Instrumentos: mediadores sociais.
[…] os instrumentos musicais são artefatos mediadores de relações sociais e percorrem ao longo do tempo carreiras simultaneamente musicais e sociais. São os usos dos instrumentos e as crenças dos grupos sociais acerca do valor destes objetos que ora exigem sua presença, ora os dispensam ou repudiam. O recuo de um instrumento ou sua substituição por outro tem ligação imediata com os idiomas musicais aos quais servem; estes, por sua vez, ligam-se a contextos sociais determinados.
[Elizabeth Travassos, artigo “Como a viola se tornou caipira”, 2006]
Viola, Saúde e Paz!
O nome formal, para usar em textos acadêmicos, seria algo como “estratégia metodológico-científica” – mas, no popular, nada mais é do que um caminho seguido, a partir de bases científicas comprovadas, até o estudo apresentado; ou seja: demonstrar que não estamos a “reinventar a roda”, muito menos a falar da própria cabeça (invenções ou corrupções). Não deixa de ser uma demonstração de humildade, honestidade e compromisso com a verdade que só os melhores estudiosos têm coragem de citar e seguir em suas publicações. Infelizmente, o mais observado é estudiosos se perderem da base metodológica, quando adotada, e afirmarem coisas sem citar de onde teriam tirado, nem apresentar desenvolvimentos.
De maneira audaciosa, ainda chegamos a citar o tal caminho também de forma lúdica, fantasiosa: “A Chave do Baú” – exatamente o título de nosso livro, num paralelo com uma caça ao tesouro (como nos filmes). Sim: a “chave” nada mais é do que a metodologia científica desenvolvida, seguida à risca e demonstrada em detalhes, com fartas referências listadas ao fim de cada capítulo – tudo totalmente às claras. Achamos que talvez pudesse ser atraente ao público em geral tratar de Ciência numa linguagem menos formal e, enquanto também (e principalmente) artista, usar a fantasia e a leveza como facilitador das “prosas”.
Como já dissemos, não estamos a inventar nada – apenas sugerindo um passo além do que vimos ter sido feito, para outros curiosos que possam ler; e deixando o banco de dados (estudos e fontes), bem maior do que encontramos nos estudos pesquisados. Estes dados, que foram colhidos em centenas de fontes, foram checados, retraduzidos, organizados cronologicamente e reanalisados no contexto do novo e grande conjunto formado – pois foi assim que a estratégia (ou metodologia, ou “chave”) nos indicou que precisaria ser feito. Não observamos que já tivesse sido feito assim antes e principalmente por isso o fizemos.
O principal ponto de partida foi o texto destacado no início, da antropóloga carioca Elizabeth Travassos – infelizmente falecida em 2013. Aquele artigo de rara lucidez, profundidade e honestidade científica sobre o assunto, à época (2006), foi encontrado no livro Artifícios e Artefactos. Este livro nos foi presenteado por um dos grandíssimos doutores colaboradores de nossa monografia – e de quem, num erro grave nosso, não nos lembramos quem tenha sido, para agradecer devida e nominalmente, mas que possa se sentir agradecido e aceitar nossas desculpas. É uma pena que aquele artigo parece não ter influenciado em nada os estudos sobre violas que vieram depois, pois a História das violas brasileiras talvez já tivesse sido vista de forma diferente antes… Mas não sabemos se, mesmo que tivessem tido acesso, os principais pesquisadores / “formadores de opinião” abririam mão de seu compromisso com o caipirismo – um entendimento coletivo sem fundamentação em registros de época, ou seja, totalmente contrário ao procedimento adotado no citado artigo.
Voltando à “vaca fria” (ou, antes que ela esfrie), no tal artigo de poucas páginas (mas com tantas quanto, ou até mais referências que algumas teses acadêmicas que já tivemos o desprazer de ler), em um único trecho a Dra. Travassos não facilitou nosso trabalho: como outros fazem às vezes, não citou as fontes de suas (para nós) importantíssimas afirmações, exatamente deste trecho destacado. De outros autores, consideraríamos (entre palavrões proferidos) que teria sido alguma “sacação”… Mas, após atestar a profundidade e coerência geral do artigo, e checar as dezenas de referências sem encontrar um equívoco ou inconsistência sequer, não restou qualquer dúvida: aquela jovem senhora saberia, e muito, sobre o que tinha escrito! Uma consulta rápida ao currículo dela no Google confirmou isso também.
