LENDAS E TRADIÇÕES

(haveria problema em acreditar e repetir cegamente?)

[…] Unde arbitror quod fila chordarum citharae

ideo fides dicantur, quoniam et mortua sonum reddant

(“Portanto, penso que as cordas da cithara

são chamadas de fides porque emitem som mesmo estando mortas”)

[Aurelius Ambrosius – De Obitu Theodosii – (ca.340-ca.397)].

Já ouviu falar que “viola toca até sozinha” (às vezes de madrugada, etc.)? Eu já ouvi várias vezes: são tantas “lendas e tradições” criativas, cultivadas e adoradas por pessoas que dizem defender o caipirismo, folclore, religiões… Tão agradáveis e tão bem inventadas… Muito oportunas, inclusive, para quem ganha dinheiro e/ou notoriedade à custa da ingenuidade e do ego dos que optam por ignorar conhecimento científico – e muito mais fáceis de serem difundidas do que dados históricos comprováveis.

É só prestar atenção: lendas normalmente não vem com apontamento de fontes confirmáveis, “de época”: são verdadeiras “histórias da carochinha” (histórias infantis, para fazer criança dormir). E o mais curioso é que os “agradados” parecem mesmo crianças a querer dormir – ou seriam crianças “mortas”, de certa forma? Já já explico esta última colocação, propositalmente meio mórbida… mas é só uma figura de linguagem, por favor não me queira mal.

Eu nem estava procurando: foi sem querer que, aparentemente, devo ter descoberto a origem (ou o mais remoto registro) sobre esta “lenda” – que talvez seja o trecho em latim citado na abertura; no caso, trecho aqui citado com autor, título da fonte e data, pois é assim que gente séria e honesta deve fazer.

Durante as muitas pesquisas que culminaram no livro “A Chave do Baú”, buscava os mais remotos registros do termo FIDES: latim para “cordas” e, por adesão, também para “cordofones”, mas que também era usado como “confiança, boa-fé”. Eu afirmo (mesmo que alguns linguistas católicos neguem) que depois FIDES foi distorcido para significar “fé católica” – mesmo que o termo já existisse antes do catolicismo ter sido inventado – como é observado em vários textos onde religiosos inventavam ligação das “cordas” dos instrumentos com uma “fé” que uniria as pessoas.

Neste caso específico, sobre “citharas e fides“, cheguei a pesquisar parte de um texto que teria sido do gramático romano Flaccus (do sec. I ANTES DE CRISTO!) reinterpretado depois pelo também gramático Festus (mas já no sec. II da nossa era) e repetido em cadeia, com alguns floreios a mais ou a menos, por religiosos como Isidoro de Sevilha (sec. VI), Paulo Diaconus (sec. VIII) e Jo. de Janua (sec. XIII). É possível, portanto, que o nosso Ambrosius, do primeiro texto aqui, tenha também se inspirado em Festus (ou até Flaccus) e daí (sempre, “talvez”) pudesse ter inspirado Isidoro e/ou os demais: os religiosos liam muito e tinham muito acesso aos escritos antigos.

Destas formas lendas podem ter surgido e sido transmitidas pelos séculos – neste caso, por religiosos, que criaram muitas histórias fantásticas para tentar “fazer a cabeça” das pessoas – basta ler sobre a Idade Média e os cerca de mil anos entre os séculos V e XV. Os católicos não gostam muito que se fale deste “pequeno” período, mas estamos a falar aqui de registros históricos – não há intenção de desrespeitar nenhum tipo de fé, faturamento ou ego de ninguém. Liberdade de Culto, liberdade de Expressão, capitalismo… tudo dentro da lei e, sobretudo, cada pessoa merece todo o respeito sobre suas escolhas.

Aqui no Brasil, nos dias atuais, soma-se religiosidade com violas por causa dos jesuítas: é natural – mas porque praticamente só deles temos registros escritos sobre possíveis “violas” no início do Brasil; então, dá-lhe difundir lendas agradáveis e interessantes para um povo com DNA ligado ao divino, ao misterioso, ao imaginário (e infelizmente também a muito pouca leitura): descendentes de indígenas, escravizados e carolíssimos brancos portugueses.

Porém, sejamos justos: não inventariam lendas apenas “caipiristas, folcloristanos e religiosistas” (no caso, falo só dos enganadores, pois há muita gente séria que não merece a carapuça) – nem sequer só os romanos: me parece que esta “moda” já viria dos gregos! Não leio em grego, mas posso afirmar que muito do que os romanos escreviam, eles mesmos indicavam ter vindo de textos gregos: Mercúrio, Hércules e vários outros “deuses inventados” eram muito ligados a origens lendárias de instrumentos musicais. Histórias “incríveis” (literalmente). Muito boas de serem recontadas? De certa forma, sim – e fazem “sucesso”…

(Antigamente usava-se apontar fontes e créditos até das lendas, acredita? Tempo bom que não volta mais…).

