O Curioso Caso da Violeta

 

[…] Viola propter vim odoris nomen accepit. Huius genera sunt tria: purpureum, album, melinum.

“A Viola recebe este nome por causa de seu cheiro. Existem três tipos [cores]: roxa, branca e [cor de] mel.”

(São Isidoro de Sevilha, entre 560 e 636).

Viola, Saúde e Paz!

Por buscarmos as verdadeiras raízes das violas – onde entendemos que “raiz” não deve ser algo raso, pois quanto mais antiga uma planta, mais profundas suas raízes – mergulhamos no universo dos registros escritos, não tão investigados a fundo pelos musicólogos, quando na verdade não apenas fomos apenas até as raízes do uso do nome VIOLA, mas bem mais fundo, à procura das “raízes das raízes” (as origens) delas.

Esta procura, assim como a característica do método que desenvolvemos (“A Chave do Baú”, título do nosso livro) nos levou a “alargar” bastante o universo pesquisado, abrangendo outros tipos de ciências, diversas línguas além do português e outros instrumentos historicamente relacionados – principalmente a “outra viola”, a friccionada por arco, pela óbvia ligação pelo nome. Se pensar bem, faz sentido: são raras as “raízes” que apenas se aprofundam: a maioria delas também se abre como uma teia pela terra, a procura de alimento e sustentação. Como costumamos brincar: “nós é da cidade, mas num é besta não!”.

Sim: partimos dos estudos sobre as violas dedilhadas, mas os aprofundamentos serviram para colocar à prova o método de pesquisa (que se provou muito eficaz), além de ajudar a entender como não só as violas, mas todos os cordofones se comportam pelos séculos, de onde descobrimos padrões surpreendentes. E, afinal, para quem está a procurar tesouros, “quanto mais, melhor”, não é mesmo?

O mais antigo registro que encontramos é o destacado no início deste artigo, que teria sido apontado no século VI num estudo etimológico de um importante religioso (tanto que chegou a ser canonizado pela Igreja); porém, àquela época, “viola” (em latim) era apenas o nome de uma flor – só se conhecem registros de cordofones dedilhados naquela época, chamados harpa, lira, citara, chelys/testudo e similares – ou fides e seu diminutivo fidicula, em latim, em alusão às “cordas”.

Já bem mais tarde surgiram lendas, não se sabe de onde (como é bastante comum nas lendas), de que o violino seria chamado de “violeta” por que seria delicado como uma flor… Também como é comum nas lendas, faz sentido e é uma história “agradável de contar” – sobretudo para quem quer explicações rápidas e fáceis. A realidade nem sempre é tão simples, mas pode ser interessante também, conforme temos visto. E pensamos que uma verdade, mesmo estimada, deveria valer muito mais do que uma invenção criativa…

Fugindo das lendas e invenções, VIOLETA foi observado em registros de época no século XIX, como sinônimo de “viola de arco” – o que nos aguçou a curiosidade: “diminutivo de viola”, em italiano? Àquela época não mais faria sentido, pois “violino” (que também é “diminutivo de viola”) já estaria consolidado! Então, dá-lhe reinvestigar: os termos violette e violetta foram primeiro observados como genéricos para friccionados por arco na publicação Scintille di Musica (“Faíscas de Música”), do italiano Giovanni Maria Lanfranco (1490-1545). Nesta publicação, significariam duas “pequenas famílias de instrumentos”, diferenciadas entre si pelos tamanhos, cada família com três diferentes sub-divisões: os instrumentos menores (portanto, mais agudos) – Canto, Mezzana e Basso – teriam três cordas, exceto o Basso, que teria quatro cordas assim como violoni, violone e violono  – estes últimos que comporiam, então, a segunda “pequena família” de friccionados, também em três tamanhos diferentes, todos maiores e com sonoridade mais grave que os da família anterior (LANFRANCO, 1533, p. 134-136). Neste método não foi observado o uso do termo VIOLA – mas foi apontado que cordofones friccionados e dedilhados (estes últimos, com “cordas geminadas” ou duplas de cordas) usariam la medesima accordatura (“a mesma armação de cordas”) e que liuto (“alaúde”), seria também um genérico, sinônimo de liras ou cítaras, que entendemos poderiam ser também das vihuelas espanholas, de afinação igual a dos alaúdes à época. Duas descobertas interessantes, portanto: comprova-se que naquela época “violas” já seriam tanto dedilhadas quanto friccionadas e, talvez, de onde teria vindo a “inspiração” dos portugueses para mais tarde chamarem as “violas grandes” (guitarras de 6 cordas, surgidas no século XVIII) de “violões” – pelos nomes em italiano, no século XVI: violoni, violone e violono.   

