CORNÉLIO PIRES e a MODA-DE-VIOLA
“[…] A pretesto [sic] de narrar casos e mentiras, registro o linguajar do roceiro, expendo considerações ligeiras sobre as necessidades dos nossos caipiras e procuro dar uma pallida ideia da nossa gente… ”.
(Cornélio Pires, As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, 1924).
Viola, Saúde e Paz!
Para o livro “A Chave do Baú”, apesar das centenas de textos que existem sobre o caipirismo, um dos vários “tesouros perdidos” que descobrimos é que, entre tantas ideias e ações inéditas para sua época, Cornélio Pires (1884-1958) pode ter tido ainda outra grande ideia, que nunca tínhamos visto ninguém falar a respeito. Não sabemos se teria sido intencional ou não, mas sabemos que o empresário era muito inteligente, visionário e atuante por mais de 35 anos, certo? Não admira que suas ideias fossem muito seguidas – e as vendas de livros, discos e outras coisas comprovam sua fama.
Pois ao que percebemos – por pesquisar centenas de registros sobre a viola – parece que Cornélio teria juntado dois termos (dois nomes) usados como genéricos pelo menos desde o século XVIII em Portugal: “moda” e “viola”. Ambos eram genéricos, “coletivos” – quer dizer, poderiam ter vários significados: “viola”, para os portugueses, era o nome mais usado para qualquer tipo de cordofone dedilhado portátil e “moda” era (segundo o dicionário mais famoso, o de Bluteau) qualquer tipo de música tocada pelas “violas”… Isso também é uma curiosidade, que nos ajuda a entender a maneira de pensar dos portugueses daquela época, remetendo às verdadeiras origens das “violas” (as deles e também as nossas) – mas isso podemos contar outro dia, por aqui…
Se Cornélio não “criou”, pelo menos “divulgou muito enfaticamente” um novo nome: “moda-de-viola” (técnica que consiste da execução dobrada de melodias em duetos, normalmente terçados, por vozes e viola). A técnica já existiria na verdade há séculos, mas o nome atual, consolidado, entendemos que se deve ao inventor do caipirismo. Não observamos este termo antes do uso por Cornélio nas décadas de 1920-1930 (o mais remoto registro que encontramos foi da própria voz dele, na famosa gravação de Jorginho do Sertão, facilmente encontrada na internet). Mesmo que tenha sido usado antes, este nome, é indiscutível o aumento de referências encontradas após os investimentos do empresário paulista – referências que atestamos em centenas de publicações, como os principais jornais da época por grande parte do Brasil. Estes jornais, inclusive, estão disponíveis para quem quiser ler, pela internet, no site da Biblioteca Nacional (sorte nossa, os desta geração).
Assim, “moda-de-viola” curiosamente se tornaria, por sua vez, um novo “genérico popular” (como acontecera aos dois termos originais) que ainda é utilizado hoje, após mais de um século – infelizmente, utilizado como genérico pela falta de conhecimento de muitas pessoas, que não se preocupam com os usos mais corretos e chamam tudo de “moda de viola”, ou, ainda, de “moda”… O povo gosta de agir assim e não tem muito hábito de leitura, a gente entende… Aliás, escrevemos sempre e trazemos informações comprováveis por isso, para ter leituras boas à disposição. O que interessa agora, porém, é que é um fato: Cornélio teria tornado popular o nome “moda-de-viola” – mas não a técnica de tocar daquela forma: ele só teria, inteligentemente, “dado nome para a criança”.
Reflexos da dedicação de Pires quanto às modas-de-viola (e o uso deste nome como genérico) podem ser observados, por exemplo: na década de 1950, Maynard Araújo teria afirmado “[…] não há moda sem viola”; na década de 1960, Biaggio Baccarin, diretor da Gravadora Chantecler de 1961 a 1973, teria afirmado “[…] no início, nos selos dos discos tinham que constar as palavras ‘moda-de-viola’ senão não vendia” – declaração que teria sido feita ao Dr. Roberto Corrêa; e em 1966, Geraldo Vandré teria argumentado sobre a criação, em parceria com Théo de Barros, da música Disparada “com a ideologia da moda-de-viola”, segundo matéria da revista O Cruzeiro, de 12 de novembro daquele ano.
Como se vê, é possível “contar histórias sem ferir a História”, diferente dos “causos e mentiras” de Cornélio. E são histórias interessantes também. O que talvez admire é que ninguém tenha percebido isso antes – mas nós entendemos que a diferença está na metodologia científica que desenvolvemos. Por “metodologia” ser um nome técnico e “chato”, fantasiamos como “A Chave do Baú” e as leituras, como “caças aos tesouros” – mas veja que bacana: nem estas fantasias são mentiras: realmente, para quem mergulha no assunto, a metodologia pode se tornar uma chave para abrir vários baús e as leituras realmente podem revelar tesouros como este e vários outros (no livro e mais ainda, na monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil”, este resumo foi mais detalhado).
E vamos proseando…
(João Araújo escreve na coluna Viola Brasileira em Pesquisa às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).
PRINCIPAIS FONTES (além das já apontadas no texto):
ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. Monografia (Prêmio Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.
BLUTEAU, Rafael. Vocabulario Portuguez, e Latino. v.8. Coimbra: Collegio das Artes da Cia de Jesu, 1720.
ARAÚJO, Alceu Maynard de. A Viola Cabocla [compilação de artigos]. Revista Sertaneja, São Paulo, v. 4, 5, 6, 7, 8, 9, 13 e 14 – de jul. 1958/maio 1959. São Paulo: [internet], 1964.
CORRÊA, Roberto. Viola Caipira: das práticas populares à escritura da arte. 2014. Tese (Doutorado em Musicologia) – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2014.