Violas da Região Amazônica

“[…] deste modo fomos belamente até a residência do Caeté, onde o padre Gonçalo de Veras, que também era vigário da vara para os brancos, nos agasalhou com toda a satisfação, não faltando as danças dos moradores que, à boca da noite, vieram com suas violas fazer festa a seu vigário-geral e juntamente a mim que ia em sua companhia”.

[João Felipe Bettendorf, entre 1690 e 1695 – Crônica da Missão do Maranhão

Viola, Saúde e Paz!

Chega de Barcarena, no Pará (a pouco mais de cem quilômetros de Belém), a notícia: ainda hoje, em julho de 2023, não se fala em “violas” por lá – e já há algumas décadas… É nosso amigo e vizinho Maurílio Theodoro – revisor ortográfico do livro A Chave do Baú – quem traz a espécie de “registro etnológico amador”, por assim dizer. Tínhamos pedido a ele que assuntasse o assunto, em suas férias, e ele teria inclusive localizado certo luthier experiente, por nome de Batista, reformador e construtor de instrumentos modernos, que é quem aponta a triste constatação.

De qualquer forma, resolvemos trazer para este Brevis Articulus pelo menos o que já tínhamos pesquisado: evidências de que, como no restante do Brasil, teria havido instrumentos chamados de “viola” na região Norte, tempos atrás, por um período continuado de cerca de pelo menos quatro séculos. A intenção é de alerta. Não tenhamos dados suficientes para atestar porque elas não teriam resistido, mas como bons admiradores de Guimarães Rosa, “sabemos quase nada, mas desconfiamos de muita coisa”…

Já transcritos antes em nossa monografia, vale lembrar os registros que pudemos levantar até agora, pois são levantamentos raros, verdadeiros “tesouros”:    

O mais remoto registro aponta fins do século XVII (entre 1690 e 1695), segundo duas citações na Cronica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Maranhão, do jesuíta nascido em Luxemburgo João Felipe Bettendorf (1625-1698): numa citação, destacada na abertura, moradores da aldeia de Caeté (PA) teriam dançado ao som de “violas” – e noutra o próprio Bettendorf teria cantado com acompanhamento de rabecas e “violas”.

No século seguinte (entre 1783 e 1792) o naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) apontou “violas que tocam os pretos”, vistas e desenhadas em suas viagens descritas em três volumes do livro Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá 1783-1792. Aquelas “violas”, entretanto, teriam sido cordofones bem diferentes, com corpo retangular e sete cordas cada uma com sua própria haste. Aproveita-se mais deste registro que chamava-se “viola” qualquer cordofone, costume também observado em registros portugueses.

Mais um século passado e, em 1828, em Santarém (PA), referindo-se a indígenas chamados Tapuios, o fotógrafo francês Hercule Florence (1804-1879) afirmaria que eles desejariam pouca coisa da vida, entre elas, “uma viola”. O registro vem do livro   Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825-1829) e é um raro caso onde não teriamos conseguido a versão original para checar – neste caso, temos que confiar na tradução do Visconde de Taunay.

Em 1849 o explorador inglês Henry Walter Bates (1825-1892), em viagem pelo Estado do Pará, passando de barco pela região de Cametá, revelou um tocador e cantador de nome João Mendez. No livro The Naturalist on the River Amazonas ainda se observa a curiosa denominação wire guitar or viola (“guitarra de arame ou viola”) que reduz muito qualquer possibilidade de já ter sido um violão.

Em 02/09/1868 saiu o artigo “O Correio Mercantil e o sr. Amaro Bezerra”, no Jornal do Commercio (RJ), replicado sete anos depois no jornal A Provincia de São Paulo. Nele, o apontamento de “violas e guitarras” que teriam sido tocadas na região amazônica, segundo o Dr. José Maria de Albuquerque e Mello (?-?) – “juiz de direito, ex-chefe de policia do Amazonas, ex-deputado geral, etc.”.

