A origem científico-histórica das modas-de-viola

fidicinem praevium habens, et praecentorem, cantilenae notulis alternatim in fidicula respondentem.

“Havendo execução de cordofones e instrução prévia, as notas cantadas alternam em correspondência com as da fidicula [cordofone]”].

[Giraldi Cambrensis (ca.1146-ca.1223), in Descriptio Kambriae, tradução nossa *1].

Viola, Saúde e Paz!

Dos maiores desafios a quem pesquisa a sério e a fundo a musicologia – com olhar muito atento às variações de nomes e conceitos desde a antiguidade – é pegar o “joio” (os entendimentos populares de termos que passam de boca em boca) e separar do “trigo” (que seria o que se pode afirmar com base em registros de época, pesquisa e reflexão).

Atentos, então, ao nome “viola” para instrumentos musicais e seus ancestrais desde os mais remotos registros em latim (século II aC.) até os dias atuais, deparamo-nos com a curiosa e crescente incidência do termo “moda-de-viola”, em centenas de fontes pesquisadas, a partir do início do século XX, no Brasil – que  creditamos à dedicação do genial empresário cultural paulista Cornélio Pires (1884-1958), conforme citamos no nosso livro “A Chave do Baú”.

É importante frisar: Cornélio Pires teria batizado de “moda-de-viola” uma maneira específica de tocar viola e cantar em duetos simultâneos – duetos que, nas músicas que ele observou e até hoje, seriam principalmente duetos terçados paralelos (ou seja, cada nota musical da melodia, tanto da viola quanto do canto, é acompanhada de um par, que seriam outras notas em intervalos de terça maior ou menor com relação as primeiras).

Embora o empresário tenha sido capaz de observar e possivelmente terá criado um interessante nome para o fenômeno (ou “técnica”), no entendimento popular (normalmente superficial), até os dias atuais utiliza-se o termo moda-de-viola sem muito critério, muitas vezes para qualquer tipo de execução de viola dedilhada. Em nossa observação, possivelmente única até agora, esta generalização se daria por curiosa coincidência de “legado” dos dois termos originais escolhidos: “moda”, pelo menos desde o século XVIII, seria utilizada por portugueses como genérico para qualquer tipo de canção – assim como “viola”, pelo menos do século XIV ao XIX, foi muito utilizado como genérico para qualquer tipo de cordofone portátil, como alaúdes, guitarras e vihuelas.

É curioso… mas são fatos apontáveis por registros, e contextualizáveis por alguma lógica histórico-social (chamar pelo genérico “moda” simplesmente “qualquer música” tocada por “violas”, ou seja, “qualquer cordofone portátil” faz sentido). A junção de dois genéricos, por Pires, teria gerado um terceiro termo que, parecendo sina ou castigo, depois viria a se tornar também um genérico na boca do povo. Isso aponta como são passíveis de serem “joios” os entendimentos que não se baseiam em registros, os famosos “boca a boca” – estes que parecem ser “só nas bocas, mesmo”, sem passar pelas mentes… naturalmente, este comentário incluimos só de brincadeira, para provocar, contando e pedindo que ninguém nos leve a mal.

A existência comprovada daquele determinado tipo de execução (ou técnica) de “voz e canto duetados simultâneos”, e mesmo a criação de um nome específico, não comprovam, entretanto, que a técnica tenha sido inventada naquela determinada época e local – como vários caipiristas agradam de acreditar e até defendem. No máximo, do nome há comprovação de que teria surgido na época de Cornélio Pires – mas só o nome. E para desmentir o enganoso entendimento, basta apontar existência anterior da técnica.

A quem estudar pelo menos um pouco de História da Música Tonal (ocidental) não é difícil constatar que as modas-de-viola refletem um período bem mais antigo, entre as estudadas fases evolutivas chamadas MONOFONIA e POLIFONIA: a monofonia (“um som”, a partir do grego), teria ocorrido em tempos de predominância de cantos em uníssono, como os chamados Cantos Gregorianos – e a polifonia (“vários sons”), a última fase evolutiva observada, que é praticada até hoje, quando variações de melodias (ainda chamadas de “vozes”, mesmo quando executadas por instrumentos musicais) se intercalam e se completam em acordes, contracantos e outros artifícios, por exemplo, nas execuções orquestrais.

