VIOLA OU VIOLA?

“[…] nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido quando encarado isoladamente, fora dos seus fenômenos circundantes.”

[princípios filosóficos atribuídos ao filósofo grego Platão (ca.428-328 aC.), base da Metodologia Dialética, hoje aplicado em vários tipos de ciências nos chamados Contextos Histórico-Sociais]. 

 

Viola, Saúde e Paz!

Brasileiros e portugueses já estariam acostumados a conviver com dois tipos de instrumentos diferentes chamados de “viola”: uns dedilhados (parecidos com guitarras e violões) e outros, friccionados ou “de arco” (tocados nas orquestras, ao lado de violinos, violoncellos, contrabaixos). Mesmo assim é sempre bom deixar claro sobre qual “viola” estamos a falar, “dedilhada” ou “friccionada”. Aqui falamos mais das dedilhadas, mas não deixamos de estudar também as friccionadas, pois é um importante “fenômeno circundante” ao assunto – mas a maioria dos estudos costumam separar as “duas violas diferentes”. Entendemos que é pela amplitude maior de visão que conseguimos descobrir alguns “tesouros perdidos”.

Há vários modelos existentes de violas dedilhadas, tanto lá quanto cá no Oceano Atlântico: quem ainda não conhecer todos pode baixar gratuitamente um PDF que organizamos, que está disponível no Grupo Facebook Viola Brasileira em Pesquisa: todas as violas brasileiras e portuguesas consolidadas atualmente, com número de cordas, afinações mais utilizadas, desenhos, fontes para conferência, etc.

No livro “A Chave do Baú” há desenvolvimentos que fazemos já há algum tempo sobre as mais prováveis razões de existirem hoje dois instrumentos diferentes com mesmo nome – e porque isso acontece só em Portugal e no Brasil (no resto do mundo, “viola” é o mais utilizado para friccionados, enquanto que no Mundo Ocidental a maioria dos dedilhados semelhantes são chamados de nomes similares a “guitarra”).

Não é exatamente simples de demonstrar e talvez por também isso nunca timos visto ninguém fazer. Mas não queremos “inventar mais uma teoria”, pois de lendas o mundo da viola já está cheio… Por isso, botamos a cuca para funcionar e elaboramos uma metodologia (um método científico de estudo) que pudesse dar segurança nas afirmações, aplicado em um conjunto de dados e fontes bem grande. Assim chegamos à Metodologia Dialética (que viria do século IV aC., como destacamos no início), mas que tem traços de utilização até hoje, conforme as fontes que estudamos; e uma coleção de registros que ultrapassa em várias vezes as que pesquisamos, inclusive em número de línguas, teorias, tipos de ciências, etc. Para nós, quanto mais fenômenos circundantes, melhor. A “chave do baú” nada mais é do que esta metodologia, descrita e até ensinada na prática em nosso livro – só que narrada em formato artístico, lúdico, como uma “caça ao tesouro”. Porque se não for divertido, não faz sentido para um artista, concorda?

Mergulhamos fundo: para ter segurança era preciso buscar desde as mais prováveis origens das violas (que fazem paralelo com a História dos cordofones ocidentais). Se fôssemos pensar apenas nas violas dedilhadas, as portuguesas apareceriam a partir do século XV, em três registros – onde embora não haja descrições sobre a forma de tocar, entende-se que pudessem ser dedilhadas pela ligação com o canto, em praças públicas e igrejas (teriam sido, inclusive, perseguidas e proibidas – os três registros falam disso). O que outros pesquisadores não apontam ter feito, talvez por focarem apenas nas dedilhadas (que é normal de fazer, como comentamos) é que violas já apareceriam também, no mesmo século XV, em publicação feita em latim em Nápoles (Itália), porém teriam sido tanto dedilhadas quanto friccionadas, segundo o respeitado musicólogo belga Johannes Tinctoris (ca.1435-1511). Outra análise que juntamos (que parece também ter sido desprezada pela maioria dos estudiosos) é a similaridade do nome VIOLA com VIHUELA – nome espanhol que teria registro nos cancioneiros trovadorescos desde o século XIII e que no século XVI atingiria o auge também, como dedilhados, assim como em Portugal. Esta similaridade, por sua vez, formos buscar lá no século XII, na origem de uma profusão de nomes similares surgidos em latim, occitano, catalão, francês (línguas que influenciaram o espanhol e o português). Talvez os estudiosos considerem VIHUELAS “instrumentos diferentes” não só pelo nome mas também por haver registros de terem tido 6 ordens de cordas, como os alaúdes árabes e os estudiosos considerassem as VIOLAS dedilhadas portuguesas apenas com cinco ordens, como as guitarras da época – mas neste sentido, observamos que os registros do séc. XV em Portugal não apontam número de cordas nem maneira de tocar. É certo que não podemos olhar o passado baseados em dados mais modernos.

