ORGANA: uma complicada possível origem do formato e do nome das VIOLAS

Organum vocabulum est generale vasorum omnium musicorum

Organum é um nome geral para todos os instrumentos musicais”

(Santo Isidoro de Sevilha, Etymologiae, século VI)

Viola, Saúde e Paz!

Relutamos, a princípio, em tratar das organas em um brevis articulus, para um público interessado principalmente em violas dedilhadas – assim como apenas citamos o nome en passant em nosso livro A Chave do Baú; entretanto, o formato cinturado das organas e o nome “viola de roda” (em francês, vielle a roue) – ambos constatados a partir do século XI – são evidências de ligações ancestrais com nossas violas, tanto as dedilhadas quanto a friccionadas por arco. 

Sem dúvida não é um assunto simples. Muitos pesquisadores, inclusive, optam por estudar instrumentos musicais só a partir de registros mais seguros, como instrumentos remanescentes, partituras / tablaturas, descrições claras feitas por antigos entendedores em música. Estes olhares, entretanto, revelam visões que consideramos incompletas – como os profundos estudos propagados em escolas de música sobre o organum (singular de organa, tanto em grego quanto em latim). Este sistema, considerado entre os mais remotos estudos sobre harmonia musical, costuma ser visto apenas pela visão do canto harmonizado – enquanto, entre outros, o histórico do termo aponta, além do uso em cantos, registros em instrumentos musicais muito interessantes.

Nossa metodologia – que inclui seguir variações do histórico das palavras pelos tempos – revela que muitas vezes é possível entender pelo menos o âmago, o mais profundo do desenvolvimento histórico dos instrumentos. Mesmo que só se conheçam poucos registros escritos, de nomes que variam muito e que não se possa saber tudo sobre alguns instrumentos, várias das antigas características sobrevivem aos séculos, tanto nos nomes quanto em detalhes organológicos – e estas características podem ser rastreadas até as mais conhecidas origens dos instrumentos.

Não é fácil – mas se somarmos olhares de múltiplas ciências (História, linguística, musicologia, sociologia, estatística e outras), alguns tesouros ainda podem ser descobertos! E cada tesouro descoberto, em si é uma aula, que pode ajudar a descobrir outros. Há muitas coerências observáveis.

Tentaremos apresentar aqui um resumo coerente – mas a partir deste aprofundamento, talvez tenhamos que nos dedicar à publicação também de um artigo científico, mais amplo, onde a abordagem acadêmica se mostrará mais eficaz para esclarecimento de detalhes; pois não vamos negar: é complexo. Talvez seja o caso de ler mais de uma vez o conteúdo que se segue.

O instrumento é “complicadão” – talvez o mais complexo dos cordofones, a começar do nome ORGANA: vindo do Grego (όργανα, plural de όργανο), significaria apenas “instrumentos musicais” – por isso, quando aparece em alguns textos antigos, só podemos dizer que fosse um “genérico”, porque há detalhes muito diferentes citados aqui e ali… Para complicar, organa (que é plural) surgiu muitas vezes no singular, quando nome de um instrumento musical específico…

Mas preste atenção na curiosa sina que este genérico acabou trilhando!

Um mergulho rápido no histórico do nome, a partir do latim dos romanos, é muito importante para entendermos o novelo – então, não perca o fio: fora dos significados “musicais”, por assim dizer, organum também seria utilizado com o significado de “órgão do corpo humano” – e organon é como ficou conhecido, por convenção, o conjunto de obras sobre lógica do filósofo grego Aristóteles (384-322 aC.).

Já com significados relacionados à música, nos mais badalados estudos antigos, Anisio Boethius (ca.480-ca.525) – considerado grande intérprete de fontes gregas – teria utilizado apenas duas vezes organum (nas flexões organis e organo), como genérico (“instrumentos musicais”), em seu De institutione musica – e no texto de autor desconhecido Musica Enchiriadis (estimado ao ano de 900), aparece o conceito mais conhecido hoje em dia, que seria a chamada “abertura de vozes”: “[…] vozes, distantes umas das outras, reproduzem sinfonias sucessivas, sendo chamadas corretamente de sinfonias, isto é, como as mesmas vozes devem se unir no canto. Pois é isso que chamamos de diaphonia de uma música, ou o que costumamos chamar de organum (tradução nossa, *1).

Nas universidades, estudos atuais baseados em livros como História da Música Ocidental, de Donald Grout e Claude Palisca (na edição traduzida em Lisboa, em 1994, ver páginas 97 a 120) trazem interessante histórico sobre o organum do século IX ao XIII, porém com algumas ressalvas, posto que fixam-se apenas no aspecto do canto. No próprio Musica Enchiriadis já haveria a citação “[…] Para vozes humanas, e em alguns instrumentos musicais, não apenas dois e dois, mas também três e três podem ser misturados dessa maneira” (tradução e grifo nossos *2).

