas: a visão de Platão abrangeria estes particulares também – só não entendemos que fosse exclusiva sobre nenhum segmento, mas a todos, em conjunto.
O desenvolvimento apresentado por Platão nos parece muito claro sobre a ampliação do Conhecimento ao máximo possível, só que esse nível de complexidade não teria sido totalmente entendido, causando vários entendimentos superficiais (isso, na nossa humilde-atrevida visão). Neste caso, há muitos além de nós que também entendem que até poder-se-ia analisar pormenores, porém sempre com o máximo possível de observação aos chamados “fenômenos circundantes” de cada objeto de estudo.
Se Platão teria tido coragem de questionar o sistema na época dele, mesmo após Sócrates ter sido assassinado pelas mesmas razões, por que nós não teríamos coragem de questionar até Platão, e os entendimentos que terceiros fizeram sobre o que ele disse? Nos baseamos que vários nos parecem ser os exemplos no texto, como o Sol como fonte maior de luz, calor e conhecimentos a serem estudados, citado em vários dos “livros” (ou “capítulos”, em nossa leitura moderna) – além da citação no importante conceito Dialético, a maior das filosofias desenvolvidas por Platão, onde ele teria apontado ser necessário elevar aos poucos os olhos “do lodo bárbaro” para “as alturas”.
Falando em altura, a esta altura precisamos pedir desculpas por alongarmos a análise sobre o texto todo, e não apenas ao Mito da Caverna, que a princípio seria nosso tema aqui. Já que nos aprofundamos, aplicando inclusive nossas metodologias na análise histórica dos termos (do grego, passando pelo latim até chegar ao português) e ainda inserimos pitadas de nossas experiências com textos e música, não podemos deixar de apontar alguns detalhes que pouco vimos serem abordados antes, principalmente nos resumos encontrados pela internet, até em preparatórios para vestibulares (sim, o Mito da Caverna costuma cair nas provas!).
Para quem já leu ou vai ler mais sobre o tal Mito, avisamos que estamos a inserir algumas percepções que não observamos muito por aí, mas que entendemos estariam de acordo com nossa checagem atenta ao texto completo onde o Mito está inserido.
Para começar, Platão (usando a fictícia boca de Sócrates), inicia o livro VII deixando bem claro que a seguir falariam sobre a educação formal e a falta dela. Descreveu homens que seriam algemados “de pernas e pescoços” desde a infância, no fundo de uma caverna. Haveria uma fogueira, e entre ela e os algemados, um muro. Entre a fogueira e o muro, pessoas desfilariam carregando sobre as cabeças “toda espécie de objetos”, mas são explicitados apenas “estatuetas de homens e de animais, feitas de pedra e de madeira”. As sombras destes objetos (e só deles) seriam projetadas pela luz da fogueira no fundo da caverna, à frente dos algemados. Os carregadores, alguns falariam algumas coisas, conversariam, outros não – e estas vozes seriam ouvidas pelos algemados (achamos interessante que Platão considerou até o eco, comum mesmo em cavernas) …
Pausa para uma risada que demos quando estávamos a ler… Glaucon, que seria um dos irmãos de Platão e estaria na posição de dialogar diretamente com Sócrates neste trecho, a esta altura deu uma “tirada” sensacional: “Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses que tu falas…” – ao que Sócrates, bem menos moleque que nós, só teria respondido sério: “Semelhantes a nós!” (dando a conotação de que, a princípio, quando novos, todos seríamos como os algemados).
Então, “Sócrates via Platão” (ou vice-versa) seguiu descrevendo que, portanto, os algemados só conheceriam sombras, e suas vozes – não seres de verdade (esta seria a condição de quem estaria algemado, a vida inteira, na semiescuridão da ignorância, da falta de Conhecimento).
Seguindo na narrativa, foi proposto que um alguém fosse solto, e obrigado a se endireitar, andar e olhar para as figuras e para a fogueira: este ficaria aparvalhado, os olhos doeriam por causa da luz da fogueira e, olhando para as estatuetas, não as reconheceria por serem, então, mais nítidas que as sombras que conhecia. Este liberto custaria a entender a “farsa” (diríamos nós). Após, se então o arrastassem para fora da caverna, onde a luz do sol seria ainda mais desagradável à visão dele, levaria mais tempo que da primeira vez até poder vislumbrar tudo, o mundo real…
[Achamos estranho que a primeira reação não fosse brigar com os que os mantinham presos e nem procurar alguma ferramenta para ir quebrar os grilhões dos companheiros, mas… a alegoria não é nossa, então, que siga o “estranho quadro, de estranhas pessoas”].
