14 Dez, 2023

COMO EUROPEUS VEEM AS VIOLAS

COMO EUROPEUS VEEM AS VIOLAS

I have chosen this fiddle among the many, because it is a good illustration of the oval vielle of the twelfth, thirteenth and fourteenth centuries, and because the name “viola” is written in the MS. just above it.

(“Escolhi este fiddle entre vários porque é uma boa ilustração da viola oval [?] dos séculos XII, XIII e XIV, e porque o nome “viola” está escrito no MS, logo acima).

[Kathleen Schlesinger, no livro Instruments of Modern Orchestra and Early Precursors of Violin, 1910, p.393].

Viola, Saúde e Paz!

No processo de aprofundamentos das pesquisas, característico destes Brevis Articulus que aqui publicamos, chegamos à checagem de algumas fontes pouco citadas por estudiosos pelos tempos, como é o caso da musicóloga britânica Kathleen Schlesinger (1862-1953), da qual só vimos uma citação, na Encyclopédie de la Musique, de 1925, coordenada pelo musicólogo francês Albert Lavignac (1846-1916).

Para nossa surpresa, é um trabalho primoroso, repleto de análises e reproduções de desenhos a partir de manuscritos, alguns bem raros. No início do século XX, a então curadora do Museu Britânico teria sido bem respeitada por suas publicações. Talvez, com o passar do tempo, possa ter sido menos citada por ter sido mulher: infelizmente, a estatística de nosso banco de dados, construído a partir dos estudos mais citados desde o século XV (e fontes citadas nestes), aponta número bem menor de autoras. Entretanto, atestamos que fizemos descobertas muito importantes exatamente nestes estudos “femininos” pouco lembrados.

Mas talvez Schlesinger tenha sido pouco citada também por algumas posturas particulares que teria escolhido. Por exemplo, é a única que observamos que teria inventado e adotado a nomenclatura guitar-fiddle para designar o principal conjunto de antecessores do violino… Ela mesmo explicou que era um nome moderno, de cunho próprio (além do próprio termo fiddle não deixar de ser um genérico moderno, inventado para nomear qualquer friccionado por arco)… mas é uma colocação infeliz, pois são dois nomes ligados a formas de tocar bem distintas (dedilhada e friccionada por arco). A tendência esmagadora dos estudiosos é separar categoricamente estas duas classes de instrumentos. Separam até demais, diríamos se fôssemos perguntados.

Parece que o conservacionismo (assim como certa forma de usar nomenclaturas) impera na musicologia há muitos anos, assim como em outras áreas. Isto serve inclusive como alerta para nós, que esperamos, então, certa resistência a nossos questionamentos atrevidos, com embasamentos inéditos, vários deles baseados em estudos de nomes, que nunca vimos terem sido feitos tão profundamente antes…

Outra surpresa encontrada no livro da inglesa foi o exemplo em destaque na abertura, até certo ponto atestador de algo que constatamos por centenas de apontamentos: a maioria dos estudiosos europeus, embora excelentes como Schlesinger, teriam se equivocado nas análises, ao considerar “violas” apenas como instrumentos friccionadas por arco, deixando assim as violas dedilhadas fora das equações investigativas.

De certa forma, “é bom para nós”, pois nos deixaram então um caminho ainda inédito na musicologia ocidental (e por isso mergulhamos fundo nele).

No apontamento da pesquisadora (assim como no restante do livro) observa-se como ela na verdade veria todas as vielles (“violas”, em francês), por todo o território europeu, dos séculos XII ao XIV. A base seria aquele instrumento, que ela teria visto em um manuscrito (identificado como Sloane 3983), referente à região belgo-francesa Flandres do século XIV e que, segundo ela, seria um fiddle (ou seja, “um instrumento tocado por arco”). Um dos principais argumentos para ser chamado por este nome seriam dois furos no formato da letra “C” vistos na caixa de ressonância metade ovalar, metade achatada como um quadrado com os cantos arredondados. Segundo ela, instrumentos tocados por arco não teriam bocas redondas nas caixas, o que é uma tese que até poderia justificar o desenvolvimento acontecido pelos séculos, mas não atesta que todos os instrumentos teriam sido assim no passado, principalmente durante um grande período de transição… Um período pouco observado em estudos antigos, mas teria existido.

O desenho não indica como teria sido o fundo do instrumento, se liso ou abaulado. Quatro cordas, que passariam por um cavalete onde se veem cinco furos representados (?) e que se estenderiam pelo tampo, onde não se vê em detalhes, mas parece que as pontas seriam fixadas na lateral ou fundo. Na cabeça, na forma de trevo de três folhas, apenas três tarraxas grandes, desenhadas de forma livre, artística.  O suposto arco não constaria do desenho. O manuscrito, escrito em latim, apontaria literalmente o nome viola que, embora a pesquisadora não tenha citado o mais remoto registro conhecido, demonstrou saber que teria surgido realmente a partir do século XII (certamente pela estatística dos manuscritos que pesquisou, e foram muitos).

Nós, atrevida e pioneiramente, afirmamos: “ledo engano coletivo da grande maioria dos estudiosos!”. Apontam só violas de arco, muito provavelmente, porque a família dos instrumentos tocados por arco se tornou “erudita”, de participação importante nas orquestras, estudada nas escolas, etc… enquanto as violas dedilhadas seriam apenas “instrumentos populares”.

Dizemos “a maioria dos estudiosos” porque, além dos poucos estudos específicos sobre violas e vihuelas dedilhadas, em mais de uma centena dos mais citados estudos europeus que investigamos, apenas três teriam citado as dedilhadas, e sempre com poucas linhas, como curiosidades. E, também curiosamente, observamos só uma citação por século (!), e todas em inglês, significando talvez que cada estudioso possa ter influenciado a citação do secundante, mas nenhum teria levado a pesquisa mais a fundo. Isso acontece mais do que precisaria. São elas, as citações: Carl Engel (Researches into the Early History of the Violin Family,1883, p.122) chegou a citar até as violas brasileiras; Curt Sachs (The History of Musical Instruments, 1940, p.274) e Tyler & Sparks (The Guitar and its Music, 2002, p.191) citaram apenas violas portuguesas dedilhadas. Nem precisamos contar que sabemos disso porque saímos “caçando de vela acesa” nossas violas pela História, né? Sobre-entenda-se.

Não: nem todas as “violas” (e variações deste nome surgidas nas línguas relacionadas) seriam tocadas por arco. E isto teria origem, na verdade, desde o século X até os dias atuais. No caso, hoje em dia, só na língua portuguesa, mas “bom pra nós também” que os portugueses, por nacionalismo, teriam optado por esta forma anômala e exclusiva de chamá-las, enquanto o resto da Europa, a partir do século XVII, teria optado por chamar dedilhados semelhantes de variações do termo espanhol guitarra. Contexto histórico-social, no popular: portugueses e espanhóis “nunca se bicaram”, é fato.

Vários estudiosos (inclusive a própria Schlesinger, por seus manuscritos) atestam por milhares de registros (escritos, desenhos, esculturas), colhidos por toda a Europa, que os arcos só teriam registro no território europeu a partir do século X e que os primeiros instrumentos nos quais teriam sido utilizados arcos (rabecas, rotas, gigas) teriam sido apenas dedilhados antes. Estes teriam passado a ser tocados de ambas as formas por um longo período de transição (o tal que falamos que existiu, lembra?) e sendo, enquanto isso, chamados pelos mesmos nomes.

Dada a interpretação muitas vezes equivocada destes dados, embora a nós trazidos exatamente por grandes pesquisadores europeus, não nos custa resumir aqui como alguns deles os apontaram em seus estudos:

REBEC, CROUTH, GIGUE (em texto em francês) seriam os apontados pelas pesquisas de Paul Garlant, na Encyclopedie de la Musique de Lavignac (1925, p.1760);

REBEC, ROTTE, GEIGE (em texto em inglês) apontariam as conclusões de Carl Engel (Researches into the Early History of the Violin Family,1883, p.152);

REBEC, CROWTH, GIGE (em texto em alemão) seriam os apontados por Curt Sachs (Real-Lexikon der Musikinstrumente, 1913);

RABÉ, ROTA, GIGA (em texto em espanhol), por Rosario Martinez (tese Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos, 1981, p.888).   

É importante denotar que o fato de registros conhecidos apontarem “a partir do século X” não comprova que os arcos não fossem utilizados ou pelo menos conhecidos antes, por todo o território; mas atestam, pela estatística, que àquela época estariam ainda bem no início do tal período de transição.

O que, entretanto, observa-se que não teria sido bem considerado pelos estudiosos é que, ainda durante o longo período, entre os séculos XII e XIII, é que se conhecem registros do nome “viola” (com a característica de terem surgido em variações próximas em várias línguas), quase simultaneamente e com bem mais registros que guitarras e outros cordofones que sempre teriam sido dedilhados. O contexto histórico-social deste surgimento teria sido o auge do Trovadorismo, em que artistas viajavam pelos vários reinos existentes, narrando poeticamente várias características e costumes da época, com mesclas do latim popular e línguas e dialetos ainda em ascensão. Isso incluiria, por exemplo, o nome viola de registros mais remotos em latim, occitano, catalão e ainda em espanhol (neste caso como variação de viuela); violle e viele em francês; videle em alemão antigo; fidele em inglês anglo-saxão e outras variações próximas.

Embora ainda na fase de transição, a maioria dos estudos (antes dos nossos) parecem ter concluído que a separação seria latente e indiscutível, considerando “violas” como friccionados desde sempre… E o que é pior, e que aponta que teriam sido traídos por visões modernas e pouco precisas: ao não considerarem violas dedilhadas nas equações investigativas, vários estudiosos apontam que alguns instrumentos com registros anteriores ao século XII (!) também teriam sido como violas friccionadas por arco, mesmo que não existam indicações claras naqueles registros, como os de nomes latinos vidula e phiala (século XI) e principalmente fidula (século IX). O levantamento, retradução e organização das fontes nas línguas originais foi inclusive a motivação de nosso artigo Chronology of Violas according to Researchers (Ferreira, 2023).

Em nossa reinvestigação atenta observamos, sem ter sido apontado por tantos outros estudos, que, por exemplo, o nome phiala realmente apareceria ligado a arcos, mas com ressalvas: […] Arcus dat sonitum phiale, rotule monochorde (“O arco [é usado para] gerar som na phiala, um monocórdio com rodas”) seria o registro mais remoto com alguma descrição, porém já do século XIII (!), da Summa Musicӕ, creditado a certos “Perseus e Petrus” (?-?). Além de não ser atestação válida (um instrumento ainda seria igual por cerca de 200 anos, em outra região, mesmo citado pelo mesmo nome?), não há outra evidência de que “violas” teriam sido monocórdios em qualquer época: aquela phiala do século XIII tem probabilidade maior, portanto, de ter sido uma grande trombeta marina, com a citada “roda” servindo para locomoção do instrumento. É um monocórdio bastante citado, normalmente tendo mais de dois metros de comprimento.

