VIOLAS HOJE: Rio de Violas (RJ)

[…] A rua das Violas, hoje Teófilo Ottoni, antes denominou-se de Domingos Coelho e dos Escrivães. O nome de Rua das Violas lhe adveio da circunstância de habitarem nela fabricantes desse instrumento musical.

[Rodolfo Augusto de Amorim Garcia (1873-1949), historiador potiguar, em Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 1937 – p. 218].

Viola, Saúde e Paz!

Foi em 2014: fomos convidados para um encontro com o grupo Caipirando – então, “Alma carioca de Viola”, em Jacarepaguá (RJ). Tocamos juntos, mostramos alguns números com o poeta matuto Geraldo do Norte, palestramos, comemos comida boa, demos boas risadas juntos… Na palestra, foi repetido o que já tinha sido falado em Natal (RN), Sapiranga (RS), Campo Grande (MS) e outros lugares: “Vocês deveriam procurar o que teria de mais autêntico de viola em suas regiões, seus Estados – e não tentar seguir o que outros Estados já fazem bem feito, há mais tempo e com propriedade. Dá menos dinheiro e notoriedade que o caipirismo, sem dúvida: porém, teria mais valor a novidade, a defesa genuína de raízes regionais – e viola tem por todo o Brasil, basta procurar que acha”.

Estavam, entre outros, o saudoso Sebastião Victor, com sua esposa Iara Cristina, Henrique Bonna… O encontro foi em propriedade que parece seria do Júlio, sobre o qual infelizmente não temos ouvido falar ultimamente (talvez tenha se afastado) – mas vários outros, ficamos felizes de reconhecer os violeiros cariocas hoje mais atuantes.

Talvez não seja agradável nem usual de ser citado, mas sobre afastamentos: já peleamos há alguns anos pela viola (tanto para ganhar dinheiro quanto sendo mentores ou participantes voluntários de eventos que beneficiem toda a classe) e sempre alertamos sobre ser incompleta a visão embasada em apenas um dos modelos (o modelo Viola Caipira), num país cuja verdadeira tradição é ser multicultural. Isso incomoda pessoas que tem ligação afetiva muito grande com o caipirismo (além de interesses comerciais/financeiros), que se afastam como se pedras tivessem jogadas na “Cruz”… Não só estes, mas, de forma geral, pessoas não gostam de quem questiona, critica, traz novas visões – e sempre defendemos (admitimos, com palavras nem sempre bem escolhidas, às vezes indevidamente irônicas e/ou sascásticas) o que hoje comprovamos cientificamente, com dados, e colocamos de maneira bem mais adequada: é preciso repensar o que tem sido dito e defendido já há algumas décadas sobre as violas, muita coisa está mal entendida, mal interpretada ou talvez tenha passado despercebida na História. Naturalmente, não mantemos rancor contra ninguém (posto admitirmos erros nossos também, durante o processo), nem mesmo de quem eventualmente tente nos prejudicar com atitudes, digamos, “mais fervorosas”: somos um povo de DNA de religiosidade exacerbada, somos passionais. Só podemos esperar que o tempo passe e a compreensão (via leitura e reflexão) e/ou a tolerância vença afinal no coração de todos nós (nós, os que temos bom coração, de amor à viola).

Mas falando de coisas boas, o que interessa é que os cariocas tem sido atuantes mesmo: de 13 a 21 de maio de 2023 acontece a 5ª (!) edição do “Encontro de Violeiros do Rio de Janeiro”, com programação totalmente gratuita que incluiu shows, recitais, oficinas, rodas de violas e outras atrações. Se já não bastasse, o movimento sempre reserva espaço para participação de pessoas ligadas à viola de várias outras regiões brasileiras – e o evento encampa não apenas o modelo Viola Caipira, mas vários dos atuais modelos da Família das Violas Brasileiras.

Sem dúvida, é dos mais significativos movimentos regionais da viola no Brasil e aponta estar “namorando” (ou “sintonizando”) com a atual fase de mudança (ou ampliação) de visão sobre as violas brasileiras. Um dos ilustres pesquisadores convidados de uma edição passada chegou a afirmar publicamente que seria “o maior” movimento regional já feito – mas teria sido apenas um arroubo de entusiasmo, pois sendo grande pesquisador, ainda mais nascido em Minas Gerais, não poderia “fazer de conta” ou “esquecer” que não aconteceu, por exemplo, o encontro de mais de 600 violeiros em Uberlândia, em 2017 (recorde mundial concedido pelo Guiness Book em 2018) ou o Reconhecimento Oficial como Forma de Expressão válida ao Registro nos Livros de Patrimônio Imaterial (o único Estado brasileiro até agora a conseguir e que também foi firmado em 2018) – só para citar dois eventos recentes ocorridos em Minas Gerais. Sem querer ser covarde, é importante lembrar (não ao colega pesquisador mineiro, que o sabe, mas deve ter esquecido, em seu entusiasmo), mas aos demais que nos lêem, que também vêm de nascidos em Minas Gerais iniciativas infelizmente já encerradas, como o Festival Nacional Voa Viola (2010 e 2012) e o Prêmio Nacional de Excelência da Viola (2011 e 2013) – estes que não seriam movimentos regionais, mas nacionais.