Este desenvolvimento tem origem nos estudos dos intervalos musicais, cujo laboratório e inspiração teriam sido de/em execuções de canto, depois tendo passado a ser aplicados também em instrumentos musicais. Estudos estes que teriam sido iniciados na Europa pelo monge italiano Guido D’Arezzo (992-1050), autor de livros como o Micrologus, publicado em 1026. Já execuções de solos de instrumento de corda + canto, em paralelo, já com aplicação de intervalos musicais (duetos), como as modas-de-viola, apontam características típicas do auge do Trovadorismo (séculos XII e XIII), antecessor dos primeiros indícios conhecidos de execuções que depois caminhariam para a polifonia como a utilização de acordes como uma base para cantos. Com isso podemos localizar práticas como as modas-de-viola aproximadamente entre os séculos XI (quando já se utilizariam intervalos de quarta e de quinta) e o século XII, quando já localizamos estudos sobre acordes, por exemplo, no tratado Quӕstiones in musica, atribuído ao padre francês Rudolf of St. Trond (1070-1138). É bom lembrar que a música original dos menestréis mouros, invasores da Península Ibérica, não aponta o uso de acordes, sendo chamada de “atonal”.    

Esta reflexão teórico-histórico-social já seria, talvez, suficiente – mas o bom mesmo é encontrar registros de época para sustentar, concorda? Pois recentemente encontramos talvez o mais remoto registro – e foi por pura sorte, enquando estávamos “a dar mais uma olhada” em fontes de nossas pesquisas pelos termos fides e fidula. Estes dois termos, em coincidência já um pouco assustadora, teriam sido utilizados exatamente como genéricos (!) pelos romanos, para designar cordofones e, até hoje, são erroneamente entendidos como “lira”, “cithara” ou outros instrumentos – mas é pura superficialidade, puro “joio”. Só se pode afirmar, com base nos registros, que teriam sido “cordofones”, ou seja, instrumentos musicais de corda – e não liras ou citaras, nomes já existentes e utilizados em textos romanos.

Não podemos deixar de dar crédito ao musicólogo estadunidense William Smythe Babcock Mathews – “W.S.B. Matheus” (1837-1912), que na página 46 de publicação de 1891 de seu livro A Popular History of the Art of Music (Uma História Popular da Arte da Música) nos chamou a atenção pelo uso do termo fidicula – embora ali com grafia incorreta, “fidiculare” e com apontamento de data também equivocado, eleventh century (“século XI”).

Os pequenos equívocos (sejam gráficos ou do autor) não fariam diferença, pois nossa metodogia aponta para a checagem aos originais – e foi assim que chegamos ao texto original, destacado no início, que teria sido escrito pelo religioso e historiador britânico Giraldi Cambrensis – citado às vezes como “Geraldus Cambrensi”, “Gerald Barry”, “Gerald of Wales” – e que, conforme também já destacamos, teria vivido no século XII e não no XI.

Foi então que observamos mais alguns equívocos de transcrição (como o termo “tibicinem” e não o correto, fidicinem, no início do trecho) e, principalmente, um importante equívoco de interpretação do texto: para Mathews, segundo a narrativa de Cambrensi, o Rei Richard de Clare, em deslocamento entre a Inglaterra e o País de Gales, “[…] dispensou seus assistentes e perseguiu sua jornada indefeso, precedido por um menestrel e um cantor, um acompanhando o outro com um fiddle” (tradução nossa *2); fiddle, no caso, é um genérico (!) muito usado em textos em inglês para cordofones friccionados por arco – em alemão usa-se fidel, em textos em espanhol e português, fidula. Estes termos são outros exemplos de “interpretações superficiais populares”, desta vez mais prejudiciais por serem utilizados até por musicólogos: ao tempo das fidiculas ainda não haveria utilização de arcos na Europa, observando-se claramente que teriam sido instrumentos dedilhados. Cada vez mais assombroso, portanto, se mostra o uso de nomes sem fundamentação correta se pensar nas fidiculas como possíveis “tataravós” das atuais violas, que séculos mais tarde sofreriam o mesmo problema de confusão de nomens equivocados por poderem ser tocadas de duas maneiras diferentes (dedilhadas ou friccionadas), o que acabou por se consolidar no nome bivalente atual, em português.

Voltando a Mathews, este teria se enganado na tradução/interpretação porque, na verdade, pelo contexto do texto em latim, se observa que Cambrensis teria utilizado uma figura de linguagem, não tendo se referido a presença física de músicos. Todo o trecho descreveu a insensatez do monarca ao entrar numa floresta com poucos homens, desarmados: estes homens teriam seguido o lider deles “como as notas do cordofone seguiam as do canto” (conforme já destacado e traduzido). Cambrensis seguiu narrando e contextualizando a derrota nec mora (que traduzimos como “sem demora”), citada logo em seguida ao trecho em destaque (a tal figura de linguagem).