Já sobre fidula, observado em poema do padre alemão Otfrid ([863-871]), observa-se que teria sido entendida como palavra original alemã, mesmo que não tenha sido observada em nenhum outro registro antigo nessa língua. Entretanto, somado ao registro de fiþele (transcrito fidele / fithele), de manuscrito em inglês do século XII, a fidula teria originado os entendimentos modernos de genéricos para instrumentos de arco fidel (em alemão) e fiddle (em inglês). Hoje, mais utilizados como sinônimo de “violino” e/ou “violino rústico, rabeca”. Só que nem aquela fidula do século IX, nem as citações de fidele / fithele conhecidas, até o século XIV, tem evidência de terem sido instrumentos tocados por arco. Encontramos apenas mais uma citação antiga de fidula, no século X, mas em texto em latim De Musica do padre e musicólogo francês Odo de Clúnia, que apontou cithara sive fidula, ou seja, que a fidula seria como uma citara, instrumento dedilhado… percebe a gafe?  

Alguns estudiosos importantes até reconhecem que a fidula original não teria sido tocada por arco, mas, interessantemente, ainda assim utilizam largamente fiddle como genérico para friccionados em seus textos. O já citado Carl Engel chegou a fazer um pequeno desenvolvimento, com apontamento de fontes a partir do século XIV, onde de certa forma defendeu (ou justificou) o uso genérico, tanto em alemão quanto em inglês… só que as fontes originais inglesas indicadas apontariam, na verdade, o já citado fiþele, transcrito fidele ou fithele. Daí até fidel e fiddle há um coeficiente de adaptação / tradução. Não rastreamos profundamente, pois consideramos a prática equivocada, mas vimos que em fins do século XVIII John Hawkins não usaria o genérico fiddle, mas chamaria os tocadores de fidlers (A General History of the Science and Practice of Music, 1776); e poucos anos depois, Charles Burney (A General History of Music, 1782) já usaria muito o tal genérico.

Outro genérico muito utilizado pelos da língua inglesa, um pouco antes de fiddle, é viol: parece viola, mas não é, né? Entendemos que não seja por preguiça de acrescentar uma letra a mais, e sim evitar termos em outras línguas. Traduzir, porém acrescentando um certo sentido de nacionalismo, já vimos antes na História (as nossas violas, na verdade, teriam sido apenas um nome antes, já demonstramos por aqui algumas vezes). Aliás, mudar (depois de algum tempo) de viol para fiddle também aponta nacionalismo (o segundo nome tem mais “cara de inglês”).

Este termo viol lembramos tê-lo observado pelo muito citado musicólogo alemão Michaele Prӕtorio “Michael Praetorius” (Syntagmatis Musicis, de 1619). Chamou a atenção porque o autor, escrevendo a maior parte das vezes em latim, acrescentou muitos termos também em alemão, e vez ou outra “escorregavam” alguns em italiano e francês. No caso, observamos viol de bracie e viol bastarda (como num “italiano pobre”, ou “estilizado”). Talvez seja o mais remoto registro, e talvez tenha sido criado por engano, de grafia ou de gráfica, pois não seria exatamente de nenhuma língua europeia, muito menos do inglês, já que se aproxima da forma latina. Não nos interessa tanto investigar, como já dissemos, mas o certo é que os ingleses parecem ter gostado do nome, e desde pelo menos Christopher Simpson (The Division-Violist, 1659) veio sendo usado como se fosse “viola” e às vezes como genérico, até fiddle passar a dominar.  

De nossa parte, embasados em nossos estudos sobre nomenclaturas, apontamos que o uso de genéricos, assim como traduções e aplicações de nomes modernos a instrumentos antigos é altamente prejudicial, causando inúmeros equívocos de entendimento. Nomes de instrumentos pelos tempos já são complexos de entender por si mesmos, sem precisar de mais confusões agregadas. Por outro lado, nomes em suas formas / línguas originais carregam resquícios históricos interessantes, que não deveriam ser ocultados, e sim destacados.     

Alguns instrumentos, como as rabecas, com o passar do tempo se consolidariam exclusivamente como tocadas por arco, enquanto suas “irmãs”, as mandoras, seguiriam só como dedilhados. Já as violas, a maioria delas também passaria a ser tocada por arco, mas não todas… Se olharmos com bastante atenção e buscando o máximo de abrangência, na História Ocidental as “violas” jamais teriam deixado de ter seu nome ligado à ambas as formas de tocar, e não apenas a uma, além da bivalidade ser claramente apontada em alguns registros.

Para tanto, é preciso ter muito cuidado nas análises e não se deixar levar por suposições, traduções e muito menos concepções já modernas: apontamos que a fase de transição teria sido especialmente longa em algumas regiões, porque no século XIV ainda haveria citação de vihuelas de arco e vihuelas de pendola (dedilhadas) pela Espanha, bivalidade que duraria pelo menos até o início do século XVII, conforme se observa desde o Libro de Buen Amor, de Joan Ruiz (estimado ao século XIV) até Juan Bermudo (Declaracion de los Instrumentos Musicales,1555) e Domenico Cerone (El Melopeo y Maestro,1611).

O nome vihuela para instrumentos dedilhados cairia em desuso pelos espanhóis, mas nos séculos XV e XVI haveria “violas e violas” na Itália, ou seja, instrumentos de mesmos formatos e armações de cordas que as vihuelas espanholas, e também tocados de ambas as formas. Neste caso, a conferência precisa passar pelo menos por Tinctoris (De inventione et uso musicae, ca.1486), Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto, 1536) e Silvestro Ganasi (Regola Rubertina, 1542).

Pelo menos mais dois registros do século XVI apontam a utilização de um mesmo nome para dedilhados e friccionados por arco: o alaudista alemão Hanz Judenkünig (1450-1526) utilizaria o nome geige com a mesma bivalência, tanto em alemão quanto em latim, em seu método Utilitis et Compendiaria Introducto (ca.1523) e, em inventários do Rei Henrique VIII, falecido em 1547, a anotação […] Gitterons […] caulled Spanishe Vialles (“Gitterons chamados Vialles Espanholas”), onde gitterons aponta para “guitarras”, instrumentos dedilhados. Esta citação faz parte de manuscritos pesquisados pelo musicólogo inglês Francis Galpin (Old English Instruments, 1911) que, “interessantemente”, apontou as vialles como friccionadas por arco… (para quem não sabe, Galpin foi um excelente pesquisador, respeitadíssimo, mas…).

No século XVI e XVII, as violas portuguesas teriam significativos registros, que entende-se que estudiosos possam ter desprezado, a princípio, pelos desenhos representarem na verdade guitarras “chamadas de violas”; entretanto, a partir do século XVIII, as violas portuguesas começariam a ter características diferenciadoras das guitarras, culminando no fato de que, do início do XIX até os dias atuais, tanto em Portugal quanto no Brasil, as violas dedilhadas passariam a efetivamente “existir”: não seriam mais apenas um nome sem correspondência a instrumentos distintos, pois os espanhóis abandonaram o formato com duplas de cordas e resignificaram o nome “guitarra” para um instrumento de seis cordas simples, apelidado “violão” pelos portugueses. Assim, a partir daquela época, guitarras e violas teriam se tornado bem diferentes, mas estas violas dedilhadas não entrariam nas equações investigativas de muitos estudiosos. E olha que nós checamos…  

Ou seja: seguiram havendo continuamente instrumentos com nome de “viola” (ou vihuela) que seriam bivalentes (quer dizer, um mesmo nome para instrumentos tocados de forma diferente). Qualquer tipo de registro onde o arco não fosse representado ou citado não comprova que os instrumentos teriam sido tocados por arco… e muito menos que em todas as regiões e épocas teriam sido tocados só daquela forma.

Nem curiosidades históricas (ou exceções) teriam chamado a atenção de outros estudiosos pelos tempos, como as chamadas “lira bizantina” e “lira de braço”, que tinham nome de dedilhados, mas eram tocadas por arco. Talvez, como dissemos, registros não tenham sido considerados por serem exemplos de instrumentos populares, que não faziam parte das orquestras e do círculo erudito como as violas de arco.

Não é primazia nossa estudar violas dedilhadas. Há alguns estudos (que naturalmente conferimos à exaustão) sobre: vihuelas espanholas, cujo nome caiu em desuso no século XVII; sobre as violas italianas dedilhadas (que passariam a ser chamadas chitarras também a partir do mesmo século XVII) e sobre as violas portuguesas e brasileiras, que tecnicamente só se pode dizer que existam desde o início do século XIX. Nossa primazia está em analisar todo o conjunto ocidental, tanto histórico quanto de variedades de fontes e estudos em todas as línguas concernentes, contextos histórico-sociais, investigar e contextualizar a grande variação de nomes, e de desenvolver uma técnica metodologia consistente. Tudo “junto e misturado”, a partir da “chave do baú” (que é a técnica metodológica que desenvolvemos, e estamos a chamar de onomato-organologia)… Mas aí já são outras prosas… 

Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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7 Dez, 2023

O VIOLÃO: COMO E PORQUE SURGIU

O VIOLÃO: como e porque surgiu

 

“[…] Recebendo de Espanha o violão, como a viola vulgarizado pelos mouros, o português denominou-o no aumentativo de viola, instrumento-rei.”

(Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, 1954)

Viola, Saúde e Paz!

Segundo a internet, Luís da Câmara Cascudo (1898 / 1986) teria sido historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado e jornalista brasileiro. Teria vivido sempre em Natal, no Rio Grande do Norte e, por seus inegáveis méritos, é muito respeitado. Sua obra-master, o Dicionário que destacamos na abertura, teria levado cerca de 15 anos para ter a primeira edição concluída e depois ainda teria sido bastante incrementado, visto que a edição que tivemos contato, de 2005, traz referências até do ano 2000.

Um trabalho respeitável, sem dúvida alguma: teriam sido muitos anos pesquisando, Cascudo teria lido muito, consultado centenas de pessoas, feito viagens. Entretanto, como infelizmente se tornou comum nas publicações sobre folclorismo, vários de seus apontamentos não indicam fonte, nem desenvolvimento: há afirmações de cunho pessoal, às vezes divagações, ou fruto de intuições, como o trecho em destaque. Não é recomendável, pois tais comportamentos às vezes geram lendas, como a óbvia indicação de que “violão” seria aumentativo de “viola”: só que etimologia de verdade nem sempre funciona assim, na base do que “parece mais óbvio”.

