Debret e as verdadeiras raízes da música brasileira
Mais la chanson finie, le charme cesse; et chacun se sépare froidement, en repensant
au fouet du maître et à achever la commission qu’avait interrompue cet intermède délicieux.
(“Mas quando a música termina, o encanto cessa; e cada um se separa friamente, pensando nas chicotadas do mestre e em completar a missão que esse delicioso interlúdio havia interrompido”).
[Debret, entre 1816 e 1831, tradução nossa].
Viola, Saúde e Paz!
Embora com uma visão particular sobre as diferentes nações africanas representadas nas ruas do Rio de Janeiro, entre 1816 e 1831, são consideráveis registros de época as descrições do pintor francês Jean Baptiste Debret, em três volumes de seu livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil (“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”). Destacamos aqui as páginas 128 e 129 do volume 2, edição de 1835.
É importante frisar: teria sido “música de rua”, ou seja: todos que passavam ouviriam e seriam influenciados, de certa forma; e teria sido na capital do Império, mas há também registros semelhantes por várias outras localidades brasileiras da época.
Segundo Debret, algumas nações africanas, representadas por escravizados que ele via, teriam características diferentes:
Uma nação usaria muito o canto improvisado, apoiado em coro pelo grupo (que ia se formando), principalmente na parte que ele chama em francês de ritournelles (que interpretamos como “refrãos”) e por pantomimes (ou seja, “gestos, movimentos”), além de batidas de objetos que servissem de percussão também improvisada; estes objetos seriam feitos de ferro, concha, caixas, latas, madeiras, etc.
Um outro grupo não seria cantante – só usaria um expressivo bater de palmas sincronizado e rítmico, que ele chamou, talvez por não ter canto agregado, de “mais bárbaros” – mas nos parece que isso seria conjectural, pois o não uso da voz não prova nada, e toda musicalidade africana é bem complexa, ou seja, “só bater palmas” não significaria que seriam pouco evoluídos.
O francês descreveu aos dois primeiros grupos como ensemble parfait (“conjunto perfeito”); se observarmos bem, uma soma das execuções listadas (a cantoria e as percussões improvisadas, as respostas em coro, o bater de palmas sincronizado, etc.) ainda pode ser observada hoje em dia em rodas de samba, nos pagodes, nos siriris, nos cururus, nos calangos e outras manifestações regionais pelo Brasil.
Outras nações – que Debret apontou como Benguehs et Angolais (“Benguelas e Angolanos”) – seriam os mais musicais, sendo também “notáveis construtores de seus próprios instrumentos”, com destaque a quatro tipos de instrumentos:
– marimba (que hoje é conhecido também como kalimba);
– viole d’Angola, espèce de lyre à quatre cordes (“Viola de Angola, espécie de lira de quatro cordas”);
– violon (“violino” de uma corda, cujo corpo seria um côco atravessado por uma vara, tocado por um pequeno arco);
– oricongo (que pelas descrições e imagens seria o berimbau).
Alguns destes quatro tipos de instrumentos também teriam sido vistos pela ilustradora britânica Maria Graham, em 1821 – conforme seu livro Journal of a voyage to Brazil (na publicação de 1824, ver página 199) – e em 1829 pelo padre Robert Walsh, livro Notices of Brazil in 1828 1829 (na publicação de 1830, volume 2, ver página 186) – mas infelizmente, nestes livros, quando haviam, só foram observadas ilustrações de marimbas e berimbaus. Debret chegou a registrar desenhos de cordofones arredondados e abaulados, mas muito bem acabados, que não seriam jamais os rústicos, dos escravizados (era costume incrementar depois alguns desenhos conforme a cultura europeia).
Curiosamente, um outro explorador francês – identificado apenas como M. de la Flotte – teria visto tanto no Brasil (em 1757) quanto na Índia instrumentos que descreveu como mauvaise guitarre (“guitarra rústica”) ou “uma espécie de guitarra”. Apenas nas narrativas sobre a Ìndia, Flotte descreveu que os instrumentos seriam como “cabaças grandes com cabo [braço] comprido onde se prendem uma, duas ou três cordas” e que acompanhariam cantos. Lá na Índia, outra coincidência seria que os indiens (sem citação sobre cor da pele nem se seriam escravizados) também executariam danças com movimentos lascivos, como nós observamos em descrições de nossos batuques daqui. As descrições de Flotte vimos no livro Essais historiques sur l’ude précédés d’um journal devoyages – na edição de 1769, ver páginas 211 a 216.
