Quando um modelo se tornou “Viola Caipira”

“[…] Mas também o que nos dirão da monotonia e insipidez dessas intérminas e uniformes modulações da viola caipira seguindo o sapateado do fandango, obrigada sempre às improvisações poéticas e desafios que formam a fama e o goso [sic] de tantos de nossos homens dos campos?”

[Jornal curitibano A República (08/07/1901, nº. 149, p. 1)]

Viola, Saúde e Paz!

Ao ver acima a citação mais antiga que observamos do nome “viola caipira”, de 1901, muitos poderão pensar que o modelo Viola Caipira que hoje conhecemos viria já daquela época – e muitos também acreditam que viria desde antes, “desde sempre” no Brasil, um único modelo. A verdade dos fatos, entretanto, tem-nos mostrado grandemente que, em termos de instrumentos musicais, quase nunca estes estiveram estáticos em termos de nome, formato e outras características. Ao observar qualquer instrumento hoje, ousamos afirmar que ele certamente não teria sido sempre assim.

Não negamos, entretanto, alguns fatos que podem ter colaborado para entendimentos equivocados, até de estudiosos: é fato que, ao consultar sites de fabricantes de violas dedilhadas, encontram-se datas do início do século XX: primeiro com Tranquilo Giannini, que aponta início de atividades em 1900; depois, a partir de 1902, com Angelo Del Vechio e a partir de 1908, com Romeu Di Giorgio. Todos imigrantes italianos, todos começando a produzir artesanalmente “a nova guitarra espanhola”, em moda pela Europa e todos que, com o passar dos anos, passaram a construir também “violas”, chegando à produção em série, industrial. Não há dúvida que aquele modelo que começaram a desenvolver naquela época é ainda a base das nossas Violas Caipiras atuais – a maior parte delas, industrializadas. A mais antiga evidência literal (documental) que encontramos é de 22 de junho de 1926 – anúncio no jornal Estado de São Paulo: “‘Ao Rei dos Violões’ – Fábrica de violões, violas, cavaquinhos e bandolins” (ESTADÃO, nº 17282, p. 10). É fato também, entretanto, que nenhuma destas fábricas utilizava no início a nomenclatura “viola caipira”…

Também é fato que antes de 1901 as “violas” já teriam começado a ser ligadas com algum certo “caipira”: encontramos o mais remoto registro (de alguma ligação, mas ainda sem uso do nome “viola caipira”) na frase “Um amarelo caipira de viola ao peito” no periódico carioca Jornal do Commercio (11/04/1846, nº101, p.2). A pergunta é: estes fatos são suficientes para apontar que existia uma “viola caipira” àquela época, que era assim que eram conhecidas as violas pelas pessoas?

Já sobre o entendimento coletivo de que a “viola caipira” teria chegado ao Brasil já com os jesuítas e que faria parte de uma “tradição de raiz”, devemos às colocações do genial empresário paulista Cornélio Pires: sua interpretação e incansável defesa do que ele entendeu significar o termo “caipira” – sugerindo que seria de origem indígena e que, portanto, representaria uma cultura ameaçada de extinção – não pode ser citado por adjetivo menor do que “genial”: entendimento criativo, que faz sentido (para quem não buscar ler sobre História, sobre fatos) e bastante agradável, bastante conveniente para uma população que sempre careceu de inclusão social (e que nunca teve grande hábito de leitura e de reflexão). Não à toa Pires vendeu muito, era visionário e muito trabalhador. Não à toa recebeu apoio, anos mais tarde, até de estudiosos, que se baseavam naquele entendimento para ancorar até teorias “científicas”… mas…

Um dos aspectos mais geniais de Cornélio Pires é que ele sabia que não precisava apontar dados comprováveis, estudos, embasamento científico: seus textos eram artísticos (ou “casos e mentiras”, como ele mesmo citou no livro As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho – o queima campo, publicado em 1921). Pires nunca foi “científico” e nunca defendeu que teria sido. Genial! O povo acreditar no que ele dizia é fácil de entender… Agora, porque tantos estudiosos continuam defendendo, sem procurar comprovar cientificamente as alegações, é mais difícil de entender. O único fato que se pode citar é que o caipirismo de Pires “vendia” muito bem – e continua “vendendo”. Mas não há qualquer evidência de existência de uma “cultura caipira” antes de Cornélio Pires.