Entendemos ser, na verdade, até leviano tratar a origem de palavras desta forma, mas infelizmente as pessoas comuns fazem e apreciam que seja feito, assim como apreciam lendas (outro combustível amplamente utilizado pelos folcloristas sem indicação clara para que as pessoas não sejam enganadas). Ninguém deveria agir assim, muito menos um “historiador, sociólogo, antropólogo, etnógrafo”… mas é verdade também que muitas pessoas parecem querer ser enganadas, gostam de acreditar em suposições e lendas como se fossem verdades. Então… segue o andor.

Por outro lado, talvez por ter pesquisado tanto, às vezes algumas intuições tem algum fundamento e são passíveis de atestação, como, no mesmo trecho, a de que o violão teria vindo da Espanha e que haveria disputa com mouros. Outro trecho bem apontado, no caso, na frase final do mesmo verbete, seria: “[…] Não conheço referência ao violão, anterior ao século XVIII”. Realmente não haveria, mas para afirmá-lo é preciso contextualizar, desenvolver, apontar fontes. Já outras alegações do tipo “o violão é urbano, a viola é interiorana”, possivelmente inspiradas no que Cascudo tenha lido de Amadeu Amaral (livro A poesia da Viola, de 1921) é totalmente desprovida de atestação, vez que o violão acabou por atingir a preferência também nos rincões do Brasil, a partir de 1840, enquanto as violas, embora em menor número, nunca deixaram de existir nos grandes centros urbanos, como Vila Rica (maior centro urbano durante o Ciclo do Ouro), Rio de Janeiro, São Paulo e outros. E as violas não são originárias do Brasil, seja do interior ou dos centros urbanos: vieram de Portugal e, assim como lá, aqui foram evoluindo conforme o tamanho e outras características da diversidade cultural.

É preciso, pois, ler com bastante atenção e conferir informações sempre, comparar por vários dados de época e contextos, para não sair espalhando lendas… mas, infelizmente, até estudiosos deixam de conferir (por equívoco ou por conveniência).

Para um aprofundamento um pouco maior, como nos propomos a fazer aqui nos Brevis Articulus, sobre as origens do “violão” precisamos antes repassar algo que já citamos no livro A Chave do Baú: a histórias das guitarras espanholas, com curiosos capítulos desde cerca do século XIII (citação em cancioneiros ibéricos) até a já citada consolidação do instrumento, a partir da década de 1820.

Pensa que confundimos guitarra com violão? Não… Na verdade, buscamos certa especialização pioneira no estudo de nomes de instrumentos: “violão” é um dos apelidos que os portugueses teriam inventado para as guitarras espanholas desde a época da última transição delas, como dissemos, bem apontada por Cascudo, a partir de meados do século XVIII. Outro apelido que atestamos teria sido “viola francesa”, e alguns apontam que “guitarra francesa” também teria sido utilizado, porém não o encontramos em textos de época portugueses, e o contexto histórico-social não o indica (já, já, explicaremos melhor este último). Mas podemos adiantar: o apelido que incluiria o nome “guitarra”, se foi utilizado, foi muito pouco (fique ligado nisso).

Temos observado e descoberto muitos pontos interessantes e que ainda não teriam sido apontados em outros estudos, a partir de nomes de instrumentos deste pelo menos o século II aC. (somado ao cruzamento de outras informações, inclusive de outras Ciências). Fizemos reinvestigações atentas de fontes das diversas línguas envolvidas, tanto de registros quanto de estudos. Um dos pontos interessantes é que a nomenclatura “guitarra”, assim como o formato de caixa cinturado e de fundo plano, acabaram por se tornar os preferidos para cordofones portáteis populares por espanhóis e, a partir deles, de todo o território europeu, desde o século XVII. Entendemos, pelos contextos histórico-sociais, que esta preferência se deveu à uma ação tácita de rejeição a invasores, numa espécie de nacionalismo ou patriotismo.

Antes um pouco, no século XVI, guitarras seriam cordofones de tamanho menor, com 4 ordens de cordas (3 ordens duplas, uma singela) e dividiriam espaço com vihuelas de 6 ordens (5 duplas e uma singela). Estes instrumentos de caixa cinturada concorreriam com instrumentos “mouros” (invasores da Península entre os séculos VIII e XV), instrumentos que teriam sido largamente utilizados no território europeu inclusive pelos Trovadores (com auge nos séculos XII e XIII): respectivamente, a concorrência (ou espelhamento) teria sido contra as pequenas manduras (chamadas bandurrias pelos espanhóis) e os alaúdes (chamados pejorativamente “vihuela de Flandres” pelos espanhóis)…

E sim: o artifício de tratar por “apelido” um instrumento oriundo de cultura concorrente teria este precedente espanhol, muito parecido com o uso do apelido “viola francesa” aplicado por portugueses. E a intenção teria sido a mesma: mascarar a correta origem. Flandres seria uma importante região comercial franco-belga, mas não haveria dúvida possível da origem árabe dos instrumentos mouros, de inconfundível formato periforme (com laterais e fundos abaulados). Assim como não haveria dúvida possível da origem espanhola dos violões, chamados “violas francesas” por portugueses, embora alguns estudiosos apontem. Nós não temos dúvida: atestamos por vários registros que a ligação espanhola com as guitarras (principalmente com este nome) já existia há tempos.

Observamos o detalhe do apelidamento vihuela de Flandres (entre outras atestações) em livro de Juan Bermudo (Declaracion de los Instrumentos Musicales, 1555, p.90-98), mas para um entendimento mais claro do período da primeira transição das guitarras espanholas é bom conferir também os métodos de Luiz Milan (El Maestro, 1536), Juan Amat (Guitarra Spañola y Vandola…, estimado a 1596) e Pietro Cerone (El Melopeo y Maestro, 1613). Muitos estudos citam apenas o famoso método de Amat, onde realmente ele não teria usado o nome vihuela… mas ele simplesmente teria optado pelo nome vandola para instrumentos de seis ordens, além de abordar guitarras de cinco ordenes e de quatro. O citado método de Cerone teria sido o último onde ainda se abordariam também vihuelas dedilhadas, que depois então desapareceriam dos registros por mais de um século. Recomendamos, para uma análise geral, conferir também a tese de Maria do Rosario Martinez (Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos, 1981).

O nome vihuela era também utilizado no território espanhol para instrumentos tocados por arco (e ainda o é), e isso provavelmente colaborou para a queda em desuso das vihuelas dedilhadas, mas é mais provável ainda que os espanhóis, que já teriam optado por diferenciar seus instrumentos dos instrumentos mouros pelo formato de caixa, tenham resolvido diferenciá-los mais ainda pela armação de cordas, surgindo então a guitarra de cinco ordens (4 duplas, uma singela). Nos métodos citados se atesta ter sido uma ideia que já vinha sendo gestada desde o início do século XVI. Aquela “nova guitarra”, então, se tornou famosa por toda a Europa da época, sendo muito citada até os dias atuais, por vários estudiosos, pela alcunha de “guitarra barroca”. Este nome citamos apenas para ajudar na identificação: não aprovamos o uso de nomenclaturas diferentes das originais de época, nem traduções, muito menos usar nomes como se estes fossem capazes de retroagir no tempo. À cada época, os instrumentos teriam sido chamados apenas de “guitarras”, com acréscimos quanto às armações de cordas… portanto, assim devem ser chamadas sempre. Mas entendemos que, por enquanto, não teria havido outros estudos como os nossos, com tamanha profundidade quanto aos nomes dos instrumentos, então… paciência.

Denotamos, também indo além dos estudos convencionais, que a mudança foi significativa: teriam saído de cena dois instrumentos (um com 4 ordens, outro com 6 ordens) e emergido apenas um no lugar deles, com cinco ordens e tamanho intermediário entre os dois anteriores… mas a mudança incluiu uma curiosa manutenção do nome guitarra para o novo instrumento. O passado quase nunca se consolida em pouco tempo, normalmente há longas fases de transição, onde se atestam vários fatores influenciadores, quase nunca um só. Neste caso, com o passar do tempo, certamente terá colaborado a escolha do nome guitarra explicitada por Amat, cujo método foi traduzido ou até copiado em outras línguas, como as mais remotas: chitarra spagnola em italiano (por Montesardo, 1606); guitarre em francês (por Moulinie, 1629); Gitarre em alemão (por Doremberg, 1652) e guitar em inglês (por Corbetta, ca.1677). Mas também terá colaborado o fato de que a guitarra predecessora, de 4 ordens, já ter feito relativo sucesso antes, pelo território europeu. Estas informações, entre outras fontes, podem ser checadas no bom livro de Tyler & Sparks, The Guitar and its Music, de 2002.

Denotamos também que a ressignificação do nome feita pelos espanhóis não causaria a extinção dos instrumentos em territórios vizinhos: as vihuelas dedilhadas seguiriam existindo na peninsula itálica pelo menos até o século XVII, assim como as de arco; só que lá, ambas seriam chamadas “violas”, assim como depois continuariam sendo chamadas, até os dias atuais, pelos portugueses e por nós. Já os cordofones cinturados de menor tamanho seriam chamados pelos portugueses “violas pequenas”, desde antes, e a partir do século XVII ascenderiam outros nomes como “machinho”, “machete”, “rajão”, “braguinha” e até “cavaquinho” e o hawaiano ukulelê (estes dois últimos, já a partir do século XIX). Estes instrumentos todos não poderiam mais ser chamados de “guitarra”, mas, tecnicamente, são variações daquelas.

Chegamos então ao século XVIII, com entendimento de que os espanhóis investiam em suas guitarras, e estas continuavam fazendo sucesso, então não tendo mais que dividir espaço de preferência com vihuelas… Entretanto, entre meados do século XVIII até o início do século XIX, outra fase de transição das guitarras aconteceu: novamente teriam sido desenvolvidas alterações (chamadas organológicas) no instrumento de preferência, que passaria no fim a armar com seis cordas simples (o tal “violão”). E, novamente, a nomenclatura guitarra seria a escolhida para seguir identificando. Técnicas de construção e novos estudos (métodos) foram produzidos.  

Acrescentamos, com ineditismo de observação, que como antes acontecera, novamente o instrumento anterior (guitarra de cinco ordens, então já consolidado em cinco duplas de cordas) não deixaria de existir pela vizinhança por causa da nova ressignificação do nome: aquelas guitarras, que eram chamadas de “violas” pelos portugueses, simplesmente continuaram a existir como eram… Só que, então, passariam a ser “violas” sem a equivalência física com guitarras espanholas, pois as espanholas teriam mudado de configuração. Sim, é o que atrevidamente apontamos como a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas: de um nome genérico, passariam a existir de fato a partir daquela época.

