A LIDA E O CAFÉ COM RAPADURA

“Crônicas do Viola,” de André Viola.

A LIDA E O CAFÉ COM RAPADURA

Ainda estava escuro quando o primeiro estalo da lenha rompeu o silêncio da madrugada. O cheiro do café fresco, recém-coado, logo se espalhou pela cozinha, misturado ao calor suave que saía do fogão à lenha. Era assim todas as manhãs, naquela rotina antiga e confortável, onde cada gesto parecia ter sido esculpido pelo tempo.

Minha tia, sempre a primeira a levantar, quebrava pequenos pedaços de rapadura e deixava ao lado das xícaras, como quem prepara um ritual. Era uma tradição que vinha de longe, do tempo dos meus avós e dos pais deles. O café com rapadura era mais do que um café da manhã; era quase uma cerimônia. Um pequeno pedaço da doçura da terra, ali para nos lembrar que o amargo do café e o doce da rapadura tinham um jeito próprio de se complementar – como a vida na roça.

Enquanto o céu clareava, o pessoal se reunia para a lida. Cada um conhecia bem seu papel, mas sempre havia espaço para a prosa, entre uma tarefa e outra. “Hoje o tempo tá bom pra plantar, né?” dizia o compadre João, ajeitando o chapéu na testa enquanto preparava o arado. E assim seguíamos, entre o silêncio do trabalho e as palavras simples que faziam tudo mais leve. Não havia pressa, mas tudo era feito no tempo certo, como se as horas seguissem o compasso da terra e não do relógio.

Na hora do descanso, alguém sempre puxava a viola e as cantigas iam brotando. O som da viola cortava o ar com uma ternura que só quem vive no campo sabe entender. Era como se aquelas cordas tivessem o poder de trazer à tona memórias de tempos passados, de um jeito que fazia a gente se sentir parte de algo maior, como uma história que nunca termina.

Hoje, quando lembro dessas manhãs de café e rapadura, sinto uma saudade que aperta o peito. Saudade do sabor, das conversas ao pé do fogão, do cheiro da terra molhada depois da chuva. Cada pedacinho dessa vida simples é uma lembrança viva, como se as raízes que um dia mergulhei nesse chão nunca tivessem sido arrancadas.

E assim é a lida. Um pouco de café, um tanto de rapadura, e muito trabalho honesto. A gente vai, mas leva a roça dentro da alma.

THE DAILY GRIND AND COFFE WITH RAPADURA

It was still dark when the first crackle of the firewood broke the silence of dawn. The aroma of freshly brewed coffee filled the kitchen, blending with the gentle warmth coming from the wood-burning stove. Every morning was like this, a familiar rhythm where each action seemed sculpted by time.

My aunt, always the first to rise, would break off small pieces of rapadura and set them next to the cups, as though preparing a ritual. This tradition came from far back, from my grandparents’ time and their parents before them. Coffee with rapadura was more than just breakfast; it was almost ceremonial—a little sweetness from the earth, there to remind us that the bitterness of coffee and the sweetness of rapadura had their own way of balancing each other, like life in the countryside.

As dawn broke, everyone gathered to work. Each person knew their part well, but there was always room for a little talk between tasks. “Good weather for planting today, right?” my uncle João would say, adjusting his hat as he prepared the plow. And so we went on, alternating between the silence of work and the simple words that made everything lighter. There was no rush, but everything moved in its own time, as if the hours followed the rhythm of the earth rather than the clock.

During the break, someone would pick up the viola and familiar tunes would fill the air. The sound of the viola cut through the quiet with a tenderness that only those who live close to the land can understand. It felt as if those strings could bring memories to life, connecting us to a story larger than ourselves, one that would never end.

Today, when I think of those mornings of coffee and rapadura, there’s a longing that fills my chest. I miss the taste, the talks around the stove, the scent of earth after the rain. Every bit of that simple life is still alive in my memory, like roots planted deep in the soil that have never been pulled up.

And that’s how it is, the daily grind. A bit of coffee, a touch of rapadura, and a whole lot of honest work. We may leave, but the countryside stays within us, forever.

COMPARTILHE
Facebook
WhatsApp
X

CRÔNIAS DO VIOLA

UM SIMPLES ENCONTRO COM A VIOLA

  “Crônicas do Viola,” de André Viola. UM SIMPLES ENCONTRO COM A VIOLA Naquela manhã de céu limpo, o cheiro da terra molhada ainda pairava no ar, lembrança da chuva que acariciara o...

A LIDA E O CAFÉ COM RAPADURA

“Crônicas do Viola,” de André Viola. A LIDA E O CAFÉ COM RAPADURA Ainda estava escuro quando o primeiro estalo da lenha rompeu o silêncio da madrugada. O cheiro do café fresco...

NOITE DE LENDAS

  “Crônicas do Viola,” de André Viola. SACI E CURUPIRA Lá vem ele, o Saci, pulando num pé só com um sorriso maroto no rosto, brincando de assustar quem se atreve a encarar a noite no...

A LUA E A VIOLA

  “Crônicas do Viola,” de André Viola. A LUA E A VIOLA A noite no sertão é um espetáculo à parte, e a lua, sempre imponente, reina absoluta no céu. Dizem que quando ela está cheia, a...

O SONHO DE UM RANCHINHO

  “Crônicas do Viola,” de André Viola. O SONHO DE UM RANCHINHO Há dias em que sinto que o mundo pede uma pausa. Nesses momentos, imagino uma vida mais tranquila, longe da correria, em...

O CARREIRO E A VIOLA

“Crônicas do Viola,” de André Viola. O CARREIRO E A VIOLA Era fim de tarde na roça, o sol tingia o horizonte de laranja e vermelho, e a calmaria do campo era quebrada apenas pelo som...

A VIOLA E O VIOLEIRO

“Crônicas do Viola,” de André Viola. A VIOLA E O VIOLEIRO A história da viola e do violeiro começa muito antes do primeiro acorde. No meio dessa conexão mágica entre o talento e a terra...

O CORAÇÃO DA ROÇA

“Crônicas do Viola,” de André Viola. O CORAÇÃO DA ROÇA Naquela roça simples, o tempo parecia parar.  A cozinha, sempre movimentada e acolhedora, era o centro de tudo.  O fogão a lenha...

A DESTRUIÇÃO DA TERRA

“Crônicas do Viola,” de André Viola. A DESTRUIÇÃO DA TERRA O caboclo da roça sempre viveu em harmonia com a terra. Plantava no tempo certo, colhia com fartura e compartilhava com os...