É possível que Lanfranco tenha inventado (ou proposto) esta sub-classificação da cabeça dele, pois alguns anos depois, violetta e outros termos já não apareceriam no muito referenciado método do veneziano Silvestro Ganasi (1492-1550): Regola RubertinaRegola che insegna sonar de viola darcho tastada (“Regra para tocar viola de arco com trastes”). O genérico VIOLA foi o mais observado, com seu plural viole – além de, uma vez cada, viola da gamba e violone, este último que teria seis cordas afinadas como o alaúde, a única coincidência com o que tinha citado antes Lanfranco (GANASI, 1542, p.6-8).

Tentativa particular de Lanfranco ou não, a concepção de “pequenas famílias de instrumentos de arco” teria encontrado ecos históricos, apontados, por exemplo, pelo Dr. Ricciardi, estudioso brasileiro que em suas pesquisas sobre instrumentos coloniais brasileiros afirmou que “rabecas” seriam termos utilizados tanto para violinos quanto para violas – e “rabecões”, para violoncelos e contrabaixos (RICCIARDI, 2000, p. 9). Ricciardi, assim como outros pesquisadores brasileiros, apontou que VIOLETTA teria sido observado especificamente para as violas friccionadas em inventários e outros registros do século XVIII. Essa diferença de significados entre o século XVI (uma “família de friccionados agudos”) e o século XVIII (sinônimo apenas de viola friccionada) foi observada também no Harvard Dictionary (2003, p. 953) – mas os estadunidenses também não foram a fundo na curiosa situação, poucas vezes observada na História dos cordofones que tão a fundo reinvestigamos.

Nossa reinvestigação passou então pela observação e cruzamento de que no século XVIII, em Portugal, VIOLETA não teria sido observado ainda como sinônimo de VIOLA pelo lexicógrafo londrino Rafael Bluteau (1638-1734). Este dicionarista, que por décadas teria pesquisado e publicado significados de palavras em português, admitia até que violas (dedilhadas, no caso) fossem chamadas de “citaras” – mas quanto a VIOLETA só evocou nomes de flores em latim, como viola galathiana (“violeta de outono”), viola agrestis (“violeta do campo”) e viola sativa (“violeta doméstica”) – (BLUTEAU, 1720, v.8, p. 510-511). É compreensível: se fosse fácil de achar, tantos estudiosos pelo mundo já teriam desembolado este novelo – mas nós contamos com visões e teimosias de brasileiro…

Algumas informações desencontradas e imprecisas parecem ter distorcido o caminho de registros do termo VIOLETTA e esta história assim teriam passado despercebida pela maioria dos estudiosos. Em 1913, em seu Real-Lexikon der Musikinstrumente (“Enciclopédia Real de Instrumentos Musicais”), o importante musicólogo alemão Curt Sachs opinou que a chamada english violett (“violetta inglesa”) só poderia ter sido, segundo ele, a viola d’amore, entre outros motivos porque os ingleses teriam sido os primeiros a terem usado Resonanzsaiten (“cordas simpáticas”, em alemão – ou seja: cordas que soavam junto das principais mesmo sem serem tocadas diretamente) mas sem citar fontes (SACHS, 1913, p. 129-130). Alguns anos depois, já considerando então apenas a viola d’amore, Sachs citou como o mais remoto registro deste nome o ano de 1679, na publicação Evelyn’s Diary – que seria um diário do escritor inglês John Evelyn (1620-1706). Como argumento de que as cordas simpáticas teriam sido introduzidas bem mais tarde na viola d’amore, Sachs apontou que vários especialistas em viols, como o músico francês Jean Rousseau (1644-1699) – não confundir com o filósofo – não as teriam citado em suas publicações. Entende-se que até hoje seja fácil concordar com Sachs – não apenas pela credibilidade e grande número de fontes que este estudioso cita, mas porque faz sentido: duas “violas pequenas”, ambas com cordas simpáticas, mesmo com sobrenomes diferentes (“inglesa” e “do amor”) deveriam ter sido o mesmo instrumento. A metodologia que utilizamos, entretanto, indica a busca e checagem, à exaustão, pelos mais remotos registros – o que significa analisar as publicações nas línguas originais, o que sempre revela alguns detalhes a mais. 

Assim confirmamos, das fontes apontadas por Sachs, que realmente a mais remota citação a cordas simpáticas teria sido pelo musicólogo alemão Michaele Prӕtorio (1571-1621) em seu Syntagmatis Musicis – uma sub-classificação onde vários instrumentos diferentes as usariam (PRӔTORIO, 1615, p.439); porém, quanto ao uso em Violas d’Amore, teria passado despercebido a Sachs que Rousseau teria referido-se a cordas simpáticas – pelo menos pelo que entendemos do Traité de la Viole: […] Le Pere Kircher dit queles Violes des Anglois estoient cy-devant montées en partie de semblables chordes […] de laton, qu’on appelle Viole d’Amour (“O padre Kircher apontou que as Violas dos Ingleses eram até então parcialmente montadas com cordas semelhantes […]  de latão, chamada Viole d’Amour (ROUSSEAU, 1687, p.22, grifos e tradução nossa). Este último dado fomos confirmar, desta vez, na fonte apontada por Rousseu: Athanasius Kircher, na publicação Musurgia Universalis, realmente teria citado que os Angli (“ingleses”, em latim), entre as várias nações que teriam incrementado mudanças aos chelys (friccionados, também chamados viola em latim, segundo Kircher), chordas chordis addunt (“adicionavam cordas [metálicas] às cordas [de tripa]”) e as alinhavam (KIRCHER, 1650, p. 486).