De fato, a ligação do nome a instrumentos musicais pode ter sido bem anterior: o profeta Daniel (que se estima teria vivido no século VII aC.) teria narrado algumas vezes a lista de instrumentos “[…] tuba, fistula, citara, sambuca, saltério e sinfonia” (Daniel, capítulo 3, versículos 5, 7, 10 e 12, segundo a Bíblia Vulgata Online – tradução e grifos nossos *3). Não conseguimos ainda acesso aos termos originais (que teriam sido em hebráico ou grego), mas confiando (com ressalvas) nas traduções de Isidoro de Sevilha (ca.560-ca.636), o estudioso teria analisado a lista em sua Etymologiae, chamando atenção para as modulações entre cantos e “instrumentos musicais” (estes, que ele teria chamado genericamente de organum) – modulações que, como já citamos, constariam depois do Musica Enchiriadis: “[…] Num salmo cantado, após as modulações dos instrumentos é que a voz do cantor segue – quando o canto precede, a arte de modulação dos instrumentos é imitada” (tradução nossa *4). A lista de instrumentos sonum vocis animantur (“animados pela voz”) de Isidoro teria sido um pouco diferente da de Daniel, e os complementos que introduziu, muito interessantes:

“[…] tuba, calamus, fistula, organa, pandoria e instrumentos similares. Organum é um nome geral para todos os instrumentos musicais. Os gregos também usavam outro nome, nos que usavam folles [bolsas], mas chamar de organum é o costume mais popular […] Calamus é o nome de uma árvore [planta] que aquece, como as vozes ao se somarem […] Sambuca na música é uma espécie de sinfonia – é uma madeira quebradiça, da qual são feitos os canos. Pandoria, assim chamado pelo inventor [Pan], que primeiro adaptou as palhetas díspares para a música e as compôs com arte estudiosa” (tradução e grifos nossos, *5).

Como se observa, Isidoro relaciona aos organum (ou “às organas”), em sua lista, só instrumentos de sopro – mas cita sambuca e há ligação deste nome com harpas e saltérios, dedilhados cujas partes seriam feitas do mesmo tipo de planta.

Isidoro, religioso que chegaria a ser canonizado pela Igreja Católica, foi bastante secundado; seu trabalho teria sido o primeiro de carácter “etimológico”, por assim dizer (como indica o título). Embora farto de citações a fontes que teria lido, Isidoro já aplicava teorias próprias sem apresentação de fontes e desenvolvimentos específicos (como alguns linguistas ainda o fazem) e citava mitos antigos misturados às análises. Mas conseguimos atestar organa, por exemplo, antes de Isidoro, em versos do Apotheosis, do poeta romano Aurelius Prudentius (ca.348-ca.413): […] organa, sambucas, citharas calamosque tubasque (onde se veriam cordofones listados junto a sopros) e, no mesmo século VI de Boethius e Isidoro, em verso da Carmina do bispo italiano Venantius Fortunatus (ca. 530-ca.609): […] hinc puer exiguis attemperat organa cannis (“Então o garotinho temperava os tubos da organa”, em tradução nossa). Observamos também mais algumas citações semelhantes no livro De Cantu et Musica Sacra, do musicólogo alemão Martino Gerberto (1720-1793).  

No séc. X, outro religioso e musicólogo – Odo de Clúnia (ca.818-942) – ainda citaria Boethius, Isidoro e outros e, finalmente, só a partir do século XI se conhecem esculturas e desenhos sobre organas – porém, como um cordofone de caixa cinturada (como as atuais violas e guitarras): os mais antigos, grandes (ao colo de duas pessoas assentadas), com uma manivela numa extremidade, para acionamento de uma roda, que friccionava as poucas cordas enquando o outro músico acionaria teclas, para alterar as notas de uma das cordas (as demais soavam em nota única, soltas).

O detalhe de execução de notas alteradas em uma corda, enquanto as demais soariam soltas, com notas constantes, é importante para entendermos outros instrumentos com execução semelhante, cujos nomes manteriam ligação com as organas – porém, remetendo aos antigos instrumentos de sopro. É o caso, entre os séculos XI e XII, da mais remota citação a um instrumento nomidado de musa pelo musicólogo Johannes Afflighemensis – “John Cotton” (ca.1053-ca.1121), em De Musica cun Tonario : “[…] é soprado pela respiração humana como a tibia, regulado pela mão como a phiala e animado por um folle [bolsa] como a organa (tradução e grifos nossos *6). Alegando que in musa multimoda conveniunt instrumenta (“na musa muitos instrumentos se misturam”), John Cotton teria descrito algo bem próximo às atuais gaitas-de-fole, dando destaque que o folle viria das organas, segundo os gregos – exatamente como Santo Isidoro teria citado, no século VI. Nas gaitas-de-fole, um som é variado e outros, constantes em uma mesma nota.

