A Importância das Violas

[…] Noch dan quinterna gyge videle lyra rubeba

“… e ainda a quinterna, giga, videle, lira, rabeca

Eberhard Cersne, no poema Minneregeln (“Regras”), 1404

(poema nostálgico escrito em alemão anterior àquela época,

citando vários nomes ancestrais de instrumentos)

Viola Saúde e Paz!

A História mostra que, após as ancestrais harpas e similares, a principal evolução dos cordofones foi o surgimento de braços e caixas de ressonância destacados. Assim, desde o CHELYS ou KHELYS (em grego) ou TESTUDO (em latim) – cujos formatos de tartaruga já apontariam influência ou concorrência com instrumentos árabes e/ou asiáticos – os mais importantes ancestrais dos atuais cordofones estariam de alguma forma ligados ao nome VIOLA. “Só” isso: “VIOLA” simplesmente coincide com um importante recomeço histórico da Europa… (já já explico melhor, primeiro vamos a mais alguns dados).

Nomes de instrumentos similares a VIOLA começaram a surgir depois dos genéricos FIDES e FIDICULA romanos, estes que ainda citavam LIRAS (do grego lyra) e CITHARAS (do grego kithara). Em textos em latim, ainda se observam dois registros de fidula e vidula até o século XI.

É bom lembrar: pelos desenhos e esculturas sobreviventes, não haveria muitos cordofones diferentes na época, eram todos muito parecidos, a não ser pelas características já citadas: uns tinham braços e caixas de ressonância destacadas, de diversos formatos – outros eram como as harpas antigas: estruturas ligadas por cordas, às vezes com caixas mas ao longo das cordas: psalterio, nabla, dulcimer e até cithara eram alguns dos nomes destas antigas “harpas”. Como sabemos hoje, mas talvez não pensemos muito, a principal diferença é que braços longos possibilitam emissão de várias notas musicais por cada corda, aumentando muito a capacidade musical do instrumento sem precisar ser fisicamente muito largo e poder ser carregado no colo, principalmente. Não encontramos dados suficientes, mas pode-se entender que este processo de mudança teria se acelerado, mundo afora, a partir dos estudos do grego Pitágoras, aproximadamente no século V antes de Cristo.

Pense bem: por que alguns romanos teriam inventado novos nomes para instrumentos que já teriam nomes em outras línguas, principalmente em grego? E por que depois culturas que se livraram do Império Romano sentiriam vontade de criar novos nomes para instrumentos tão similares?

Não sei se vocês conseguem ver, mas para mim… “VIOLA” e similares significam, (histórica e figurativamente é claro): liberdade, vitória, conquista…  

Além do próprio termo VIOLA (em Latim, Occitano e Catalão), levantamos cerca de duas dezenas de variações surgidas nos séculos XII e XIII (no auge do Trovadorismo) como VIELLE e VIOLLE (em francês), FIDIL ou FIDLI (em dialetos “ingleses”), VIDELE, FITHELE e VIGELE (em dialetos “alemães”), VIHUELA (em espanhol).

Não é difícil perceber (até por serem tantos os nomes parecidos) que estes instrumentos testemunharam a História ocidental desde a queda dos romanos – além de serem obviamente os antecessores dos friccionados e (para nós, também dedilhados) atuais… E isso é só um resumo óbvio e já bem conhecido sobre a importância das VIOLAS…

O que poucos sabem ainda é que…

Como desde o século X já haveria instrumentos tocados por arco em território europeu – e as violas das orquestras depois se tornariam muito famosas e “eruditas” – estudiosos desde o século XVIII parecem sempre ter suposto que todas aquelas “violas” antecessoras teriam sido “de arco”…

…mas não é o que descobrimos após releitura atenta dos registros mais remotos: as VIHUELAS espanholas, por exemplo (“tetra-avos” dos cordofones atuais) teriam sido tanto dedilhadas quanto friccionadas pelo menos desde o século XIV – bem antes, e influenciadoras, por exemplo, das “vovós” VIOLA DA BRACCIO e VIOLA DA GAMBA italianas, e das VIOLAS DEDILHADAS portuguesas.

VIHUELAS teriam sido “vovozinhas bem poderosas”, mas caíram em desuso no séc. XVII, substituídas pela preferência espanhola pelas guitarras – ficando, talvez por isso, esquecidas e desconsideradas por muitos estudiosos; além disso, poucos teriam atentado que o nome VIOLA tinha equivalentes nas principais línguas, principalmente as que influenciaram a língua espanhola (latim, occitano, catalão). Ou seja, VIHUELAS eram também “violas” da época e por influência delas vieram a existir os dois tipos de violas atuais (embora o resto do mundo parece só considerar um tipo, as “de arco”).

            Sim: os estrangeiros tem alguma razão, pois o mais normal teria sido os portugueses também terem passado com o tempo a chamar suas violas dedilhadas de GUITARRAS, como os italianos fizeram, com suas CHITARRAS – mas GUITARRA é um nome oriundo das línguas catalão e espanhol: o formato cinturado e o fundo plano das caixas denunciam que as preferências de nomes, tanto de portugueses quanto de espanhóis, tinham claras motivações nacionalistas (formatos arredondados sempre foram características de instrumentos árabes). Estudiosos não apontam ter observado isso, além de muitos se confundirem com dados sobre nomes, mas nada muda o fato de que as VIHUELAS seguiram seu caminho evolutivo na Itália e em Portugal, por duas formas diferentes de serem tocadas, apesar de chamadas de “violas” nestes dois países (variações nacionalistas de nome, um padrão que se repetiria há séculos, como estamos a demonstrar).