Dois outros registros, não citados em estudos sobre nenhum dos tipos de violas, nos trouxeram mais luz ainda: um manuscrito escrito em latim, porém identificado com título em espanhol – “Viaje literario à las Iglesias de España”, que por sua vez observamos na “Encyclopédie de La Musique”, em francês – consta que em 1496 o padre espanhol Joaquin Villanueva teria conhecido um mouro por nome de Fulan que teria sido grande instrumentista em “[…] cytharam, violam et his similia instrumenta” (ou seja, “cithara, VIOLA e instrumentos similares”); e outro registro, já no século XVI, onde desde o título de seu método o musicólogo italiano Francesco Milano apontou: “Intavolatura de Viola o vero Lauto” (que traduzimos como “Tablatura de Viola ou [na verdade] Alaúde”). Neste último caso, com um pouco de matemática básica, conclui-se: se para Milano a VIOLA (dedilhada) era como o alaúde e para os espanhóis a VIHUELA também era similar aos alaúdes em número de cordas e afinação, então…  

Ora… (e ainda com um pouco de matemática bem básica): a soma dos registros já citados (de Tinctoris, dos portugueses, de Villanueva e Milano) com outros registros apontados como os mais remotos por estudos de violas de arco como os de Giovani Lanfranco (em 1533) e Silvestro Ganasi (em 1542), mais os diversos métodos de vihuelas dedilhadas publicados no século XVI e, por fim, o método “El Melopeo y Maestro”, publicado por Domenico Cerone já em 1613 (onde ainda discorre que VIHUELAS seriam tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco) nos dão a segurança de perceber que entre os séculos XV e XVI “violas” ou “vihuelas” seriam tocadas das duas formas, tanto na Espanha, quanto na Itália quanto em Portugal – e que viria dessa época e destas localidades a origem da atual bivalência de nome (apontando que, de todas, as vihuelas espanholas seriam as mais antigas).

Já o fato desta bivalência ter sobrevivido apenas na língua portuguesa, tem a ver com o peculiar nacionalismo português, que também identificamos por dezenas de registros… mas aí já é outra prosa…      

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna Viola Brasileira em Pesquisa às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

PRINCIPAIS FONTES:    

AMAT, Joan Carles. Guitarra española y vandola, de cinco órdenes y de quatro, la qual enseña a templar y tañer rasgado todos los puntos naturales y B mollados, com estilo maravilhoso. Valência: Augustin Laborda, [1596].

BERMUDO, Juan. Declaracion de los Instrumentos Musicales. Madrid, s/n, 1555.

BURNEY, Charles. A General History of Music. v. 2. London: Paternoster-Row, 1782.

CERONE, Domenico Pietro. El Melopeo y Maestro: Tractado de Musica Theorica y Pratica. Napoli: Gargano & Nucci, 1613.

ENGEL, Carl. Researches into the Early History of the Violin Family. London: Novello, Ewer & Co., 1883.

GALPIN, Francis W. Old English Instruments. London: Methuen, [1911].

GANASI, Silvestro. Regola Rubertina. Venezia: s/n, 1542.

GRIFFITHS, John. Las vihuelas en la época de Isabel la Católica. Cuadernos de música Iberoamericana, Madri, v.20, p. 7-36, jul./dec. 2010.

GUNN, John. The Theory and Practice of fingering the Violoncello. Reino Unido: ed. Do author, 1789.

LANFRANCO, Giovani. Scintille di musica. Brescia: Ludovido Britanico, 1533.

LAVIGNAC Albert. Encyclopedie de la Musique et Dictionnaire du Conservatoire. v.6 [Deuxième partie: Technique, Esthétique, Pédagogie; Tome I: Tendances de la musique, Technique générale]. Paris: Librairie Delagrave, 1925

MARTINEZ, Maria do Rosario Alvarez.  Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos. 1981. Tesis (PhD Art History) – Faculdade de Geografia e História, Universidad Complutense de Madrid. 1981.

MILANO, Francesco. Intavolatura de Viola o vero Lauto. Napoli: s/n, 1536

MORAIS, Manuel. A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789). Nassare Revista Aragonesa de Musicología XXII, Zaragoza, v1, nº1, p. 393-492, jan./dec. 1985.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 [1964].

RIBEIRO, Manoel da Paixão. Nova Arte de Viola. Universidade de Coimbra:1789.

ROCHA, João Leite Pita da. Liçam Instrumental da Viola Portuguesa. Lisboa: Oficina de Francisco Silva, 1752.

TINTORIS, Johanes. De inventione et uso musicae. [1486].

WEBER, Francis J. A Popular History of Music from the Earliest Times. London: Simpkin, Marshall, Hamilton, Kent & Co., 1891.

 

.

 

COMPARTILHE
Facebook
Twitter
WhatsApp

LIVRO A CHAVE DO BAÚ

ADQUIRA AGORA

ZAP (31) 99952-1197

JOÃO ARAUJO

Artigos Anteriores

COMO EUROPEUS VEEM AS VIOLAS

COMO EUROPEUS VEEM AS VIOLAS I have chosen this fiddle among the many, because it is a good...

O VIOLÃO: COMO E PORQUE SURGIU

O VIOLÃO: como e porque surgiu   “ Recebendo de Espanha o violão, como a viola vulgarizado pelos...

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS   Quamobrem nec organa aut musicus canendi ritus, missis aut officiis suis...

A HISTÓRIA DAS VIOLAS EM QUATRO PERÍODOS

A HISTÓRIA DAS VIOLAS EM QUATRO PERÍODOS “ chegamos à conclusão de que a guitarra italiana, guitarra...

QUANTO MAIS COMPADRES, MAIS VERDADE?

QUANTO MAIS COMPADRES, MAIS VERDADE? Que responderá a isto o Caipora* Semanario, e a servil recova...

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO?

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO? Viola, Saúde e Paz! Entre as ainda não consensuais considerações da...

COERÊNCIAS HISTÓRICAS EM INSTRUMENTOS MUSICAIS

Coerências históricas em instrumentos musicais “ instrumentos musicais são artefatos mediadores de...

O SEGREDO POR TRÁS DA CHAVE DO BAÚ

O Segredo por trás da Chave do Baú Viola, Saúde e Paz! Por acaso conhece o nome onomatorganologia?...

EXCEÇÕES QUE ATESTAM A REGRA

EXCEÇÕES QUE ATESTAM A REGRA Viola, Saúde e Paz! Temos sempre desenvolvido por aqui nos Brevis...