Violas dedilhadas e o eruditismo

Viola, Saúde e Paz!

O lançamento do livro de partituras J. S Bach – Viola Brasileira, do violeiro Vinícius Muniz (brasileiro radicado em Barcelona), vem trazer à memória uma interessante conexão histórica das violas dedilhadas brasileiras. O músico, que aponta que estava a aprimorar a técnica de escrita específica há cerca de 10 anos, realmente já havia lançado um primoroso disco, com mesmo nome, em 2017.

No livro “A Chave do Baú” e em nossas pesquisas listamos várias ações de aproximação histórica das populares violas com a música mais estudada, chamada “erudita”. Teria começado (ao que pudemos apurar) com o Padre Mestre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que tanto teria aprendido quanto ensinado teoria musical com “violas de arame” – passando por citações de “violas” em peças do maestro carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e atingindo um interessante capítulo na década de 1960, quando (apesar de pouco citado e até distorcido por estudos convencionais sobre nossas violas) houve uma clara dúvida pública entre as nomenclaturas “viola caipira”, “viola sertaneja” e “viola brasileira”, terminada na década seguinte, 1970, com a ascensão do atual nome do modelo Viola Caipira.

Foi àquela época – 1971 – e especificamente sobre a obra do grande compositor alemão Johan Sebastian Bach (1985-1750) que já havia sido feito o disco Bach na Viola Brasileira, pelo maestro paulista Theodoro Nogueira (1913-2002). À maneira que pode, Theodoro havia escrito em partitura as peças, que originalmente tinham sido criadas para outros tipos de instrumentos, como violinos. As transcrições foram interpretadas e gravadas pelo violonista Geraldo Ribeiro.

Haveria algum motivo para peças de Bach serem transcritas para um instrumento popular como a viola? Entendemos que sim… pois nas décadas de 1920 e 1930 o guitarrista espanhol Andrés Segovia (1893-1987) tinha encantado o mundo ao traduzir para o violão peças de Bach – colaborando muito para que o “irmão mais novo das violas e guitarras” seja hoje aceito em salas de concerto e, principalmente, em escolas eruditas de música. Não temos dúvida que a intenção de Theodoro Nogueira teria sido atingir algo semelhante para as violas dedilhadas, que então ele estava a descobrir e pesquisar – e que ele sabia não eram sequer bem conhecidas no Brasil, muito menos pela comunidade erudita ocidental.

Este foi o caminho que as violas vinham traçando, naturalmente – até serem engolidas pela ação de mercado, que atrelou às vendas a nomenclatura “caipira” e todo um contexto de caipirismo – um grande entendimento coletivo que tenta cercear o instrumento a determinados estilos e toques.

Por um lado, se o mundo levasse a sério, talvez pudéssemos apresentar como “ineditismo” sermos os únicos no mundo onde se queira atrelar um instrumento musical somente a um determinado estilo – e seu nome, a um entendimento dito “folclórico”, porém com registros apenas 60 anos antes – e antes do nome ser atribuído! Ou seja: seria o primeiro folclore a ter ações retroativas da História Mundial…

Não deixaria de ser ousado querer que o mundo aceite uma descrição desta sobre fatos, pois, pelo menos em nossas profundas pesquisas sobre a história dos cordofones ocidentais, desde o século II aC., não encontramos nada sequer semelhante… Mas, naturalmente, o mundo não cairia facilmente nesta história agradável e conveniente: é preciso que se tenha uma população de DNA religioso, com pouquíssimo hábito de leitura e que aprecia histórias que levantem o moral dos que pouco lêem e que não iriam jamais buscar ler dados históricos para comprovar nada que seja tão agradável aos ouvidos (e também aos bolsos de quem lucra com o entendimento coletivo).

O século XXI, na verdade e felizmente, aponta para um retorno ao que estava em crescimento na década de 1960 e que, graças aos novos estudos, não deverá ser novamente apagado por entendimentos coletivos e ações comerciais sem base em registros. Desde 2005, conforme listamos no livro “A Chave do Baú”, ações espontâneas vêm aproximando cada vez mais as violas dedilhadas do mundo musical normal e suas aplicações múltiplas – em especial, junto a verdadeiras orquestras.

“Verdadeiras” porque faz parte do entendimento coletivo chamar grupos formados por apenas um tipo de instrumento de “orquestras de violas”… O mais preciso seria chamar estes grupos de “naipes” ou ensembles (termo francês), vez que a principal características das orquestras (conhecidas talvez no mundo todo) – seja a multiplicidade de instrumentos, para prover variadas texturas à música executada. Para este entendimento correto, entretanto, seria necessário ter conhecimento mínimo de música de verdade (um mínimo de leitura e pesquisa).

Porém… não é curioso como a nomenclatura erudita convencional “orquestra” chama a atenção, mesmo de quem não está interessado em ler e descobrir significados reais de práticas realizadas pelo mundo afora? Esta curiosa aplicação do nome pode nos deixar curiosos se teria alguma ligação com a aproximação das violas e o eruditismo… mas, certamente, será apenas coincidência. Ou não?

Embora hoje presente nas grades de poucas universidades como instrumento digno de um bacharelado, aos poucos as fundamentações científicas e as práticas vão recuperando o lugar normal de qualquer instrumento musical com a capacidade que as violas têm.

Uma das ações mais diretas quanto a esta recuperação do processo normal seria o Reconhecimento Oficial do instrumento como Forma de Expressão digna de registro junto aos Livros de Patrimônio Imaterial – que pode levar ao reconhecimento mundial pela Unesco. Quando conseguido, todas as escolas, a mídia e a opinião pública vão voltar olhos para as curiosas (e exclusivas) violas dedilhadas brasileiras e portuguesas –  e fundamentações e exemplos não faltarão para atender esta curiosidade. Já tentamos esta ação, pelo Reconhecimento, em 2017 – tendo sido conseguido no âmbito Estadual, em Minas Gerais – mas para o Reconhecimento Nacional, ainda falta conscientização e interesse da classe envolvida (lerem um pouco mais também ajuda), mas o tempo certo há de vir.

Só que isso já é outra prosa! Por hora, parabéns e sucesso ao Vinícius Muniz – e indicamos a aquisição e uso (quem sabe, até como presente?) de seu belo trabalho.     

E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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JOÃO ARAUJO

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