Por que ela, então, não teria indicado as referências? Talvez nunca saberemos… Uma possibilidade seria: o trecho ser um resumo, sobre um emaranhado tão grande de fontes antropológicas que não seria fácil listar todas sem apresentar junto um desenvolvimento; e este desenvolvimento precisaria talvez ser tão extenso quanto o próprio artigo curto que a Dra. estava a escrever, além de extrapolar o tema proposto. Isso acontece: veja quantas palavras precisamos utilizar só para tentar explicar nossa hipótese! Em minerês seria muito mais fácil: “o pobrema é que o trem era muito é dos cabeludo…”.
Por falar em não fugir ao tema, o que interessa é que mergulhamos nos conceitos apontados pela Dra. Travassos e, pesquisando e costurando bases científicas, descobrimos a Metodologia Dialética. Os fundamentos deka são creditados ao filósofo grego Platão (ca. 428 aC. – ca. 328 aC.) e hoje é aceita para aplicação em pesquisas científicas, desde desenvolvimentos acrescentados no século XIX por sociólogos alemães. Viu como funciona? O grego importante teve uma ótima “sacada” (como se fosse no voley), alemães “mataram no peito, arredondaram a bola e colocaram no chão” (como fosse no futebol) e, a partir de então, outros vem “usando a mesma jogada”… Quem é íntegro e elegante dá todos os créditos devidos e segue as regras básicas da tal “jogada” – podendo, até, inserir umas pitadas de talento a mais (em esportes e em ciências, por exemplo, brasileiro dá show fácil, se quiser).
Por isso, não apenas em estudos sociológicos encontramos vestígios de aplicação da Metodologia Diáletica: em vários outros tipos de estudos, incluindo os musicológicos (que mais estudamos), citar mais remotos registros encontrados é largamente utilizado como argumento de fundamentação – mesmo que os digníssimos pesquisadores não citem a metodologia (confira a partir de hoje, é mesmo muito usado!).
Ah, sim: caso a esta altura esteja a pensar que descrever a metodologia esteja fora do assunto “instrumentos musicais, mediadores sociais”, por favor, lembre-se que tudo aqui partiu de reestudos sobre as VIOLAS BRASILEIRAS (!) – que estariam, pela primeira vez, colocadas em mediação na História dos cordofones ocidentais, em várias relações sociais. E que o início desta pesquisa inédita se deu por causa da pandemia (um evento de enorme impacto social no mundo todo)… Entendeu ou precisa que desenhe?
A Metodologia Dialética aponta, em resumo, que “nenhum objeto de estudo deve ser analisado à parte de seus fenômenos circundantes”… Ora, para descobrir as “relações sociais” que a Dra. Travassos citou, entendemos ser necessário identificar e analisar a época e o local que os instrumentos teriam sido utilizados (relações sociais dependem disso, mas não apenas…). Somando as coisas, concluímos: “objeto de estudo”, instrumentos musicais – “ok, tá fácil”; “fenômenos circundantes”… “hum…”… Seriam, entre outros: dados históricos, sociológicos, diferentes línguas utilizadas, análise de discurso de diferentes tipos de textos (tratados musicais, poesias, prosas, lendas…), estatística analítica (pela quantidade de textos não técnicos) e outros “fenômenos”… vários outros… “Putz!…”
Neste ponto, deveríamos ter percebido que a tarefa era inglória, que talvez nunca teria sido feita por ser muito complexa e que, portanto, a tendência é que ninguém iria dar valor. Certamente pensariam (pensam?): “Ninguém fez antes, de onde você tirou isso?”… Infelizmente não percebemos a tempo e, também por sermos muito teimosos, seguimos pesquisando. O que interessa é que os caminhos existem – já tinham sido intuídos e/ou indicados há séculos, por vários grandes estudiosos, em várias culturas diferentes. Então, pensamos sobre quem desdenhar: “Pára de encher o saco e vai estudar; desminta as fontes e embasamentos apresentados, antes de vir criticar” (aqui, até para xingar usamos rima!). O que não falta na História são malucos que acrescentaram novas visões ao antes existente: o tempo é o juiz, ele indicará até que ponto é válido (ou não).