Já em 1876, no livro Os Selvagens, que teria sido baseado em viagens feitas pela região amazônica, o folclorista mineiro José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) apontou “violas” como companheiras fiéis dos tapuios em viagens de canoa no Pará. Couto Magalhães indicou serem chamadas guararápeva aquelas “violas”, que armariam com três cordas de tripa. O pesquisador paulista José Ramos Tinhorão (1928-2021), no livro História Social da Música Popular Brasileira, criticou severamente este uso de violas por indígenas. Nós realmente observamos apenas mais um apontamento, feito pelo botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que cerca de 1818 teria visto numa aldeia – onde hoje seria Nova Almeida (ES) – indígenas que fabricariam guitares muito bem feitas, segundo ele com madeira de pés de genipapo e também de outra madeira branca, chamada tajibibuia. O livro é Voyage dans le district des diamans et sur le littoral du Brésil (“Viagem ao território dos diamantes e ao litoral do Brasil”). Também observamos que termo semelhante ao apontado por Couto de Magalhães teria sido apontado antes, em 1867, no livro Glossaria linguarum Brasiliensium, do botânico alemão Carl Martius (1794-1868): “[…] guara-peba: vióla i. e. [id est, ‘isto é’] arco (Uira-para) chato, Guitarre”.

Em 1883, observamos entre “violeiros” (fabricantes e/ou revendedores?) de várias regiões do país citados no Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Imperio do Brazil, do tipógrafo alemão Eduard von Laemmert (1806-1880), constariam os nomes de Francisco Alves dos Santos e Raymundo Ernesto Pereira de Souza, ambos de Belém (PA).

Entre 1973 e 1978, em pesquisas de campo sobre Violas de Cocho publicadas no livro Cocho Mato-Grossense, um alaúde brasileiro, a Dra. Julieta de Andrade registrou, entre outros exemplos de modelos de violas com número diferente de cordas: “a viola do Carimbó de Vigia, Pará, apresenta cinco cordas simples”. Infelizmente a pesquisadora não informou a fonte destas informações e também não foi observado na sua lista de referências nenhuma que indicasse o rastreamento e conferência.

Finalmente, entre 2011 e 2013, a equipe que cuidava da identificação do Carimbó como bem cultural candidato ao Registro nos Livro de Patrimônio Imaterial, em dossiê IPHAN a respeito, teria feito a triste constatação de que violas (e rabecas e pandeiros) “[…] já não mais seriam observados nas formações” ([IPHAN], 2013, p. 39).

Mesmo com a fama que o modelo Viola Caipira desenvolveu aproximadamente nos últimos 50 anos, em nossos monitoramentos percebemos pouquíssimos registros de violas e/ou violeiros na Região Norte. Uns três, se tanto, é o que podemos dizer – mesmo assim, que não estariam muito presentes nas redes sociais virtuais.

O ponto é que algum modelo de viola teria existido por lá por séculos, e teria desaparecido – ao contrário do resto do país.

Não temos como atestar ainda as possíveis motivações do fenômeno, pelos registros levantados – que são verdadeiras raridades em pesquisas sobre as violas brasileiras. Naturalmente, há a distância física e contextos histórico-sociais que apontam alguns outros aspectos culturais específicos da Região Norte do país – mas não podemos deixar de observar que as pesquisas sobre violas dedilhadas têm, na histórica maioria das vezes, o foco no modelo Viola Caipira.

Violas teriam existido pelo Norte – mesmo que, a princípio, apenas “instrumentos chamados de viola”; mas é também o que teria acontecido em Portugal e no restante do país, nos primeiros séculos: a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas (origem que só nós temos divulgado, por termos pesquisado com muito afinco), teria sido exatamente a partir e um nome forte – “viola” – mas “genérico”, que depois teria sido adotado para instrumentos de verdade, distinguíveis, únicos (hoje consolidados). É o que postulamos e contextualizamos cientificamente por nossos estudos ainda pouco conhecidos e quase nada apoiados.

A motivação comercial e a preferência às vezes até afetiva em torno do modelo Viola Caipira não são ilegais – longe disso, como sempre destacamos: mas a falta de conhecimento, citações e apoios aos demais modelos claramente prejudicam a sobrevivência deles e do que representam). Este sempre foi, inclusive, o principal argumento para nossa defesa solitária do Reconhecimento oficial das violas como Patrimônio Imaterial do Brasil, desde 2015.  Nossa ação, ao descobrir e divulgar a contextualização científica de toda uma Família das Violas Brasileiras é no sentido de alertar que alguns modelos (verdadeiros tesouros culturais brasileiros) correm o risco de simplesmente desaparecer com os anos, como parece ter acontecido com as violas da região Norte. 

Muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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JOÃO ARAUJO

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