Outro “elo perdido” que estudiosos teriam deixado passar (por não considerarem também instrumentos dedilhados na equação) é que VIHUELAS / VIOLAS não “vieram” dos alaúdes, posto terem formatos diferentes, mas exato por estas mudanças de formato se atesta que faz sentido teriam surgido para SUBSTITUIR aqueles instrumentos árabes (muçulmanos, mouros, invasores). Isso incluiu também substituir, às vezes apenas o nome, de pequenos RABABS árabes (de arco) por gigas / rotas / rabecas / violons (os “avós” do violino) e substituir “alaúdes curtos” por qetaras / cytharas / guitarras / citolas (que se tornaram depois cistres, tambem de fundo paralelo, mas com caixas arredondadas). Portugueses, por exemplo, chamariam e ainda chamam seus cistres de “guitarras portuguesas”, mas não os cinturados, como catalães e espanhóis escolheram chamar e que acabaram por influenciar variações em outras nações como gitern e guitar (inglês), guiterre (francês), Guitarre (alemão) – olha o padrão aí de novo, geeente!…  

Mais uma vez a mesma pergunta: por que outras culturas substituiriam (ou “nacionalizariam”) nomes e, às vezes, alguns detalhes de construção de instrumentos? Por que estas ações podem ser consideradas como um “padrão” da História dos cordofones, desde os tempos do domínio grego?

Pois a História indica que sempre foi assim: novos nomes emergiam em diferentes línguas para cordofones semelhantes, em evolução, mas com algumas características que se mantém até hoje (talvez, quem sabe, estas características se mantenham para que possamos descobrir a verdadeira História? Não sei… só sei que este é outro padrão pouco relatado por estudiosos pelos séculos).  E sei também que basta observar o espectro mais amplo dos contextos histórico-sociais, aos quais instrumentos musicais sempre reagem: uma das reações mais observadas é a “nacionalização” de nomes por desavenças entre as nações envolvidas. Nomes e formatos só viriam a se consolidariam (se fixar) a partir do séc. XIX, com a Revolução Industrial e depois com a globalização de informações, internet, etc.

Até agora, parece que apenas um dedicado a atrevido brasileiro (por buscar se especializar de verdade em violas dedilhadas) teria desconfiado dessa possível pequena imprecisão em séculos de estudos. Ele revirou as principais teorias e principalmente as fontes, nas várias línguas originais, desde o século II aC. – quando então aproveitou a “caça ao tesouro” para aventar também os possíveis antecessores das VIOLAS. Assim, ele pode atestar padrões observados na História ocidental dos cordofones, principalmente quanto aos nomes e suas peculiaridades, quando poucos teriam estudado a fundo a história dos nomes dos instrumentos. São descobertas inéditas e fascinantes!

Os tesouros encontrados nestas pesquisas (detalhados em inglês no artigo “Chronology of Violas“) e o desenvolvimento até chegarmos hoje à Famílias de violas dedilhadas (portuguesa e brasileira) – ao mesmo tempo em que violas de arco ficaram famosas em orquestras de grande parte do mundo – estão em bom português no livro “A Chave do Baú”: numa linguagem simples, como uma narrativa de aventuras. A ideia é que o conhecimento pode ser divertido para todos. E ainda é explicado, em detalhes, como usar a “chave” em outros “baús”… mas aí já são outras prosas…

Vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).      

PRINCIPAIS FONTES:   

AMAT, Joan Carles. Guitarra española y vandola, de cinco órdenes y de quatro, la qual enseña a templar y tañer rasgado todos los puntos naturales y B mollados, com estilo maravilhoso. Valência: Augustin Laborda, [1596].

BERMUDO, Juan. Declaracion de los Instrumentos Musicales. Madrid, s/n, 1555.

BURNEY, Charles. A General History of Music. v. 2. London: Paternoster-Row, 1782.

CERONE, Domenico Pietro. El Melopeo y Maestro: Tractado de Musica Theorica y Pratica. Napoli: Gargano & Nucci, 1613.

ENGEL, Carl. Researches into the Early History of the Violin Family. London: Novello, 1883.

GALPIN, Francis W. Old English Instruments. London: Methuen, [1911].

GANASI, Silvestro. Regola Rubertina. Venezia: s/n, 1542.

GRIFFITHS, John. Las vihuelas en la época de Isabel la Católica. Cuadernos de música Iberoamericana, Madri, v.20, p. 7-36, jul./dec. 2010.

GUNN, John. The Theory and Practice of fingering the Violoncello. Reino Unido: ed. Do author, 1789.

LANFRANCO, Giovani. Scintille di musica. Brescia: Ludovido Britanico, 1533.

LAVIGNAC Albert. Encyclopedie de la Musique et Dictionnaire du Conservatoire. v.6 [Deuxième partie: Technique, Esthétique, Pédagogie; Tome I: Tendances de la musique, Technique générale]. Paris: Librairie Delagrave, 1925

MARTINEZ, Maria do Rosario Alvarez.  Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos. 1981. Tesis (PhD Art History) – Faculdade de Geografia e História, Universidad Complutense de Madrid. 1981.

MILANO, Francesco. Intavolatura de Viola o vero Lauto. Napoli: s/n, 1536

MORAIS, Manuel. A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789). Nassare Revista Aragonesa de Musicología XXII, Zaragoza, v1, nº1, p. 393-492, jan./dec. 1985.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 [1964].

RIBEIRO, Manoel da Paixão. Nova Arte de Viola. Universidade de Coimbra:1789.

ROCHA, João Leite Pita da. Liçam Instrumental da Viola Portuguesa. Lisboa: Oficina de Francisco Silva, 1752.

TINTORIS, Johanes. De inventione et uso musicae. [1486].

WEBER, Francis J. A Popular History of Music from the Earliest Times. London: Simpkin, Marshall, Hamilton, Kent & Co., 1891.

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