Também nos ajudou a ter segurança alguns vestígios encontrados em estudos sobre as violas dedilhadas (nosso ponto de partida), um deles em particular: o capítulo “Cronologia”, encontrado entre as páginas 112 a 121 da dissertação de Mestrado em Música Viola – do sertão para as salas de concerto: a visão de quatro violeiros, de Andréa Carneiro de Souza, depositado em 2002. Por que? Porque àquela altura, já tínhamos vislumbrado que a organização cronológica dos dados é fundamental para analisar bem as relações sociais e outros fenômenos circundantes – pois todos eles costumam se estender por grandes períodos, fases de transição que ultrapassam, às vezes, séculos. Estudar apenas curtos períodos de maior citação de um instrumento seria pouco eficaz: o ideal é buscar o mais remoto registro conhecido e vir analisando pelos séculos o que foi acontecendo – se possível, analisar antes e depois da história daquele instrumento, e de outros aos quais possa estar relacionado. Para tanto, portanto (e ainda rimando), era preciso montar uma vasta cronologia de dados, de registros históricos fundamentados e também de estudos publicados – estes últimos, para observar como pesquisadores teriam analisado os dados antigos. Esta parte faz muita diferença, pois estudiosos costumam secundar-se em cadeia (um péssimo costume, diga-se de passagem): se um se equivoca (por exemplo, numa tradução ou interpretação rasa), é grande o risto de outros virem se equivocando pelos tempos, se não conferirem as origens (seus contextos, principalmente). De fato, a aplicação de cronologias já nos chamava a atenção antes que soubéssemos postular sua importância: nossa monografia é uma “Linha do Tempo da Viola no Brasil”, depositada em 2021 – mas que tem base em estudos específicos começados em 2015!
Partimos, então, daquele capítulo “Cronologia” (e outros trabalhos que também listavam fontes em ordem cronológica) para incrementar mais dados – e foi muito grata a nossa surpresa ao descobrir que o tal capítulo havia sido, de certa forma, “exigido” pela orientadora da dissertação de Andréa Carneiro (violeira carioca, a quem agradecemos pelo atendimento a nossas consultas, por telefone). E quem foi essa tal orientadora de Andréa? Ninguém menos que a nossa ídola, Dra. Elizabeth Travassos…
Coincidências à parte, entendemos estar no caminho certo por vários outros indícios. O vasto estudo histórico-social está exemplificado (em resumo) nas primeiras páginas do livro “A Chave do Baú”, onde apontamos o paralelo: “Eventos de Grande Impacto Social” / “Reflexos em Instrumentos Musicais”. Não é novidade – afinal, nos estudos sobre História da Arte já existe até a consolidada separação por períodos, como “renascimento”, “barroco” e outros, que parte do mesmo princípio; nós apenas organizamos e buscamos aprofundar no que poderia ter tido reflexos diretos nos instrumentos musicais populares (como indicou Travassos), focando nos cordofones (só temos uma vida, não dá pra abraçar tudo!).
À luz do expressivo banco de dados levantado, observamos evidências atestáveis: sempre que um número expressivo de pessoas sofria mudanças sócio-culturais (como guerras e dominações, por exemplo, mas não somente), instrumentos apontaram mudanças, principalmente organológicas e nos nomes – assim como outras mudanças, em outros segmentos da sociedade, são observáveis.
As mais óbvias alterações talvez fossem as variações de nomes, posto haver diversas línguas envolvidas – mas aí vislumbramos uma complexidade que talvez não tenha sido bem observada antes (possivelmente, nem pela Dra. Elizabeth Travassos): a língua talvez seja a maior expressão cultural de um povo – quer seja por imposição de dominadores quanto por resistência de oprimidos. Não: de forma alguma as variações de nomes por diversas línguas devem ser analisadas superficialmente, como por exemplo: “Ah… as vihuelas espanholas eram chamadas de violas pelo portugueses, era um simples bilinguismo, uma tradução óbvia do espanhol para a língua portuguesa…”.