Entre diversas fontes confirmadas – como a descrição Sympathy in Sounds citada por John Playford (1667, p. A3 [17]) – foi percebida outra pista exatamente onde Sachs citou como embasamento para afirmar (no caso, equivocadamente) que […] Not until 1741 was there any mention of sympathetic strings on the viola d’amore (“Até 1741 não há menção de cordas simpáticas na Viola d’Amore”) – (SACHS, 1940, p. 366, tradução nossa). O trabalho referenciado Music Saal, do músico alemão Joseph Majer (1689-1768) – realmente apontou o uso das cordas simpáticas… Mas em DOIS tipos de Viola d’Amore de tamanhos diferentes, que ele distinguiu como Brazzen oder Violen (“’de braço’ ou viola”) e Violinen (“violino”) – Majer (1741, p. 103). Assim, haveria então possibilidade de existência de dois instrumentos, que Sachs não teria considerado.

A prática de checar referências nos habilita a afirmar que Sachs, como sempre, teria acertado na maioria dos levantamentos – por exemplo, quanto ao registro mais remoto de uso de “cordas metálicas simpáticas” relacionado à Inglaterra, mesmo sem tê-lo atestado por meio de Rosseau e Kircher como fizemos – porém, não teria atentado mais profundamente ao padrão de desenvolvimento dos nomes de VIOLAS em várias línguas ao mesmo tempo, que descobrimos por aplicarmos “A Chave do Baú”.

Para confirmar, descobrimos – segundo vastas referências do artigo Les Violes, de Paul Garnault (?-?), da Encyclopédie de la Musique – que certa ENGLISH VIOLET, também chamada VIOLETTA MARINA, teria sido o outro instrumento ao qual também se agregavam cordas simpáticas: criação creditada ao italiano Pietro Castrucci (1679-1752), em período que este teria trabalhado em Londres como líder de orquestra do compositor alemão George Frideric Handel (1685-1759). A nomenclatura bilíngue (inglês/italiano), observada em partituras, outros textos e ilustrações atestam o que Garnault afirmou. Handel teria utilizado o novo instrumento a partir de 1730, assim como o compositor alemão Johan Sebastian Bach (1685-1750). Garnault informou ainda que o instrumento, que teria dimensões menores que a viola da gamba, faria parte de uma série, como a criação francesa viola pícola ou pardessus de viole (“viola pequena” ou “viola acima, mais aguda”), que teriam surgido num período (início do século XVIII) em que, além da experimentação de novas sonoridades por compositores e maestros de destaque, teria havido certa rejeição liderada por gambistas e luthiers contre les entreprises du violon (“contra as empreitadas [avanços] do violino”) – (LAVIGNAC, 1925b, p. 1790-1792). A descoberta de detalhes sobre esta fase de transição também agregou bastante ao estudo geral das violas, todas elas.

Constata-se, portanto, que a VIOLETTA não teria sido exatamente uma VIOLA, nem um VIOLINO – mas um dos vários instrumentos surgidos no início do século XVIII, de dimensões menores que as violas, durante a fase de desenvolvimento dos violinos. Violettas utilizariam cordas simpáticas assim como as Violas d’Amore, que então já teriam registro há cerca de cinquenta anos. Na partitura original da peça Chalimeaux, do compositor alemão Johann Friedrich Fasch (1688-1758), por exemplo, são citadas violettas e não foram observadas partes nem notas musicais mais agudas, executáveis só por violinos. O equívoco (ou generalismo) teria surgido a partir da visão popular, pois no mesmo século XVIII, conforme já citado, o termo já teria sido registrado no Brasil, colaborando para aumentar a complexidade já existente pela bivalência friccionado/dedilhado do nome VIOLA. Estudiosos brasileiros teriam entendido corretamente que a VIOLETTA seria friccionada por arco (CASTAGNA, 2000, p. 337; RICCIARDI, 2000, p. 9; CORRÊA, 2014, p. 25), mas não teriam ido mais a fundo no curioso significado de “diminutivo de viola”, em tempos que violino já o significaria. “Violeta” teria sido ainda apontado como sinônimo de “viola friccionada” até o século XIX, segundo o Diccionario Musical de Raphael Coelho Machado (1855, p.268) e o Grande Dicionario Portugues de Domingos Vieira (1874, p. 959).

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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JOÃO ARAUJO

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