Os portugueses já teriam começado a introduzir pequenas particularidades nas suas “violas”, como duas ordens triplas e utilização de cordas metálicas (como os italianos já fariam com suas chitarras pelo menos desde o século XVII), mas seguiriam chamando de “violas” todos os cordofones portáteis, inclusive variações surgidas durante a fase de transição como guitarras de cinco cordas simples e de doze cordas, em seis ordens duplas (estas últimas, com auge em 1799 e significativo uso pelo menos até 1826, segundo o Method complète pour la Guitarre, do compositor espanhol Dionísio Aguado y Garcia); portanto, só a partir da consolidação da “mais nova guitarra” (ou “violão”), as violas dedilhadas portuguesas poderiam ser apontadas como tendo configuração distinta, não mais apenas um nome genérico (ou seja, antes elas não existiriam, só o nome, é o que atrevidamente apontamos). Dos modelos surgidos naquela época de transição, apenas o 12×6 (doze cordas em seis ordens) não teria sobrevivido, sendo predominantes hoje os de armações 12×5 e 10×5.

A pergunta que não quer calar é: “por que os espanhóis teriam resolvido mudar mais uma vez a configuração de seus cordofones de maior sucesso?”.

Como sempre, acreditamos que as respostas sejam complexas, normalmente uma somatória de vários fatores, que se atestam por períodos mais dilatados. Entre estes fatores, numeramos alguns que consideramos serem os mais importantes, suficientes para trazer uma luz embasada:

Primeiro, porque o mesmo tipo de mudança nos instrumentos, mantendo o nome preferido, já teria sido feito antes, e com sucesso.

Também porque estava-se em plena ascensão da Revolução Industrial, onde a mentalidade capitalista já começaria a indicar que ter um produto característico favoreceria comercialmente a região de criação e de mais investimento naquele produto. O mesmo tipo de entendimento, e também a partir da mesma época, teria sido aplicado pelos italianos, que começaram a investir mais nas violas da gamba e de braccio (que culminariam no atual naipe das orquestras modernas), e pelos portugueses, que embora tenham passado a poder ter “violas” como referência (mas não exclusiva, pois já seriam bem famosas na Colônia Brasil), acabaram por investir no surgimento e ascensão da “guitarra portuguesa”.

Ainda dentro da visão de “produto”, observamos que os portugueses prejudicariam a divulgação do nome correto das guitarras (chamando-as de “violas”). Portugal, sobretudo à época, teria considerável influência no território europeu, por sua atuação comercial, e haveria circulação de muitos de seus documentos escritos, além dos seus costumes e visões. A ação espanhola não resolveria o problema quanto ao nome utilizado pelos portugueses, mas criar uma “nova guitarra” sem dúvida ajudou a que elas não fossem confundidas com as “violas” portuguesas.

Já o retorno ao uso de seis ordens (usadas antigamente em alaúdes e vihuelas) facilitou a utilização do produto espanhol pela Europa, vez que alaúdes não teriam caído tanto de uso em outras regiões como italianas e francesas, a rejeição maior teria sido mesmo ibérica. Assim, tablaturas / partituras, ou mesmo o repertório informal, tocado em alaúdes, poderia simplesmente ser tocado pela “nova guitarra / violão”. Observa-se que a própria guitarra portuguesa ter-se-ia consolidado também em seis ordens que, embora duplas, não impediriam que elas tocassem o repertório de alaúdes (nem de violões).

O violão teve então grande sucesso, a partir da consolidação no início do século XIX, conquistando a preferência de uso entre cordofones por todo o território europeu, incluindo Portugal, e as terras conquistadas, nas Américas. Felizmente, sem que eliminassem as violas dedilhadas, que ainda sobrevivem, e hoje ajudam a contar e atestar toda a História (tanto a dos cordofones quanto das comoções sociais que testemunharam). Mais tarde, a partir do século XX, o violão viria a inspirar a “guitarra elétrica” estadunidense, que com a ascensão do rock (entre outros estilos onde é utilizada) também passou a ser um sucesso mundial, talvez até maior que suas avós “acústicas”, até os dias atuais… Mas aí já são outras prosas… 

Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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30 Nov, 2023

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS

 

[…]Quamobrem nec organa aut musicus canendi ritus, missis aut officiis suis adhibeant

(“Portanto, nem instrumentos nem cantos [ritos musicais cantados] devem ser executados em missas e ofícios”)

 

{Prima Societatis IESU Instituti summa, agosto de 1539. Original na Biblioteca do Vaticano, AA. Arm. I-XVIII, 6461, ff. 145-148, segundo Marcos Holler, tese Uma História de Cantares de Sion na terra dos Brasis, 2016, v.2 [Documentação], p.2}

Viola, Saúde e Paz!

Sabia não? Pois é! Desde a sua criação, os padres da Companhia de Jesus, popularmente conhecidos como “jesuítas”, teriam restrições quanto a práticas musicais. O texto em destaque faz parte do que pode ser traduzido como “Sumário Institucional da Companhia de Jesus”. A palavra organa, traduzimos como “instrumento musical” e não como “órgão”, embora este já existisse, por causa de nossos pioneiros estudos sobre o termo, já citados aqui em outros Brevis Articulus; e também por fazer mais sentido, pois não seria apenas um o instrumento musical a ser proibido, mas todo e qualquer um. Aliás, é sempre assim que fazemos quanto a traduções: uma análise o mais ampla possível dos contextos, ou “fenômenos circundantes”.

Além de serem proibidos quando a Companhia foi criada, depois de um período onde nem sempre todos teriam obedecido, Ignácio de Loyola (fundador da Companhia) voltaria a pegar pesado sobre as mesmas proibições, a partir de 1552, nas Constitutiones Societatis IESU cum earum Declarationibus (“Constituições da Companhia de Jesus com suas Declarações”). Estas teriam sido mais seguidas até cerca de 1556, quando Loyola faleceu. De qualquer forma, e para efeitos formais, elas teriam sido “colocadas no papel”, em latim, no ano de 1558. Depois disso, gradativamente as regras teriam afrouxado, mas teria restado sempre uma proibição pelo menos aos padres, ou seja, que eles, diretamente, não deveriam se envolver com execuções musicais, de onde teria circulado, na base do “boca-a-boca”, a expressão jesuíta non cantat… para essa, nem precisamos “gastar o latim” com tradução, né? Mas esta informação é importante, sugerimos guardar.

Um bom trabalho a respeito, que indicamos, é a já citada tese de Marcos Holler, cujo título ainda traz como complemento “A música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759)”. Ou, a quem preferir, também muita coisa se encontra no livro Os Jesuítas e a Música no Brasil Colonial, do mesmo Holler, publicado em 2010. Na verdade, este livro foi dos primeiros que adquirimos, há quase vinte anos atrás, quando começamos nossas buscas mais profundas pelo que hoje sabemos serem certificações, atestações, dados fundamentados, “provas”…

Sim, “provas” (ou, pelo menos, algo próximo disso). Isso porque havia à época, e talvez ainda paire pelo ar “na cabeça do povo”, alguns mitos sobre os jesuítas e as violas, no Brasil. Assim que vimos o título do livro de Holler, não tivemos dúvida: naquele livro tinham que estar os registros, as “provas” da relação dos padres com as violas, lá desde o início da Colônia. “Raiz” mais profunda que esta não pode existir, certo?

Hum… nem tanto… Certo, mesmo, é que já tínhamos, àquela época, alguma noção da lógica das coisas, das pesquisas… mas o livro foi decepcionante para nossas buscas práticas, diretas: entre vários outros instrumentos musicais, na verdade, as citações nominais a “violas” nas listas dos bens dos jesuítas são quase zero. Durante algum tempo ficamos com este dilema na cabeça: “Como assim? Então não haveriam tantas violas? Elas não deveriam ter sido as de maior número nos inventários?”.

Hoje, já vasculhamos detalhada e profundamente não só os trabalhos de Holler e outros grandes pesquisadores que fizeram trabalhos sobre o assunto, como Paulo Castagna e Rogério Budasz: também fomos atrás da maioria dos originais, que hoje estão digitalizados e disponíveis para baixar pela internet. Uma lista sobre citações ao termo “viola” no Brasil desde o século XVI, que achamos seja exaustiva, disponibilizamos e é a principal parte de nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, que estamos a publicar e revisar desde 2021. E sim: não é mais preciso pesquisar tudo como fizemos, a não ser que façam questão: já deixamos tudo “mastigado”, inclusive com traduções a partir de várias línguas. E não precisa agradecer, entendemos que seja nossa missão.

Por este trabalho todo, vários entendimentos se tornaram claros. Dois deles, destacamos: um, que as investigações sérias são trabalhosas; os dados de época disponíveis não são muitos, mas o suficiente para levar bastante tempo para conferir e entender uma parte do passado; e o outro entendimento, fruto deste primeiro, é entender claramente porque “histórias inventadas” (mitos, fake news e similares) são criadas e, principalmente, porque elas passam “boca-a-boca” (ou, hoje em dia, “postagem-a-postagem”), sem que a maioria sequer questione (principalmente se forem histórias bem inventadas, emotivas, curiosas e que agradem algum tipo de interesse, como o ego e/ou as finanças das pessoas).

Criar histórias é fácil: já a História de verdade é complexa de atestar, de conferir… além de, na maioria das vezes, não ser direta, com respostas simples, na base do “preto ou branco”. O passado sempre é feito de longos períodos, as coisas não foram acontecendo como as “lacrações” de hoje em dia, quando as pessoas têm contado com algum segmento de informação e logo fazem um julgamento, “…ah, então era assim”. O passado, na verdade, está pouco se lixando se a gente “tem direito a ter opinião”: ele aconteceu do jeito dele, no tempo dele, com a multiplicidade de fatores que teve que acontecer. E pronto. A gente que “se vire” para tentar encontrar os fatores… ou então, façamos nossos julgamentos “segundo nossas opiniões”. Só imagino o passado morrendo de rir das nossas pequenices de Conhecimento, se comparadas ao enorme universo de informações do qual ele é feito!

Voltando após um parágrafo de “filosofâncias não tão vãs assim”, chegamos que os jesuítas chegaram ao Brasil em 1949: logo, segundo o que expomos na abertura, estávamos naquele período em que a Companhia tinha sido criada já há cerca de 10 anos, as proibições às práticas musicais existiam, mas podemos dizer que “não tinham pegado” (como acontece com algumas leis brasileiras). Só que não é porque era aqui: o tal “jeitinho brasileiro” nunca teria sido invenção nossa, é só estudar História.