O movimento carioca tem, sem dúvida, grande valor histórico e torcemos que continue para sempre; mas há alguns outros Estados que também tem tentando se organizar pelos tempos que valem citação:

Em Caxias (RS), os Violeiros da Serra Gaúcha já vem há alguns anos com boas realizações – onde se destaca Valdir Verona, de atividade intermitente e variada, inclusive com o quarteto Violas ao Sul, que junta violeiros de Porto Alegre e outras regiões do Rio Grande do Sul. Isso, sem contar as sementes lançadas por Luciano dos Santos, de Sapiranga: além das “orquestras” que ajudou a implantar, de 2004 a 2011 seu Grupo de Viola Gaúcha espalhou shows de violas tocando música gaúcha (!) pelo Estado, a partir de Sapiranga.

No Paraná – que teve entre 2004 e 2009 o grande projeto educativo Viola Lindeira (mais de 1200 alunos!), coordenado por membros da chamada Orquestra Paranense de Viola, onde se destacou Ricardo Denchuski – houve em 2017 o 1º Encontro Paranense de Violas: um grande encontro, que reuniu representantes das várias vertentes de viola atuantes no Estado, onde se destacam pela iniciativa e visão Maikel Monteiro e José Cândido de Morais. Sem contar que no litoral (e incluindo aí também o litoral paulista), verdadeiros herois como Rodolfo Vital pelejam há décadas pelas Violas Brancas (Caiçaras / Fandangueiras), o que não deixa de ser um certo “movimento”.

Sempre lembrando que de Pernambuco, nos anos de 1960, veio o nem sempre corretamente lembrado pelos violeiros Movimento Armorial, onde se destacaram violeiros como Heraldo do Monte e Antônio Madureira, em 2020 aconteceu a 1ª Mostra de Violas Instrumentais Nordestinas – um grande encontro multi-estatal, capitaneado por Rainer Miranda Brito, que lançou a semente para uniões futuras na região (oxalá!). Na Bahia, desde que o Samba de Roda do Recôncavo conseguiu Reconhecimento como Patrimônio Imaterial (inclusive mundial, em 2005), levando consigo “de tabela” (ou, oficialmente, como “bem associado”) as Violas Machetes, sempre há realizações em certa continuidade pelos anos, dentro das limitações de herois como Milton Primo.  

Mineiros e paulistas não demonstram historicamente grandes indícios de verdadeiros “movimentos de união” da classe por objetivos comuns – mas algumas realizações são de valor inegável, como os já citados em Minas e, em São Paulo, os espaços para shows de viola mantidos há décadas pelos sistemas SESI e SESC, além de eventos como o Prêmio Inezita Barroso e o festival Revelando São Paulo.

Entendemos que ainda falte “consciência de classe”, principalmente consciência nacional – por exemplo, nossa proposta de batalhar todos juntos pelo Reconhecimento Nacional da Viola como Patrimônio Imaterial não encontrou ecos e se encontra arquivada, sem que a classe demonstre se importar (nem mesmo os mineiros, embora pudessem testemunhar que há benefícios por terem já conseguido o mesmo citado Reconhecimento Oficial no âmbito Estatal). A maioria dos mineiros parece continuar sendo “solidário só no câncer” (como teria dito Otto Lara e imortalizado por Nelson Rodrigues). Já os paulistas que acreditarem que seriam herois conquistadores, que depois teriam se travestido em humildes “caipiras” (um milagre da genética, talvez?), quem sabe então não devessem finalmente assumir também a dívida social dos crimes cometidos pelos bandeirantes? Naturalmente, estas últimas são só brincadeiras provocativas: por favor, não atire neste atrevido mensageiro, combata (se puder) os registros históricos – como já há alguns que o fazem nas “redes fake sociais” e “grupos de zap das famílias”…

Falando sério, o ideal seria que cada um se visse como não mais do que morador de um dos Estados da Nação, cercado de irmãos (e não concorrentes) por todos os lados. E tentassem juntar forças em prol de todas as violas, por todo o Brasil.    

Entretanto, mesmo com as críticas, entendemos ser extremante louvável que eventos e movimentos significativos estejam a acontecer: significa que a fase de transição está em processo – ou, no popular: “enquanto há vida, há esperança”, “onde há fumaça, há fogo” e similares.