Além da (mais óbvia ainda) questão de que portugueses não citavam guitarras grandes e pequenas, que coexistiam com as vihuelas (só “violas”), há muito mais embutido: a disputa histórica Espanha-Portugal é longa, inclusive com guerras que acarretaram consideráveis impactos sociais em ambos os povos. Além disso, abrindo-se (como proposto) o leque de observação, um pouco mais a frente (séculos XVII e XVIII) descrições de “violas” portuguesas apresentam detalhes praticamente idênticos aos das guitarras espanholas daquela outra época, em que guitarras eram praticadas em quase todo o território europeu e chamadas por nomes bem similares, como guitare (em francês), Guitarre e/ou Gitarre (em alemão), e até chitarra (em italiano) – entre outros. Não se conhecem registros de vihuelas naquela época posterior (teriam caído em desuso) e os portugueses continuavam a chamar apenas de “violas” seus dedilhados portáteis, desprezando guitarras e até alaúdes (estes também presentes na sociedade europeia, com diversos registros em textos de outras línguas menos em português e espanhol, por todas as épocas até o século XVIII, pelo menos). Bilinguismo? Tradição portuguesa de se agarrar a um nome antigo e não perceber diferenças claras dos instrumentos? Invenção, bobagem ou loucura nossa?
Ou, quem sabe… talvez… a complicada relação histórica com mouros e espanhois possa ter influenciado uma tácita reação patriótica / nacionalista dos portugueses, em não citar os nomes originais dos instrumentos?… Mais que apenas não citar: “fazer de conta” que eles seriam todos “violas” – um nome relacionado ao latim e, portanto, também ao italiano (línguas bem mais “simpáticas”, historicamente, aos portugueses). Esta opção seria, inclusive, válida para todos os tempos – desde o século XIV até os dias atuais… Quem sabe?
Contextos histórico-sociais assim foram observados em vários períodos conturbados, como o da dominação grega, depois da romana, o de domínio da Igreja Católica, o da invasão moura na Ibéria, os da Revolução Industrial entre outros – sempre com reflexos nos instrumentos musicais. Várias outras áreas da Ciência apontam também mudanças observadas nos mesmos contextos / períodos.
Com relação aos instrumentos musicais (especificamente aos cordofones, que foram a “delimitação” de nossos estudos), pudemos observar, em resumo, dois comportamentos que entendemos ser importante apontar (ou “postular”):
1 – cordofones reagem historicamente a eventos sociais de significativo impacto social via alterações em seus nomes e formatos, surgimento e/ou caída em desuso e outras reações;
2 – apesar das mudanças, alguns resquícios históricos costumam permanecer por grandes períodos, quer seja nos nomes ou em outras características. Este fato torna bem complexo o estudo, mas ao mesmo tempo pode e deve ser atestado e pesquisado, até mesmo para melhor entendimento e confirmação das peculiaridades.
Sobre o primeiro comportamento, já demos exemplo aqui. Sobre o segundo, entendemos, por exemplo, que não seria por acaso que instrumentos europeus (como vihuelas, guitarras e as diversas violas) tenham surgido e/ou se consolidado com formatos cinturados e fundos paralelos de caixas, enquanto instrumentos árabes, surgidos antes, sempre apresentaram formatos arredondados: a reação em rejeição aos árabes é notória; mas, apesar disso, a armação de cordas em seis ordens e até afinações em quartas (constatadas em alaúdes antigos) sobrevivem em instrumentos de origem europeia até os dias atuais.
Ainda, para confirmar a regra (inclusive, de que o tema é sempre complexo), não seria por acaso que nossas violas dedilhadas, procedentes das primeiras portuguesas, hoje apresentem cinco (e não seis) ordens de cordas e, diferente do resto da Europa, nome igual ao das friccionadas: a disputa Portugal/Espanha contextualiza e a peculiaridade de ser fato ocorrido apenas em Portugal denuncia a quebra de padrão, que só acontece em casos especiais… A regra geral ajuda muito a identificar e atestar exceções – mas tudo depende de análises bem amplas sobre os fenômenos circundantes (sempre eles).
Estes princípios dão margem a várias outras prosas… Mas, por enquanto, muito obrigado por ler até aqui – e vamos proseando…
(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).