Platão deu ênfase ao que aconteceria com a visão, com os olhos daquele “selecionado” que teria tido contato com o mundo exterior à condição de algemado: continuando a narrativa, se aquele voltasse ao fundo da caverna, novamente sua visão seria prejudicada, pela readaptação após ter visto a luz do sol. Com tal visão “cheia de trevas”, se novamente fosse julgar ou descrever as sombras, como fazia antes, causaria risos e seus colegas considerariam que não valeria a pena sair da caverna, pois isso estragaria suas vistas (como teria estragado a vista do selecionado). Se alguém tentasse soltá-los e arrastá-los para fora também, se pudessem, matariam quem tentasse demovê-los (de suas “visões tradicionais” sobre o que era verdade ou não, diríamos, mas ninguém nos está a perguntar nada…).
[Podemos, entretanto, provar que, figurativamente, o mesmo teria acontecido pelos séculos até hoje, basta que se perceba que é o que normalmente acontece com os que não descobrem a “luz do sol”, que é o Conhecimento, e se baseiam nas “sombras do fundo da caverna”, que é a falta de Conhecimento].
A conclusão de Platão é muito interessante, posto que exorta aos que tiverem contato com a verdadeira luz que sejam inteligentes para entender a complexidade do processo todo, inclusive as fases necessárias para adaptação dos olhos na “passagem da luz à sombra e da sombra à luz” – isso, se quiserem fazer o Bem, ajudar, educar os outros. E, conforme destacamos na abertura, entender que a educação (o Conhecimento, a inteligência) não é uma dádiva que introduzimos a quem não a tem, mas que apenas se auxilia a quem já teria olhos a olhar de forma para os lugares certos e forma mais adequada.
É belo, coerente, verdadeiro e muito útil o tal Mito da Caverna, afinal.
Acabamos, então? Ainda não. Pedimos licença para ir um pouco além, mas na mesma alegoria (dificilmente pesquisamos alguma coisa sem acrescentar reflexões e cruzamentos com mais dados). Acontece que à época de Platão ainda não haveria, entre outras coisas, a ganância institucionalizada que tomou conta de alguns ocidentais a partir da Revolução Industrial (consolidada entre os séculos XVIII e XIX). A visão de produção e comercialização em série, o chamado Capitalismo, sem dúvida mudou o mundo – e nós, atrevidos, entendemos que por isso um adendo é possível na alegoria original…
Nossa colaboração na extensão da reflexão é que, aproveitando a alegoria já existente de uma “fogueira”, na caverna, diríamos que de uns tempos para cá motivações políticas, ególatras e/ou financeiras nos trariam uma situação a mais: as algemas até poderiam ter sido retiradas, mas muitos prisioneiros são como se tivessem sido levados apenas até a beira da fogueira. Ali, no quentinho, teria muito mais luz que no antigo fundo da caverna, e já não teriam os desfiles: então, até ali já estaria bem melhor… “Pra que buscar o sol? Luz demais, besteira isso querer demais. Temos que ser mais humildes!”.
Isso porque, hoje em dia, as pessoas já saberiam ler algumas coisas, superficialmente, e até escrever “malemal” o nome – não está bom? E eles, agora tão mais sábios que antes, e consultando-se entre si, pela sabedoria popular concordam que já está ótimo! Já dá pra assinar cédula de eleição, e o contracheque da “merreca” que a eles fosse destinada. Já pensou? Quem antes só conheceria sombras e ecos confusos, agora trabalha e até ganha salário! E sabe até ler e escrever? Tá bom demais! Que não venham com essa de querer conhecer um tal de “sol”, que só serve para atrapalhar as vistas, agora que já estão vendo muito melhor que antes…
É isso que nós vemos hoje em dia, também quanto aos estudos sobre instrumentos musicais (que interrelacionamos a várias outras ciências) – mas aí já são outras prosas…
Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando…
(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).