O texto que destacamos (do século IV, disponível pela internet) é um “comentário ou resenha fúnebre”, ou seja, feito em homenagem, pela morte de algum famoso. É repleto de citações e paralelos com a morte. O autor – Ambrosius – foi um religioso bastante influente, bispo onde hoje seria a italiana Milão e o falecido – Theodósio – um Imperador Romano. No trecho, a exortação é que a “boa fé” seria operada até pelos mortos, por isso os exércitos inimigos seriam atormentados pelos fantasmas dos mártires. Este “tormento” seria ilustrado por uma cithara tocando sozinha, mesmo depois de “morta” – uma “viagem total” do criativo bispo, naturalmente… ou, se preferir o termo técnico, apenas uma “figura de linguagem”: não era para ter sido levada “ao pé da letra”, mas…

O bispo não explicou mas como a maioria das cordas utilizadas na época teriam sido as feitas com tripas de animais, talvez ele tenha querido dizer que mesmo depois dos animais mortos, as cordas feitas de suas tripas ainda soavam “vivas” ao serem tocadas. Na época ainda não haveria registros das chamadas “cordas simpáticas” – que vibram por proximidade a outros sons emitidos mesmo sem serem tocadas diretamente e que só teriam registros a partir do século XVI, na Inglaterra.

Daí, até ser inventado que instrumentos “tocariam sozinhos”, de “alguma maneira incrível”, basta pensar que metais – e, muito mais, madeiras – sofrem influência de variações de clima, temperatura e similares: então é possível algum som emitido em função disso ou, simplesmente, que algum inseto ou outro tipo de pequeno ser vivo esbarrasse nas cordas, fazendo-as soar sem serem vistos. Nada demais… mas inventar uma história fantástica a respeito é muito mais atrativo, concordam? Não daria muito mais “visualizações, comentários e curtidas” do que a verdade chata, fria, científica?

A cithara de Ambrosius, também não detalhada, pode-se intuir que fosse uma espécie de “tatara-tarata-avó” das nossas violas e violões: talvez com caixa de ressonância e braço – mas também poderiam ser como pequenas harpas (sem caixa, nem braço). De qualquer forma, um cordofone dedilhado, ancestral: não é interessante como as lendas acompanham os instrumentos por tantos séculos? Tenho visto muito: não só as lendas, mas muito mais os resquícios ancestrais em nomes, detalhes físicos dos instrumentos, etc.

Porém… você entendeu a mensagem intrínseca de Ambosius? Na lata e sem filtros, seria mais ou menos: “Vai, meu filho: lute e morra pelo imperador, que até depois de morto você ainda será nobre – um mártir – e poderá assombrar os inimigos”. Vai “na fé”, que tá tudo certo!…

Achou que era “folclore caipira religioso brasileiro”? Parece que não, né? Uma lenda inventada para fazer a cabeça do povo séculos atrás, repetida por vários tipos de interessados em divulgar este tipo de coisa (muitos deles, inocentes que acham bonito ignorar o conhecimento científico, talvez para sentirem-se mais importantes ou mais “cultos” ao agir assim… vai saber?). Uma lenda da qual ter-se-ia perdido o contexto original – mas que curiosamente ainda parece servir para incentivar “soldados” a “serem mártires e morrer pela tradição”, sendo uma das muitas histórias muito bem inventadas, muito agradáveis, muito oportunas…

Pra que se preocupar de onde teria vindo, não é mesmo? E dá uma graninha, agrada aos “parças”, gera seguidores, etc… Então, não se preocupe: “Vai na fé, que tá tudo certo!”.

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

PRINCIPAIS FONTES:

LINDSAY, Wallace Martin. Isidori Hispalensis Episcopi – Etymologiarum sive Originum. Oxford: Univ. Press, 1911.

LINDSAY, Wallace Martin. Sexti Pompei Festi de verborum significatu quae supersunt cum Pauli Epitome. Leipzig: B. G. Teubner, 1913.

PONOR, Aemilius Thewrewk de. Sexti Pompei Festi de verborum significatu quae supersunt com Pauli epitome. Part. 1. 1958.

JANUA, Johannes de. Catholicon. [Lessing J. Rosenwald Collection]. [Mainz: J. Gutemberg], 1460 [1286].

GERBERTO, Martino. De Cantu et musica sacra. [Württemberg]: San-Blasianis, 1774.

BURNEY, Charles. A General History of Music. v. 2. London: Paternoster-Row, 1782.

(sobre lendas gregas)

KIRCHER, Athanasius. Musurgia Universalis, sive Ars Magna Consoni et Dissoni. Libre Sextus, Musica Organica sive de musica instrumentali. Roma: Typografia Corbelletti, 1650.  

(sobre cordas simpaticas)   

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