Voltando o foco mais às violas, é fato (por registros até de fácil acesso público) uma curiosa estatística: entre os anos de 1930-1939, em periódicos por todo o Brasil, cujos acervos históricos estão disponíveis para consulta pela internet, pesquisamos e encontramos o nome “Cornélio Pires” citado 704 vezes; no mesmo período, a palavra “caipira” teve 10.162 citações (!) e o termo “viola caipira”, apenas uma citação, em matéria sobre um professor de guitarra portuguesa, no jornal carioca Correio da Manhã (21/03/1930, nº 10808, p.7).

Não é interessante? Observe que a única citação de “viola caipira” nos jornais é de 1930 – e depois, enquanto o caipirismo e seu criador eram fartamente citados, durante nove anos nem foi citado “viola caipira”…

Sim, é fato: nem no auge do caipirismo a viola foi chamada de “viola caipira” contundentemente, portanto, não era o nome popular do instrumento. Na mesma base de dados, mas incluindo citações em livros, discos e outras fontes, descobrimos que entre 1900 e 1959 houve, sim, citações ao termo “viola caipira”… mas estas não teriam sido nem sequer uma por ano! Quais teriam sido os nomes? Sem qualquer dúvida, o maior número de registros é de apenas “viola” – que inclusive é o que mais aparece desde o século XVI – seguidos às vezes, mas poucas vezes, entre outros, dos nomes “viola cabocla”, “viola paulista”, “viola sertaneja”; já a partir de 1959, também começa a aparecer bastante o nome “viola brasileira”.

Infelizmente mal interpretado e divulgado até por grandes estudiosos, a década de 1960 não foi a década da “viola caipira”: houve, realmente, um aumento de uso deste nome nesta década (para cerca de 4 citações por ano) – porém, ao mesmo tempo, se constata uma dicotomia (uma espécie de “disputa” ou “dúvida pública”) entre “viola caipira” e “viola brasileira”. Ambos os nomes aparecem juntos em várias publicações, denotando que não havia uma denominação certa – haveria, sim, uma dúvida pública a respeito. Este fato é visto, além das matérias de jornais, por exemplo, a partir de 1959, na contracapa do disco Exaltação à Viola, do maestro Élcio Alvares (em matéria do jornalista Vicente Leporace); em 24 de agosto de 1963, artigo do maestro Theodoro Nogueira – Anotações para um Estudo sobre a Viola – publicado no Jornal A Gazeta de São Paulo e replicado, em parte, em 1971 na contracapa do disco Bach na Viola Brasileira; em 1964, no artigo Estudo sobre a Viola, da Revista Brasileira de Folclore, Rossini Tavares de Lima utilizaria inclusive uma abordagem múltipla: “viola caipira, sertaneja ou brasileira” e em 1968, na contracapa do disco Canto Geral, Geraldo Vandré utilizou a expressão “viola caipira ou brasileira, como queiram”.

Como se observa, jornalistas, maestros, folcloristas e artistas ainda não afirmavam categoricamente que a viola seria “viola caipira”. Este é um fato, comprovado não só por estes exemplos, mas por milhares de publicações.

Mas então, afinal: quando é que o modelo mais conhecido (famoso, comercial) de nossas violas (nunca teria havido apenas um modelo, é bom lembrar) se “tornou” Viola Caipira?

É do nosso banco de dados bem considerável que trazemos as evidências: um aumento bem mais expressivo de citações aconteceu partir da década de 1970, que depois só cresceria mais até chegar ao panorama de conhecimento público atual. A este respeito conseguimos contextualizar, histórica e socialmente, a evolução (aproximadamente a partir de 1972) do estilo hoje chamado “sertanejo universitário”, que entre outras mudanças quanto aos antigos “caipiras” trouxeram a substituição das violas em suas formações – e uma resposta comercial da gravadora onde o artista mais famoso era Tião Carreiro, que a partir de 1976 (disco É isso que o povo Quer) começou a utilizar o termo “viola caipira” em suas capas. Naturalmente, esta fase de transição é bem longa (nada, na verdade, é simples e rápido de explicar, de comprovar); remete, inclusive, a disputas de mercado com registros desde 1964, na época do grande sucesso da música Disparada… mas aí já é outra prosa…

Por isso, vamos proseando… 

Páginas

Viola

Caipira

Viola

Brasileira

Viola

Sertaneja

Viola

Paulista

Viola

Cabocla

1950-1959

6.032.672

08

02

21

32

03

1960-1969

4.767.940

39

45

14

06

03

1970-1979

4.165.039

244

39

32

04

04

1980-1989

3.470.167

387

14

51

11

03

Nomenclaturas de violas no Brasil (1950-1989)

Acervos da Biblioteca Nacional Digital do Brasil (645 jornais)

e dos jornais Estado de São Paulo e Folha de São Paulo.

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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JOÃO ARAUJO

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