Fato é que teríamos, por exemplo, já em 1549, segundo cartas de Manoel da Nóbrega (1517-1570), registro de que os índios “[…] pedião ao P.e Navarro que lhes cantasse asi como na procissão fazia”.

Se estiver achando “estranho”, nas citações literais (iniciadas por aspas e “[…]”) escrevemos do jeito que está nas fontes, ou seja, se lá tinha erros, de português ou qualquer outro, os mantemos aqui.

Naquele caso, o cantor teria sido o jesuíta João Azpicuelta Navarro (1520-1557). Nóbrega teria sido o líder, e os demais primeiros “inacianos” por aqui teriam sido Leonardo Nunes (1509-1554), Antônio Pires (?-1565), Diogo Jácome (?-1565) e Vicente [Rijo] Rodrigues (1528-1600): cinco portugueses e Azpicuelta, que era espanhol.

Vários registros de jesuítas tocando e cantando seriam observados desde aquela data. Especificamente sobre “violas” (também chamadas “descantes” e/ou “citaras”), evidenciam-se registros a partir de 1583, por narrativas de uso dos instrumentos, com citação específica tendo sido feita por ocasião de visita datada de 1584, por Fernão Cardim (ca.1549-1625). Segundo ele, em três aldeias próximas ao Colégio da Bahia teria havido “escola de ler e escrever”, onde os padres “[…] ensinam os meninos indios; e alguns mais habeis também ensinam a contar, cantar e tanger”. Entre várias fontes que conferimos, este texto pode ser conferido no livro Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica, publicado em Lisboa em 1847.

Para episódios em que “não só o milagre, mas também o nome do santo” tenha tido apontado, vários indicam a partir de Diogo da Costa (?-?), que entre 1690 e 1695 teria registro de ter tocado (e bem) violas; entretanto, temos a perspicácia de perceber que o baiano Eusébio de Mattos (1609/1692), irmão do grande poeta Gregório de Mattos (1636/ca.1696), teria professado na Companhia de Jesus de 1664 até 1677, antes de se tornar beneditino, e teria sido, assim como seu irmão, tocador de viola e poeta. Também viria de nossos esforços investigados inéditos o apontamento de que a mais remota citação ao termo “viola” como instrumento musical no Brasil também aos jesuítas, mas sem que tivessem sido eles a tocar: Manuel da Nóbrega, em data que estimamos, pelo cruzamento de vários registros, entre 1562 e 1570, teria recebido “[…] um devoto amigo, que lhe tangia uma viola às portas fechadas”. A narrativa teria sido feita por José de Anchieta e pode ser conferida, entre outras fontes, no livro Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1554-1594), publicado em 1933.

Apontamos que não há evidências que teriam sido os jesuítas a trazer as violas para cá; que as teriam utilizado, sim, durante o processo de aproximação e catequização dos indígenas, mas sempre (pelos registros) em conjunto com outros instrumentos; e que a maioria dos registros devemos aos jesuítas, por suas cartas escritas daqui para fora, pois as que aqui ficaram teriam sido perdidas, junto com quase tudo que possuíam… mas haveria algumas poucas evidências de dedilhados chamados “viola”, no primeiro século, além dos utilizados pelos jesuítas (por exemplo, no nordeste, em autos). O que passar disso, podemos afirmar, é lenda, é mito. É bom ter cuidado.

Os jesuítas teriam sido perseguidos e banidos entre 1759 e 1777, sendo esta data, referente aqui à então Colônia e a Portugal, pela posse da Rainha Maria I. A chamada “rainha louca” teria feito, entre as primeiras ações, a cassação do Marquês de Pombal, principal artífice da perseguição aos padres. No resto do mundo, a perseguição só viria a ser encerrada em 1814, pelo Papa Pio VII.

 Por termos levantado alguns registros que são pouco citados, achamos interessante citar uma sequência de fatos que montamos sobre a perseguição:

Em 1757 o Governador e Capitão-Mor do Grão-Pará e Maranhão, o português Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1701-1769), escreveu o Directorio que se deve observar nas povoaçoes dos Indios (às vezes citado como “diretório dos índios” ou “diretório pombalino”), que já amaldiçoava a atuação jesuítica e propunha severas restrições; aquele Directorio foi aprovado e assinado pelo seu irmão (o Marquês de Pombal) e pelo Rei, Dom José I, no ano seguinte, em 17 de agosto de 1758.

Alguns dias depois teria ocorrido um atentado contra o Rei, D. José, em Lisboa e, em 14 de setembro de 1758, já a primeira Ordem Régia de reclusão dos jesuítas exatamente na mesma região de Mendonça Furtado, o Grão Pará e Maranhão. Coincidência ou não, é exatamente da Região Norte que hoje se tem menos registros sobre violas (inclusive já escrevemos um Brevis Articulus a respeito, confiram).

Em 03 de setembro de 1759 surgiria então a Lei que baniu os jesuítas de todas as Colônias ligadas a Portugal; em 1770, dos territórios espanhóis e em 1773, a extinção da Companhia de Jesus, pela bula Dominus ac Redemptor, do Papa Clemente XIV.

Além das fontes já citadas, cruzamos informações também com artigos como: A Língua Geral como Identidade Construída, de Maria Cândida Barros e equipe, publicado na Revista de Antropologia da USP em 1996; e Os Jesuítas no Brasil: entre a Colônia e a República, de Carlos Menezes Souza e Maria Cavalcante, publicado pela Unesco em 2016 e Apóstolos Divinos ou da Coroa: Jesuítas no Brasil e Paraguai, de Alice Faria Signes, publicação UFRJ de 2011.

O que nos chama a atenção, pela Linha do Tempo bem caprichada que montamos, é que, por exemplo: de 40 inventários dos autos de sequestros dos bens jesuíticos registrados entre 1759 e 1780 (bem pesquisados por Holler, Castagna e outros), apenas uma viola teria sido listada: exatamente uma “violla quebrada”, na Fazenda de Santa Cruz, Rio de Janeiro, inventário de 6 de maio de 1768 (e talvez, daí, a inspiração para a música Viola Quebrada, do pesquisador Mário de Andrade, com arranjo de Heitor Villa-Lobos)… Isso, enquanto em diversos registros da época, instrumentos chamados “viola” teriam sido bastante citados. Outra observação é que, em documentos de alfândega pesquisados por Mayra Pereira (tese A Circulação de Instrumentos Musicais no Rio de Janeiro, de 2016), no período da perseguição teria sido registrada apenas uma “viola de páo”, de uma lista de exportações portuguesas de 1767… enquanto dos anos de 1744 (antes da perseguição) a 1777 (exatamente quando D. Maria I assumiu o trono), teria havido vários registros. Naturalmente, neste caso, é preciso considerar que podem não ter sido encontrados todos os registros alfandegários e que o período histórico teria sido de grande dificuldade econômica em Portugal, desde o chamado “terramoto” de 1755; entretanto, no citado registro de 1767, há outros instrumentos (como flautas e rabecas), também citados em 1744 e 1777, quando as menções a violas e suas cordas teriam sido muito maiores que destes. Há na somatória geral destes registros de alfândega, inclusive, um curioso e significativo número de citações a “cordas de cítaras”, sem que haja citações a tantos instrumentos com este nome, mas sim de “violas”… e sabemos que, segundo Rafael Bluteau e seu Vocabulário Português, e Latino publicado durante praticamente todo o século XVIII, os portugueses chamariam as “violas” também de “cítaras”…  

Com efetiva citação a violas, no período da perseguição, apenas mais dois registros, ambos em Minas Gerais: em 1769, violas tocadas por escravizados, na região do Alto São Francisco, segundo Rubens Ricciardi (tese Manuel Dias de Oliveira: um compositor brasileiro dos tempos coloniais, do ano 2000); e em 1761, na cidade mineira de Vila Rica (atual Ouro Preto, em Minas Gerais), um testamento indica a atuação do luthier Domingos Vieira, fabricante de diversos tipos de violas, que teria falecido em 1771 mas cuja oficina teria funcionado pelo menos até 1777, segundo artigo de Paulo Castagna e sua equipe, de 2008: Domingos Ferreira: um violeiro português em Vila Rica.

Entendemos que os registros apontam certa ligação das violas com os jesuítas, não apenas pela maioria dos mais remotos registros terem vindo deles: a partir do século XVII já haveria outros tipos de fontes e após o século XVIII, com o banimento, aquelas fontes secaram. Inclusive acreditamos que possa ter havido alguma colaboração até com o surgimento do violão (como dissemos antes, a História nunca é só “branco ou preto”). A perseguição teria se dado na mesma época, teria sido brutal, causando certa comoção, e os jesuítas teriam significativa influência pela Europa (no mínimo, seriam muito conhecidos, tinham textos divulgados, etc.)… Sempre lembrando, os portugueses, incluindo os jesuítas, chamavam as guitarras espanholas da época de “violas”, inclusive em seus textos, o que não se pode negar que atrapalharia a identificação de um instrumento como claramente espanhol, que ajudaria a trazer divisas ao país (um tipo de pensamento capitalista já crescente, à época). E os espanhóis claramente investiam na marca “guitarra” para seu principal cordofone desde, pelo menos, o século XIV… mas isso já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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“[…] chegamos à conclusão de que a guitarra italiana, guitarra espanhola, guitarra francesa, viola portuguesa, viola brasileira foram nomes diferentes de um mesmo instrumento.”

[Theodoro Nogueira, Anotações para um estudo sobre a viola, jornal A Gazeta, 24 de agosto de 1963] 

Viola, Saúde e Paz!

Não fomos os primeiros a intuir que as violas dedilhadas de fato não existiriam, no início (teriam sido primeiro apenas um nome que italianos e depois portugueses utilizavam para outros instrumentos já existentes). Além do destaque da abertura, de 1963, entre alguns poucos outros, por exemplo, em 1985 o português Manuel Morais já teria apontado em seu artigo A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789) que “[…] desde meados do século XV a inícios do XIX o vocábulo Viola é empregue como nome genérico de uma família de instrumentos de corda com braço”. O que é difícil de aceitar é a curiosa “classificação abrangente” apontada a seguir pelo estudioso, onde instrumentos dedilhados e outros tocados por arco, com armações de cordas, formatos e nomes diferentes, pudessem ter sido todos “violas”… Se for, podemos afirmar que seria uma forma de classificação única na História dos Cordofones ocidentais. A conclusão é que apenas o nome, este sim, seria aplicável a todos: mas seriam instrumentos diferentes que, conforme o português mesmo aponta e lista, teriam outros nomes e características próprias, o que “violas” não teriam, porque na verdade não existiriam. Entretanto, não observamos ninguém antes de nós que tivesse a coragem de afirmar o que os fatos e contextos demonstram.