Em inglês, traduzimos por “cabaça” os termos gourd e calabash; em francês, o termo foi calebasse. Estas pouquíssimas citações encontradas são as únicas entre uma banza (citada uma vez em um poema de Gregório de Mattos, do século XVII) e as Violas de Cabaça construídas por Levi Ramiro a partir da década de 1980 – sendo que banzas realmente foram instrumentos africanos feitos com cabaças, famosos em Portugal e que teriam influenciado o surgimento do banjo estadunidense (também feito com cabaças, quando surgiu). Consideramos, portanto, o número de citações muito pequeno, indicando que não teriam sido Violas de Cabaça as utilizadas por Gregório de Mattos nem teriam existido nos primeiros séculos – mas o boato (ou equívoco histórico) teria sido forte o suficiente para seu surgimento no Brasil, estando hoje consolidada.
Voltando a Debret, em uma ilustração (Planche 41), indicada no próprio texto que citamos aqui, observam-se três escravizados: uma mulher adulta assentada, tocando marimba; um senhor mais idoso, em pé, de olhos fechados, tocando um berimbau; e ainda um jovem, em pé, carregando uma cana de açúcar. Debret a descreveu assim:
“[…] representa a desgraça de um velho escravo negro reduzido à mendicância. A cegueira trouxe sua emancipação: generosidade bárbara muitas vezes repetida no Brasil pela avareza. Seu pequeno guia carrega uma cana de açúcar, esmola destinada à alimentação comum. A musicista toca marimba e, pela atração da harmonia musical, aproxima seu instrumento do companheiro, sobre quem lança um olhar fixo e delirante”.
Debret ainda acrescentou: “A marimba, espèce d’harmonica, é constituída por lâminas de ferro fixadas a uma tábua de madeira, e apoiadas por um cavalete. Cada uma dessas lâminas vibra ao ser pressionada pelos polegares do tocador, que as força à flexão e à produção de um som harmônico, ao se endireitarem. Uma grande parte de uma cabaça, montada como fundo deste instrumento, dá-lhe um som muito mais profundo, e quase como o de uma harpa…”.
Eram curiosos os entendimentos de Debret: quanto ao berimbau, teria citado que a corda seria similar a de um tympanon – instrumento que, embora o termo em latim e em francês se pareça com “tímpano” (caixa de percussão), descobrimos que alguns o utilizariam também para cordonofones sem braço, de caixas trapezoidais – mais conhecidos como “cítara”, mas também como cimbalo (de cymbalum, em latim): outro termo relacionado a instrumentos de percussão, em outras línguas… Sim: quem pesquisa nomes antigos às vezes encontra estas encruzilhadas!
Já o entendimento do francês de que talvez a marimba se pareceria com uma harmonica (que hoje para nós significaria uma gaita de boca, instrumento de sopro), deixa ainda mais “pano para manga”:
Uma possibilidade (apenas por causa do nome) seriam as chamadas “harmônicas de vidro”, já existentes e bem famosas na Europa da época – mas cujo som seria emitido pelo contato das mãos com copos de vidro, sem a emissão de notas “pinicadas”, como nas harpas (que foi a comparação sonora indicada por Debret). Pianolas (pianos automáticos) seriam talvez similares na mecânica de funcionamento, mas não teriam sido inventadas ainda, apenas no final daquele século. Por fim, encontramos um ancestral dos xilofones (classificação popular da família das marimbas), também africano e com ressonância ligada a cabaças, porém pelo nome de balafon.
Sobre a harmonica de Debret, por enquanto, para nós é um mistério – sendo que talvez tenha querido dizer apenas “um instrumento de harmonia”; desconfiamos ainda alguma possível ligação à organa – ancestral de vários tipos de instrumentos, inclusive das nossas violas, que particularmente nos dedicamos a estudar e descobrimos detalhes que poucos teriam observado… mas aí já é outra prosa…
Muito obrigado pela atenção até aqui… E vamos proseando!
(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).