Parada para respirar e refletir: é complexo, não? Mais nomes vão se juntando e parece ser tudo aleatório – inclusive, é assim que a maioria dos estudiosos parecem entender, pois não encontramos estudo similar. Entretanto, há um esqueleto lógico ligando tantas variações de nomes, que vamos abordar melhor um pouco à frente…  

A mais antiga escultura de uma organa teria sido observada na Igreja de Saint Georges de Bocherville, na França – segundo o livro Mémoire sur Hucbald et sur ses Traités de Musique (edição de 1841, ver páginas 168-169), do musicólogo e etnólogo francês Edmond de Coussemaker (1805-1876). À época daquele livro, ainda se acreditava que o musicólogo francês Hucbald (ca.840-ca.930) teria sido o autor do Musica Enchiriadis e Coussemaker apontou um vasto desenvolvimento de que o instrumento da escultura representaria a técnica descrita como organum ou diaphonia – mas não apenas ele: entre vários outros estudiosos, a pesquisadora espanhola Rosário Martinez, em seu doutoramento, apresentou um banco de dados bastante vasto de esculturas, desenhos e até várias versões diferentes de manuscritos onde há citações das mesmas organas (cinfonias, em espanhol) e suas peculiaridades.

Os nomes latinos mais observados foram organa, symphonia e sambuca rotata:

– “sinfonia”, assim como hoje, já remeteria a mais de uma nota musical emitida ao mesmo tempo, sons variados; isso gera confusão, às vezes, por poder ser às vezes a organa (instrumento) e outras, ser um conjunto tocando – ambos, afinal, podem ser entendidos como tipos de “sinfonias”;

sambucus (e calamus) se referem a árvores ou plantas das quais se fabricavam partes de harpas e saltérios (cordofones), mas também alguns tipos de “flautas” (chamadas em latim cannis, fistula, tibia e outros nomes);

rotata (ou “de roda”), porque as cordas eram fricionadas por uma roda, que era tocada via uma manivela.

Neste ponto, os nomes já dizem muito, concorda? E desenhos e esculturas vieram a ajudar, depois. Após os primeiros instrumentos (que precisavam de duas pessoas para serem tocados), o tamanho foi diminuindo até próximo ao dos cordofones portáteis atuais – mas as organas acabariam por influenciar mais que só os cordofones…

A principal característica da organa é ter tido vários nomes bem diferentes – e características que, assim como os nomes antigos, às vezes sobreviveriam em outros instrumentos, por séculos. É muito curioso, além de complicado – mas é uma grande aula, que serve para entender um pouco a história de vários instrumentos musicais.

Os antigos nomes latinos teriam sido substituídos pelos séculos – segundo vários estudiosos, em várias línguas – por uma série de nomes que parecem aleatórios, mas, agora que vimos as origens mais remotas, podem fazer algum sentido: 

viola de roda, sanfonia – em catalão;

syphonie, cyfonie, chifonie, vielle à roue – em francês;

simfonia, cinfonia, zanfonia, viola de ruedas, zarrabete – em espanhol;

sinfonia, sanfona, zanfoña, zanfonia – em galês (da Galicia);

ghironda, lyra rustica, lira d’orbo, lyra mendicorum, stampella – em italiano;

syphonie e depois hurdy-gurdy (“gaita-de-fole”) – em inglês;

Drehleier (“gaita-de-fole” ou “sanfona”), Radleier (“lira de roda”), Bauernleier (“lira camponesa ou rústica”), Bettlerleier (“lira de mendigo”), Weiber-Leier (“lira de mulheres”), Uroblaufende (?) – em alemão.

Este levantamento de nomes foi apontado pela já citada Dra. Martinez, que checamos e acrescentamos a partir de outros estudos e fontes, de várias outras línguas. No caso, entendemos que a pesquisadora pouco fugiu às citações relacionadas aos cordofones… Percebe-se que as mais antigas “violas” (nomenclatura surgida a partir do século XII), parecem ter tido seu nome influenciado por aquelas primeiras “violas de roda” – cujo corpo já tinha o formato cinturado, além de cordas. Mas é muito mais…

Do sambucus (a tal árvore, que é o sabugueiro), também seriam feitos instrumentos de sopro – cannis, “cano”, “tubo”… daí, várias flautas múltiplas (que, portanto, poderiam fazer “sinfonias”, ou seja, emitir mais de uma nota ao mesmo tempo) como o sheng chinês, a suégala ou swegilbeine alemã e a launedda italiana /sarda – esta última, chamada também bidula, vidula ou zampgone, em dialetos antigos, confundiu até alguns linguistas experientes, que chegaram a listá-la equivocadamente junto a outros nomes ligados a ancestralidade de “viola”. Como repetimos sempre, é confuso – até para estudiosos de línguas!