A nós cabe, portanto, a primazia em afirmar com atrevimento: “na verdade, não existiriam violas, só instrumentos diferentes, todos chamados de violas”. Não apenas afirmar, mas desenvolvemos e atestamos por centenas de registros e por contextos histórico-sociais. Isso por sermos melhores pesquisadores? De forma alguma, e muito longe disso. É porque seguimos um caminho científico diferente, bem amplo, com paralelos a outras áreas da Ciência além da Musicologia (como História, Sociologia, Linguística e outras), e ainda, com destaque, um aprofundado estudo sobre nomes de instrumentos, em fontes e estudos nas principais línguas europeias desde o latim do século II aC. Que saibamos, nunca tinha sido feito assim antes (e por isso fazemos).

Percebemos inclusive que pouquíssimos estudiosos teriam dado mais atenção às violas dedilhadas, a não ser alguns portugueses e brasileiros, e estudos sobre as vihuelas espanholas, estas que teriam caído em desuso a partir do século XVII.

Por nossa inovadora maneira de investigar, inclusive, não admiramos que nossos apontamentos não sejam muito considerados ainda nos dias atuais, embora tenham profundo embasamento científico. Afinal, são séculos de análises feitas antes e por estudiosos mais famosos que nós: é normal que demore algum tempo até que sejamos entendidos, checados e reconhecidos. Estimamos que levará, talvez, uns 50 anos até que nossos apontamentos sejam melhor considerados, ou seja: nossa monografia, o livro A Chave do Baú, os artigos e estes Brevis Articulus aqui seriam provavelmente destinados de fato a quem nos lerá no futuro, quando infelizmente não teremos a oportunidade de esclarecer dúvidas, corrigir possíveis equívocos nossos e colaborar mais para o avanço da Ciência. Paciência, cest la vie, shit hapens

Em termos da História das violas dedilhadas portuguesas e brasileiras, o que a maioria dos estudiosos aponta é um equivocado e aparentemente óbvio “bilinguismo português”, ou seja, que os portugueses simplesmente utilizariam um nome diferente, uma espécie de simples tradução (por exemplo, usar “viola” ao invés de vihuela). Ainda assim, um nome diferente não comprova que instrumentos seriam diferentes: seria necessário apontar características diferentes entre eles. Assim como, um nome igual não comprova que os instrumentos sejam iguais, como é o caso das “violas” de arco e as “violas” dedilhadas. O fato é que não seriam conhecidas características diferenciadoras nas “violas dedilhadas” até pelo menos meados do século XVIII. Assim, até o próprio bilinguismo atesta que não haveria instrumentos diferentes, apenas nomes diferentes.

Em nosso desenvolvimento observamos que teria na verdade havido, pelos portugueses, uma ação patriótica (ou nacionalista), popular e tácita, corroborada por registros e por um contexto histórico-social de notório conhecimento público, que são disputas ou rivalidades entre portugueses e invasores mouros, além de entre portugueses e espanhóis.

Por não ter sido apresentado sob esta visão antes, cabe a nós também a primazia em pontuar quatro momentos históricos, desde a origem da utilização do termo “viola” como genérico para cordofones, em Portugal, até os dias atuais. É o que fizemos na monografia, em linguagem acadêmica, e que tentaremos “traduzir” aqui neste Brevis Articulus.

 

PERÍODO 1 (entre meados do século XV até fins do século XVI): as “violas dedilhadas” ainda não existiriam, e sim instrumentos chamados de “viola” pelos portugueses.

Seu início é estimado ao ano de 1455, data do mais remoto registro conhecido de “violas”, que teria sido apontado pelo militar português Brito Rebelo (1830-1920), em seu livro Curiosidades Musicais – um guitarreiro do século XV. Não teríamos tido acesso ainda ao original, mas confiamos nas citações dos portugueses Ernesto Veiga de Oliveira (livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses, ano 2000, ver páginas 163 e 164) e Manoel Morais (já citado artigo A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789), de 1985, ver página 397); além dos secundamentos feitos nas décadas seguintes por grandes pesquisadores brasileiros como Paulo Castagna (dissertação Fontes bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII, 1991, ver página 221); José Ramos Tinhorão (livro História Social da Música Popular Brasileira, 1998, ver páginas 26-27) e Rogério Budasz (livro A Música no tempo de Gregório de Mattos, 2004, ver página 09).

Todos estes estudiosos, além de outros, apontaram que teriam existido “violas dedilhadas” em Portugal desde o século XV, mas nenhum deles foi capaz de apontar diferenças entre aquelas possíveis “violas” e outros instrumentos existentes. Outros instrumentos bem investigados e descritos até por eles mesmos, que seriam alaúdes (de caixas periformes) e cinturados de caixas com fundos paralelos, a saber: guitarras espanholas de quatro ordens, vihuelas de seis ordens e depois as guitarras também espanholas, chamadas hoje “barrocas”, com cinco ordens de cordas. Além, naturalmente, das violas de arco, bem diferentes pela maneira de serem tocadas. Não é curioso que para todos os demais instrumentos sejam apontadas classificações claras, a partir de diferentes nomes e características, mas das supostas “violas dedilhadas” não haveria nenhuma característica diferenciatória, exclusiva, a não ser o nome? Não é curioso que só as “violas” teriam as mesmas características de todos os demais instrumentos da época?

Que “violas” teriam sido aquelas? Nós respondemos sem medo: nenhuma! Haveria apenas o nome “viola”, nome que de fato já existiria desde o século XII conforme registros em latim, occitano, catalão e até em espanhol (ver detalhes em nosso artigo Chronology of Violas according to Researchers). Assim como as vihuelas espanholas, “viola” era nome utilizado tanto para friccionados por arco quanto dedilhados, basta ver métodos como os de Fuenllana (1554), Bermudo (1555), Amat (1596) e Cerone (1613). No território italiano também haveria registros assim, desde aproximadamente 1486 (ver Tinctoris, De Inventione et usu musicae). A bivalência de nome para dedilhados e friccionados por arco se encerraria a partir do século XVII por todo o território europeu, só seguindo até os dias atuais por causa dos portugueses, que optaram por mantê-la. Observe como o comportamento português é sempre diferente!

Portugueses simplesmente teriam optado por utilizar o nome “italiano” (ou latino) “viola” para evitar nomes espanhóis como vihuela e guitarra, e até árabes como alaúde. Isso, por contextos histórico-sociais claros de disputa, de rivalidade. Entre as dezenas de evidências deste peculiar comportamento português, destacamos que eles utilizariam nomes como “violas grandes” e “violas pequenas”, enquanto outros povos diferenciariam muito bem vihuelas e alaúdes (maiores, com mais cordas) das primeiras guitarras (menores e com menos cordas). Neste particular, jamais interpretaríamos a padronização do nome como falta de acuidade intelectual de um povo que teria sido o primeiro a se levantar como Reino Independente no território europeu: ao contrário, damos ênfase exatamente ao forte nacionalismo inato dos lusitanos. Particularmente? Achamos bonito e temos até inveja daquele senso de defesa da pátria português.

O término do primeiro período é estimado a 1596, com a decadência de registros de vihuelas e guitarras espanholas de quatro ordens de cordas, em função da ascensão da guitarra espanhola de cinco ordens (estes instrumentos todos que, para os portugueses, seriam “violas”). As hoje então chamadas “guitarras barrocas” dominariam a preferência no território europeu mais ou menos pelos dois séculos e meio que se seguiram, segundo, além dos estudos já citados, também outros importantes e isentos como a Encyclopedie de la Musique (na edição de 1920, volume 4, ver páginas 2023 a 2027).

PERÍODO 2 (entre o século XVII até a primeira metade do século XVIII) começariam a ser observadas duas características que no futuro viriam a distinguir as violas portuguesas de outros instrumentos: os usos de “cordas de arame” e de “ordens triplas de cordas”.

A gama de instrumentos diferentes chamados de “viola” pelos portugueses teria gradativamente se tornado menor, dada a já citada preferência pelas guitarras de cinco ordens de cordas, que teria trazido uma decadência, em registros, dos alaúdes, vihuelas e guitarras menores, de quatro ordens. A transferência do nome guitarra para instrumentos maiores e com mais cordas não caracterizaria na verdade o desaparecimento total dos anteriores, menores, que já teriam relativa fama pelo território europeu: na verdade, teria aberto a oportunidade para eles terem outros nomes consolidados. Em Portugal, as chamadas “violas pequenas”, “machetes” ou “machinhos”, depois, com o passar do tempo, também seriam identificadas por “braguinha”, “rajão”, e, mais no futuro ainda, até o “cavaquinho” e o “ukulelê” hawaiano.

No Brasil, “violas pequenas” teriam mais remoto registro conhecido na Lista dos itens musicais encontrados no Registro dos Generos de varias fazendas que se despachaò nesta Alfandega do Rio de Janeiro – ano de 1700, segundo Mayra Cristina Pereira (tese A Circulação de Instrumentos Musicais no Rio de Janeiro, 2013, p.127). Cá como lá, logo depois se observam registros de “machinhos” e “machetes”, mas não os demais, sendo que o nome “cavaquinho” só teria sido utilizado aqui bem depois de ter surgido em Portugal, causando aqui, diferente de lá, o surgimento de dois instrumentos diferentes: o cavaquinho (4 cordas simples) e as Violas Machetes (10 cordas em 5 ordens).

Gradativamente, duas características teriam começado a surgir especificamente em violas portuguesas: a utilização de trios de cordas (em duas das cinco ordens) e a utilização de arame ao invés de tripa, embora cordas de arame já fossem utilizadas em cordofones europeus há algum tempo. Observa-se que ordens com trios de cordas (sem citação ao material delas) foram citadas no método Liçam Instrumental creditado a João Leite Pita Rocha (1752, ver página 2) e violas com dois trios de cordas, e indicações de que cordas de arame dariam menos despesa e seriam mais duráveis, apareceriam no método Nova Arte de Tocar Viola, de Manuel da Paixão Ribeiro (1789, ver página 6). Estes dois métodos são largamente apontados por estudiosos, porém sem que indiquem ter percebido que aquelas teriam sido as primeiras características de “violas” que seriam fisicamente distinguíveis de guitarras. Entre estes grandes pesquisadores, por décadas, podemos apontar: Paulo Castagna (1992, p.2), Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.158-161) e Júnior da Violla (2020, p.19 a 25).