Esta descoberta já seria, em si, bastante interessante – porém mais se descobriu nos relatos do religioso Cambresis, que teria viajado bastante pelo então território europeu da época e, para nossa sorte, teria bom conhecimento musical e atenção a detalhes. No capítulo “Canções Sinfônicas e Cantilenis Organicis” (este último, que traduzimos como “Cantorias Populares”), descreveu que entre povos ancestrais aos que hoje fazem parte do Reino Unido haveria cantos coletivos bem diferentes de outros lugares, por não serem em uníssono, mas com muita vocum varia (“variação de vozes”). E ainda destacou que mais ao Norte, “além da Humbria, nos limites de York”, haveria um tipo de canto harmonizado similar, mas com uma particularidade: “A duas vozes, diferentes apenas pelos tons e modulações variadas: uma abaixo, mais murmurante, e outra, acima, ambas ao mesmo tempo emocionantes e deliciantes” (tradução nossa, *3) – que observamos a partir de transcrições de vários manuscritos que teriam sido feitas por um também clérigo e historiador, o inglês James F. Dirok (1810-1876) – livro Giraldi Cambrensis Opera da compilação Chronicles And Memorials of Great Britain and Ireland during the Middle Ages (“Crônicas e Memórias da Grã Bretanha e Irlanda durante a Idade Média”), publicada em 1868.

Cambrensis ainda teria acrescentado, sobre aquele curioso tipo de canto, que praticamente todos, inclusive as crianças, pela prática por longa data não cantavam em uníssono ou múltiplas vozes, mas só saltem dupliciter (“em duetos”); e que, por ser apenas das populações mais ao Norte, poderia ter sido herdado de dinamarqueses e/ou noruegueses, que teriam tido mais influência naquela região.

Dos registros de Cambrensis – portanto, do século XII – temos notas musicais emitidas por cordofones em correspondência com notas cantadas e cantos em duas vozes, não tendo sido infelizmente apontado quais os intervalos utilizados, apenas que uma das “vozes” (entenda-se “linha melódica”) era bem mais grave e com menos volume que a outra, o seu par – exatamente o que ainda acontece nas modas-de-viola e outros duetos terçados, onde se costuma usar as denominações “terça abaixo” e “terça acima” (mesmo quando alguns outros intervalos são utilizados).

Para situar como aquele costume pode ter chegado a Portugal (onde a partir do século XVIII observamos modinhas cantadas em dueto terçado) e, de lá, para as modas-de-viola brasileiras, acrescentamos que a língua e a cultura celta (de povos e regiões depois chamados “Galia” pelos romanos), ter-se-ia espalhado por grande parte do território europeu, incluindo a “Ibéria” (ou “Península Hyspanica”). Outro fator de expansão do tipo de cantoria, já citado, teriam sido os Trovadores, que com poesias cantadas ao som de cordofones teriam surgido a partir do século VIII pela chamada Invasão Moura da mesma península (que inclui a região da Lusitânia, hoje, Portugal), atingindo auge também por praticamente toda a Europa da época nos séculos XII e XIII.

Trovadores teriam influenciado muita coisa nas línguas então em evolução, não sendo coincidência que exato no citado auge do Trovadorismo se tem registro do surgimento do termo “viola” em latim, occitano e catalão – e mais de uma dezena de variações deste em outras línguas em evolução à época – mas isso já é outra prosa…    

Vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

*1 – fidicen (na flexão fidicinem) é habitualmente traduzido como “tocador de cordofone”, porém, como em outras fontes observadas desde Cicero (ca.106-ca. 46 aC.), entende-se que neste caso o autor não teria se referido ao tocador, mas ao toque de cordas – possivelmente, pela sequência do texto, até ao “tocar fides (cordas) acompanhado de canto (cano, na flexão cine)”. Já sobre praecentorem, palavra hoje não apontada em dicionários, entende-se como relativa a praeceptor (“instrutor, professor”).

*2: no original: he dismissed his attendants and pursued his journey undefended, preceded by a minstrel and a singer, the one accompanying the other on the fiddle.

*3: […] binis tamen solummodo tonorum differentiis, et vocum modulando varietatibus; una inferius submurmurante, altera vero superne demuleente pariter et delectante

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