E “gaita”? Da gaita-de-foles, cornomusa antiga (por causa de musa, lembra?), percebemos alghaita, em árabe, que remete à “palheta” – assim como paleo, em latim, que seria “palha”, remetendo aos caules secos das plantas utilizadas para construção dos instrumentos. As palhetas, que conhecemos bem dos cordofones dedilhados, são conhecidas de maneira geral como plectros – e estão presentes também nos instrumentos de sopro (pequenas peças que alteram a sonoridade, às vezes móveis, às vezes fixas). Interessante é que as gaitas-de-boca também são conhecidas por “harmônicas” – que remete ao conceito antigo de “sinfonia”, já que também emitem mais de uma nota ao mesmo tempo e que seria o mesmo conceito que teria levado de simphonya a “sanfona” e similares. De organa, organum até “órgão” não é difícil entender o nome dos antigos órgãos, também movidos a ar.

Por isso é preciso ter olhar múltiplo: olha aí nomes diferentes tendo alguma coerência, a partir da ancestralidade: parece “viola”, mas ao mesmo tempo parece sanfona, gaita, flauta… Entretanto, o ponto principal: são sempre instrumentos capazes de emitir mais de uma nota ao mesmo tempo, ou seja, de emitir “sinfonias”!

Percebeu?

Analisando por grupos com remanescências das organas:

– tirando a manivela, a roda e as teclas (que foi o que acabou acontecendo depois), as organas do século XI ainda funcionariam, dedilhando-se suas cordas; e, um pouco depois, as cordas também poderiam ser tocadas por arco – de onde teria surgido a intermediária nickelharpa: tocada por arco, porém ainda com as antigas teclas. E, claro, depois também as atuais violas, que já citamos – tanto dedilhadas quanto friccionadas;

– cordas acionadas por teclas, e/ou via “martelinhos” (também chamados plectros), como teriam sido as antigas cítaras tipo dulcimer, temos hoje cravos e pianos;

– instrumento acionado por manivela, o realengo (ou realejo);

– “órgãos” acionados pelo ar (antigos), eletrônicos (hoje)…

Entendeu a minúcia, os resquícios nos nomes e/ou características físicas (organológicas), rompendo séculos? Se não entendeu, sugerimos dar uma segunda lida – são muitos dados, talvez algo tenha escapado ou não tenhamos sido muito claros.

Mas se entendeu, parabéns: você pode estudar a história dos instrumentos musicais a partir das mais profundas raízes: os registros escritos de seus nomes! Pelo que percebemos, poucos tem coragem de mergulhar tão fundo.

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

No original:

*1: quod proprie simphoniæ dicuntur et sunt, id est qualiter eaedem voces sese in unum canendo habeant. Haec namque est, quam diaphoniam cantilenam vel assuete organum nuncupamus. 

*2: Possunt enim et humanæ voces et in aliquibus instrumentis musicis non modo binæ et binæ, sed et ternæ ac ternæ hac sibi collatione misceri

*3: tubæ, et fistulæ, et citharæ, sambucæ, et psalterii, et symphoniæ

*4: Nam canticum Psalmi est, cum id quod organum modulatur, vox postea cantantis eloquitur. Psalmus vero cantici, cum quod humana vox praeloquitur, ars organi modulantis imitatur.

*5: quae spiritu reflante conpleta in sonum vocis animantur, ut sunt tubæ, calami, fistulæ, organa, pandoria, et his similia instrumenta. Organum vocabulum est generale vasorum omnium musicorum. Hoc autem, cui folles adhibentur, alio Graeci nomine appellant. Ut autem organum dicatur, magis ea vulgaris est Graecorum consuetudo. […] Calamus nomen est proprium arboris a calendo, id est fundendo voces vocatus […] Sambuca in musicis species est symphoniarum. Est enim genus ligni fragilis, unde tibiæ conponuntur. Pandorius ab inventore vocatus […] qui primus dispares calamos ad cantum aptavit, et studiosa arte conposuit.

*6: humano siquidem inflatur spiritu ut tibia, manu temperatur ut phiala, folle excitatur ut organa.

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