Quanto à utilização de arame, cordas metálicas já seriam utilizadas desde o século XVII nas chamadas chitarras italianas, de cinco ou seis ordens, segundo Tyler & Sparks (The Guitar and its Music, 2002, ver páginas 199 a 210) e Darryl Martin (artigo The early wire-strung guitar, 2006, página 125).

No Brasil não foram observados muitos detalhes dos instrumentos chamados de “viola” neste período, mas pode-se apontar terem existido pelo menos dois tamanhos: “violas” e “machetes”, estas últimas que teriam sido menores e predominariam entre afrodescendentes. Podemos também apontar o reflexo históricos das ordens triplas metálicas em Violas de Queluz remanescentes (as mais antigas, que apresentariam 12 cravelhas, mesmo que armassem com apenas cinco pares de cordas) e também nas Violas Nordestinas dos repentes, que ainda utilizam uma ordem tripla de cordas.

O período se destaca porque os portugueses ainda continuariam chamando de “viola” as guitarras de cinco ordens com cordas de tripa, então, existiriam “violas portuguesas” (com pequenas diferenças), mas existiriam ainda guitarras “chamadas de viola”. É um período de transição para a História das violas.

 

PERÍODO 3 (entre meados do século XVIII e início do século XIX): violas evoluiriam finalmente para instrumentos diferenciáveis das guitarras, porque a nomenclatura guitarra teria tido seu uso alterado novamente pelos espanhóis, passando a ser aplicada para instrumentos com a armação 6×6 (6 cordas em 6 ordens, o chamado “violão”).

Ao fim deste outro período de transição, a ascensão do “violão” teria proporcionado a caída em desuso de guitarras de cinco ordens (pelo menos, é assim que estudiosos apontam). Entretanto, aquele instrumento (que também era chamado de “viola” pelos portugueses), não teria desaparecido, apenas teria continuado a ser chamado de “viola”: cinco ordens duplas aparecem até os dias atuais, entre os modelos mais conhecidos de violas, tanto em Portugal quanto no Brasil. É uma grande lição histórica dos instrumentos populares: eles guardam consigo resquícios, que são verdadeiras atestações das comoções sociais a que foram submetidos pelos séculos.   

Sobre a fase de transição (das guitarras de cinco ordens até a consolidação do violão, de seis ordens), diferente de outros estudos, preferimos estimar pelo cruzamento e somatória de várias fontes:

– entre aproximadamente 1752 e 1764 teriam sido publicados em Madrid dois métodos citando vandolas de seis ordens: um por Pablo Minguet (conferimos edição de 1754) e outro por Andrés de Sotos (conferimos a edição de 1764). As datas foram analisadas, entre outras fontes, também na Encyclopédie de la Musique (1920, v.4, p.2025). Consideramos a questão do nome vandola para instrumentos de seis ordens, citado desde Amat (1596), como pouco aprofundada em estudos e talvez ainda mereça um artigo específico; mas neste caso, o fato é que são apontamentos sobre instrumentos de seis ordens que por mais de um século não se conheceriam outras citações;

– em 1760, anúncio do jornal Diario Noticioso Universal, de Madrid, apontaria a venda de uma “vihuela de 6 órdenes”, do luthier Granadino (?-?), segundo Tyler & Sparks (2002, p.195). Nos próximos anos haveria outros, mas destacamos este porque o nome vihuela não teria sido observado em registros desde antes de 1596, conforme já citamos;

– entre 1770 e 1780 seria um período estimado do surgimento do violão bastante apontado por estudiosos, com apontamento equivocado de origem francesa ou italiana. Observamos estes apontamentos desde o artigo Stalking the oldest six-string guitar do estadunidense Thomas F. Heck (1943-2021), escrito entre 1972 e 1974. Ao fim do próprio artigo, entretanto, o pesquisador apontou dúvidas sobre as alegadas procedências (mas não quanto às datas de fontes que consultou). Quem, entretanto, acompanhasse a peculiar preferência e modo de utilização do termo guitarra pelos espanhóis, desde o século XIV, não teria qualquer dúvida da origem do “violão” (ou “nova guitarra”, que seria a terceira de uma série);

– de 1773 a 1787 seriam os três possivelmente mais antigos violões remanescentes encontrados em museus europeus segundo Márcia Taborda (tese Violão e Identidade Nacional, de 2004, ver página 47), que checamos e confirmamos;

Paralelo a estas citações, há ainda declarações feitas no método Principios para tocar la guitarra de seis órdenes, do compositor italiano Federico Moretti (1769-1839), que apontou que em 1799 seriam utilizadas seis ordens na Espanha e que na Itália, em 1792, ainda não se utilizariam seis, apenas cinco ordens (menos por ele próprio, que desde 1787 já tocaria com sete ordens simples).

De todas estas informações e mais algumas, concluímos que as seis ordens teriam gradativamente voltado ao inconsciente coletivo europeu, a partir dos espanhóis, após estes mesmos terem lançado as guitarras cinco ordens com sucesso por mais de um século, comprovável por diversos métodos publicados em inglês, italiano, alemão, francês. A ação de “mudar guitarras que estavam dando certo” pode parecer ter sido aleatória ou equivocada, a princípio, mas chamamos a atenção mais uma vez ao contexto histórico-social: estariam em pleno desenvolvimento as fases da Revolução Industrial, com a nova ideia de produção e venda em série. Instrumentos musicais, assim como outros produtos, significariam atrair divisas a quem os produzisse melhor, em primazia, com características únicas e exclusivas.

Um capítulo da fase de transição (que iria de fato até o início do século XIX) nos apontou a ênfase ao ano de 1799 das guitarras 12×6, que alguns estudiosos chamam de “guitarras clássico-românticas”, como, entre outros, Paulo César Veríssimo Romão (1799, O Ano dos Métodos para Guitarra de Seis Ordens, 2011, p.2). Aquelas guitarras “intermediárias” (vez depois também engolidas pela preferência pelo violão), teriam originado “violas portuguesas” iguais, que não sobreviveriam lá até os dias atuais, mas que no Brasil surgiriam como o atual modelo Viola de 12 Cordas da Família das Violas Brasileiras. As atestações mais remotas aqui são só da década de 1920, por fotos e um instrumento sobrevivente que teria sido utilizado pela dupla Mandy & Sorocabinha, segundo Júnior da Violla (As seis ordens de uma ilustre desconhecida, 2020, p.68); mas é preciso considerar que vários registros escritos desde o século XIX apontariam simplesmente “violas de 12 cordas”, o que não atesta nem descomprova se teriam sido de cinco ou de seis ordens.

Em coerência com a ação patriótica que já vinha sendo executada desde o século XV, os portugueses também não chamariam as novas guitarras pelo nome correto, pois o nome continuaria remetendo, e então mais ainda, aos espanhóis. O procedimento é bastante similar ao que aconteceu antes com machinhos e machetes: quando espanhóis deixam de chamar o instrumento de “guitarra”, eles seguem recebendo outros nomes. Já as novas guitarras espanholas, as nomenclaturas mais adotadas pelos portugueses (até os dias atuais) seriam “viola francesa” e “violão” (claramente derivadas da nomenclatura “viola”, já utilizada para as guitarras antigas). Ressalta-se que não há evidência concreta de origem do violão a partir da França, e sim, pelo apelido surgido, uma continuação da ação de rejeição nacionalista portuguesa. Mesmo o termo “guitarra francesa”, apontado por alguns estudiosos como tendo sido bastante utilizado, só observamos uma vez citado por portugueses já no século XX, por Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.214); e, no Brasil, apenas 20 citações do nome “guitarra francesa” entre 1810 e 1849, em milhares de fontes pesquisadas, como periódicos (jornais e revistas).

No Brasil, em confirmação de que a nomenclatura patriótica era de fundamentação portuguesa, não nossa, entre as décadas de 1810 e 1830 observou-se que “guitarra” teria sido o nome de cordofone mais citado, com larga vantagem aos demais; só a partir de 1818 teriam começado a surgir os primeiros registros de “viola francesa”, “guitarra francesa” e “violão”, segundo dados disponíveis na Biblioteca Digital Nacional. A década de 1840 é apontada como de evidência da consolidação do violão no Brasil também por outros estudos: em análises de anúncios de aulas de música, por Carlos Eduardo Azevedo e Souza (tese Dimensões da vida musical no Rio de Janeiro, 2003, p.289) e estudos de romances por Renato Castro (artigo Musical artefacts in literary texts, 2015, p.39).

Neste período também teriam começado a surgir os registros de “sobrenomes”, alguns deles que se consolidariam depois nos modelos hoje vigentes: “Machete” e “12 Cordas” foram observados a partir de 1827; “Viola de Cocho”, entre 1851 e 1868; “viola sertaneja”, a partir de 1870; “viola cabocla”, 1876; “Viola de Queluz”, 1884.

No início do século XIX talvez pudesse ter sido alcançada certa “vitória” da ação de resistência portuguesa expressa pela nomenclatura nacionalista: eles teriam, finalmente, instrumentos de verdade (e não apenas um nome) para representá-los, exato na mesma época de consolidação do pensamento capitalista geral. Entretanto, não é o que registros apontam, conforme relataram, entre outros, os já citados Manuel da Paixão Ribeiro (1789, p.2) e Veiga de Oliveira (2000[1964], p.165).

Se as violas já estariam em decadência no tempo de Paixão Ribeiro, mais ainda com o crescimento do violão… mas não na Colônia, tornada independente a partir de 1822: aqui haveria muitas violas, conforme já dito, com destaque pelas tocadas por pretos. E portugueses saberiam disso, pois por lá já fariam sucesso, na mesma época, pretos violeiros exímios como Domingos Caldas e Joaquim Manoel.

Daí se observa, em contraponto, que o instrumento que Portugal viria a adotar como representativo cultural junto ao resto do mundo (e com vistas a busca de divisas) acabaria sendo a chamada “guitarra portuguesa”, e exato a partir do início do século XIX. Faz parte do contexto histórico-social uma aproximação com a Inglaterra feita por D. Pedro I, desde ações pela Independência do Brasil em 1822. Esta aproximação teria sido levada a Portugal após a vitória dele na Guerra dos Dois Irmãos, em 1834, exatamente quando é estimado o início da fabricação das “guitarras portuguesas” por lá (embora já existissem antes), “guitarras” então praticamente iguais à english guitar ou “guitarra inglesa” (OLIVEIRA, 2000[1964], p.197).