Não: os violeiros cariocas ainda não teriam se dado conta da importância histórica de violas registradas em abundância no Rio de Janeiro “Capital do Império” (séculos XVIII e XIX), antecessoras do samba, do choro, das modinhas – apesar de sempre citarmos em nossas publicações e de ter existido até uma “Rua das Violas” por lá, àquela época… Uma excelente “Viola do Rio” a ser lembrada, já que o Brasil parece tê-la “esquecido” (talvez por ter sido “Viola Preta”, como gostamos de citar)… Mas os cariocas estão no bom processo, entendemos que com coração puro – e há representantes no movimento que merecem todo o respeito, com destaque para os queridos de perfis inclusive acadêmicos como Andréa Carneiro e Bruno Reis – e até Henrique Bonna que, mesmo não sendo “acadêmico”, está sempre antenado com as pesquisas e tudo o mais que rola sobre a viola pelo Brasil. Cariocas ainda não teriam percebido (ou dado o devido valor) à ligação de violas com outros cariocas importantíssimos historicamente como o Padre Mestre José Maurício Nunes Garcia, Domingos Costa Barbosa, Joaquim Manoel, o “Chalaça” (o amigo de D. Pedro I), entre vários outros pretos de destaque.

Há uma dificuldade a ser vencida, não apenas por cariocas, mas por quase todos os brasileiros, pois os registros de época mais importantes (e numerosos) seriam de estrangeiros, no início do século XIX – que de fato relataram “guitarras” (e termos similares, em suas diversas línguas originais). Muitos interpretaram e traduziram equivocadamente aqueles instrumentos como “cavaquinho” ou “violão” – mas em nossos estudos já atestamos, com base em centenas de dados e contextualizações histórico-sociais, que, na verdade, teriam sido cordofones chamados de “viola” por portugueses e brasileiros. Pode-se se dizer que não teriam sido “violas”, de fato… mas era assim que eram chamadas, assim se consolidaram e foi assim que nasceram as nossas violas dedilhadas. Se aquelas não eram, então as atuais também não o seriam – então, melhor não dar tiro em ninguém, muito menos nos registros históricos.  

Nosso sonho profético? Um dia, uma grande escola de samba carioca fazer um desfile de homenagem-denúncia sobre as violas dos escravizados, predecessoras dos cavaquinhos e violões (e do samba, e do choro, e das modinhas…); um grande desfile com todos estes pretos maravilhosos sendo lembrados e reverenciados, para que o Brasil possa finalmente vislumbrar um pouco do que o preconceito velado deixado como esquecido nas últimas décadas… Já vemos em sonho até os carros alegóricos – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

Principais Referências:

Sobre as violas antigas (antecessoras) citadas no Rio de Janeiro mas também e outros Estados, checar principalmente publicações de visitantes estrangeiros do início do século XIX, entre outras como:

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. v.1, 2, 3. Paris, Firmin Didot Fréres, 1834 / 1835 / 1839.

FREYREISS, Georg Wilhelm. Reisen in Brasilien. In: Monograph Series – Staten Etnografiska Museum (Sweden), Publication 13, p. 431-554, Stocolmo, 1968

FREYREISS, Georg Wilhelm. LOFGREN Alberto (trad.). Viagem ao interior do Brasil nos anos de 1814-1815. Revista do Instituto Histórico e Geographico de São Paulo, v. XI, p. 158-228, São Paulo, Typographia do Diário Offcial, 1907.

KOSTER Henry – Travels in Brazil. Londres: PATERNOSTER-ROW, 1816

LINDLEY, Thomaz. NEWLANDS NETO Thomas (trad.). Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969.

LINDLEY, Thomaz. SOULÉS François (trad.). Voyage au Brésil. Paris: Leopold-Collin, 1806.

NEUWIED, Prince Maximillian. Travels in Brazil in 1815, 1816, and 1817. London: R. Philips,1825.

RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Mulhausen, 1835.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orleans: H. Herlusion, 1887.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage aux sources du Rio de S. Francisco et dans la provence de Goyaz. [Tomos 1 e 2]. Paris: Artus Bertrand, 1847-1848.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil. [Tomos 1 e 2]. Paris: Libraire Gide, 1833.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais. [Tomos 1 e 2]. Paris: Grimbert Et Dorez, 1830.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. [Tomos 1 e 2]. Paris: Artus Bertrand, 1851.

WELLS, James W. Exploring and traveling three thousand miles through Brazil: from Rio de Janeiro to Maranhão. v. 1 e 2, 2ª ed. Londres: Sampson Low, Marston, Searle & Rivington, 1887.

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