Com referência a este outro instrumento, de caixa arredondada e armando com seis ordens duplas de cordas metálicas, o nome “guitarra” é observado frequentemente em registros feitos por portugueses, diferentemente do tratamento dado às antigas guitarras cuja nomenclatura praticamente não se observa desde o século XV. Por serem instrumentos de caixas muito diferentes, atesta-se também a rejeição portuguesa ao uso do nome guitarra para seus cinturados preferidos até então, as chamadas “violas”. Os nomes germânicos gitar, gittern e antes cittern, também traduzidos como guitarra, viriam de uma bifurcação por caminho diferente do das línguas latinas, mas todos teriam vindo primordialmente partir da cithara latina, kithara grega e kethara assíria. Duas curiosidades: portugueses aceitariam a versão “cithara” para suas violas, mas não “guitarra”, segundo Rafael Bluteau (1720, v.8, p.508); e pelo menos um estudioso, Nuno Cristo (Em defesa da Cithara lusitânica, 2021) defende que a “guitarra portuguesa” teria vindo de cítaras desde o século XVI, embora não haja registros continuados conhecidos por lá, enquanto a citada aproximação com a Inglaterra e o caminho de registros de nomes citados sejam notórios. Ou seja, mais uma vez se atesta visões diferentes por portugueses.

Mesmo com a preferência pelo violão e ainda que tenha tido menor evidência em alguns centros, violas foram registradas na maioria das regiões brasileiras, tocando repertórios diversificados, com destaque aos pretos (cantigas e temas dançantes em batuques, em desfiles, dentro e fora das igrejas, etc.). Inclusive no maior polo comercial do século XVIII, surgido em função do Ciclo do Ouro, a cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto), em Minas Gerais (CASTAGNA & SOUZA & PEREIRA, 2008) e em capitais como o próprio Rio de Janeiro (segundo a já citada Mayra Pereira, 2013). Não se atestam, portanto, equivocadas alegações de que “a viola teria migrado para o interior do Brasil”, que são colocações oportunas para a defesa de um suposto caipirismo ancestral, que igualmente não se atesta por registros de época, mas que é entendimento coletivo ainda defendido por muitos pesquisadores e outros fiéis.

 

PERÍODO 4 (entre o início do século XX e o início do século XXI): a grande expansão de um modelo de viola no Brasil.

Surgiu, gradativamente, o modelo mais conhecido e de maior evidência nos dias atuais, consolidado hoje pelo nome Viola Caipira. Registros apontam, entretanto, que até a década de 1970, além das nomenclaturas dos demais modelos, que citamos no período anterior, a nomenclatura mais empregada era simplesmente “viola”, com registros também de “viola paulista”, “viola sertaneja”, “viola cabocla” e “viola brasileira”, para modelos com pequenas diferenças. Com processo de fabricação similar ao de guitarras, desenvolvido na grande capital São Paulo por imigrantes como Del Vecchio e Giannini a partir de 1900, o modelo não apresenta semelhança aos modelos artesanais preexistentes, inclusive os chamados de “viola paulista”, que seriam os mais relacionados ao caipirismo. Definitivo entendimento a respeito, embora desprezado ou não entendido corretamente por diversos estudiosos adeptos ao caipirismo, é indicado em pesquisa de campo da década de 1950 feita por Alceu Maynard de Araújo (ver compilação de artigos A Viola Cabocla, 1964). Entender que, por ter-se consolidado com o nome Viola Caipira este modelo teria sido o ancestral, ou único, é um equívoco talvez só explicável por motivações financeiras e/ou de crença popular.  

As violas tiveram grande salto de popularidade com os registros em discos, a partir de 1929, graças a Cornélio Pires, este apontado por dezenas de estudos, lembrando que entre aquelas haveria Violas 12 Cordas.  Após meados da década de 1970, então, após início de uso maciço do nome pela gravadora de Tião Carreiro, o modelo Viola Caipira foi crescendo em número de adeptos e de potencial econômico, com tudo o está relacionado ao capitalismo vigente no país já desde àquela época, como fabricação em série, avanços tecnológicos, ações de marketing e investimento de empresas. Coerente com o caipirismo, cujos produtos (livros, discos, shows) já tinham provado ser de bom atrativo comercial.

Já a partir de 2015 (talvez, num possível novo período surgindo?), uma cadeia de acontecimentos vem apontando novas perspectivas das violas no Brasil, com a correta ampliação de visão para além apenas do modelo Viola Caipira:

– em 2015 e 2016, o Projeto SESC Sonora Brasil levou mais de 500 apresentações de vários modelos da Família das Violas Brasileiras nas cinco regiões do Brasil, colaborando para a consolidação da diversidade e dos próprios modelos, individualmente, segundo por exemplo Roberto Corrêa (artigo Cinco ordens de cordas dedilhadas, 2015) e Denis Rilk Malaquias (Música Caipira de Concerto, 2019, p.46);

– a proposição em Minas Gerais, e depois em âmbito nacional, pelo reconhecimento oficial da viola como Forma de Expressão válida aos registros em Livros de Patrimônio Imaterial, que temos a honra de ter introduzido nos anos de 2015 em Minas e em 2017 no Iphan Nacional;

– artigos acadêmicos de estudiosos importantes, como os já citados Roberto Corrêa (As Violas do Brasil, 2017) e Paulo Castagna (Viola Brasileira, 2017).

 Os demais modelos além da Viola Caipira, a saber: Brancas (“Fandangueira” e “Caiçara”), Buriti, Cabaça, Cocho, Machête, Nordestinas e 12 cordas continuam a sobreviver, com atrativo comercial e reconhecimento público menor, mas representando a verdadeira abrangência da história das violas. Estas chegam aos dias atuais com possíveis indícios de uma nova fase histórica, quando se espera será mais considerada, estudada, preservada e reconhecida toda a Família das Violas Brasileiras. Esta nova fase deverá ser apontada no futuro a partir desta postulação científica apresentada por João Araújo, em 2021 (monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil)… Mas aí já são outras prosas.

Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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[…] Que responderá a isto o Caipora* Semanario, e a servil recova de, que he almucavar? Fallão ou não verdades os Redactores do Constitucional? São eles os desorganizadores, ou são os Caiporas, Semanário Cívico, e sua gente? Quem forma os Partidos aquelles ou estes? Citem-nos os Caiporas huma só linha da nossa Folha, em que não preguemos União e mais União […] E quantas vezes nos tem insultado os Caiporas? […] Basta como o Semanario, e Caiporas.

*Assim chamaremos, d’hoje em diante os inimigos do Brasil, e da Nação.

(Jornal O Constitucional, 03/07/1822, nº 37, p.1, grifos originais)

Viola, Saúde e Paz!

O recorte em destaque nunca teria sido considerado por Cornélio Pires, nem Antônio Cândido, nem Inezita Barroso. Na atualidade, não é decantado pelos maiores sociólogos, antropólogos, folcloristas e similares, nem por musicólogos e historiadores, ou pelos considerados maiores “papas” das violas dedilhadas… Só a lista de doutores que hoje em dia incrivelmente defendem o caipirismo como se fosse uma “cultura ancestral” é imensa e praticamente o Brasil inteiro parece concordar.

Em todo o mundo, por enquanto, só João Araújo parece ter coragem, capacidade e maluquice suficiente para apontar (e provar, cientificamente) que há, no mínimo, um grande equívoco neste “entendimento coletivo” tão defendido.

Por isso, não há por que acreditar em João Araújo, um maluco desprezado pela maioria dos violeiros, que tem pouquíssimos “compadres”, não é mesmo? E nem precisa acreditar, pois, diferente de todos os demais, o que fazemos é apresentar registros de época e contextos científicos que atestam o que dizemos. Centenas deles estão em nossos levantamentos: desprezar dados e criticar o mensageiro é comportamento típico de quem não tem como refutar a verdade dos fatos.

Dentre centenas de dados de época, o destaque aqui deste Brevis Articulus é a mais remota evidência (mas não a única) de que o termo “caipora” seria, em 1822, um apelido político, utilizado por apoiadores da monarquia absoluta.

Naquele mesmo ano, o pesquisador francês Saint-Hilaire teria ouvido outro termo parecido, na então Vila São Paulo: “caipira”, um nome que teria chamado bastante a atenção do professor pesquisador que, à época, demonstrava familiaridade com diversas línguas, entre elas o latim, o português e até o tupi / língua geral. Alguns anos depois, já de volta à França, e após bem referenciada pesquisa científica (pesquisa que checamos item a item, como fazemos sempre), o pesquisador concluiu que caipira não seria termo original indígena; e observou que seria também utilizado como apelido político, por pessoas do mesmo viés que destacamos, então chamados “miguelistas”. Tudo isso está bem apontado no livro Voyage dans les provinces de Saint-Paul et Saint-Catherine (publicação em francês de 1851, Tomo I, ver páginas 238-239, inclusive o rico rodapé).

Saint-Hilaire não teria feito o mesmo desenvolvimento que hoje fazemos, pois além de aparentemente não ter lido aquela ou outras matérias similares dos jornais, o termo “caipora” já apareceria corrompido de significado em dicionários a partir de meados da década de 1820, como ainda o é hoje em dia. Dicionários, algumas vezes, mais atrapalham que ajudam e assim parece que, até hoje, só João Araújo conseguiu perceber que “caipora” e “caipira” teriam o mesmo significado e propósito, quando foram criados, e pelo “homem branco”, não por indígenas. Não encontramos nenhum registro dos dois termos antes do início do século XIX mas são, no mínimo, “curiosos” os exercícios de “linguística intuitiva” que as pessoas acreditam, muito provavelmente por ser conveniente acreditar.

Um dos exercícios criativos mais vistos é que caipira teria algo a ver com “carpir” ou “capinar”. Seriam mutações bem interessantes: a partir de caa, do tupi/língua geral original, o “brotamento espontâneo” das letras “r” ou “i” em substituição a uma letra “a”. Mais interessante: teria sido apenas nesta palavra, posto que caa teria seguido em outras até hoje, como caapi (cipó amazonense) ou simplesmente teria sumido um “a”, sem brotar nenhuma outra letra, como em “capim” (que é como se fosse caapim).

O moderno “exercício livre” de etimologia, entretanto, nunca teria sido atestado por registros de época e estudos sérios (chegamos cerca de duas dezenas deles, anteriores a 1910). Mais incrível ainda é o fato de ser usado, e há mais séculos, o termo carpere (“arrancar, colher, arranhar”, em latim e italiano). Devemos acreditar que o latim teria influenciado menos a língua portuguesa que uma língua indígena?  

Mais interessante e estarrecedor ainda? Entre informações sugeridas num mesmo dicionário, o de Beaurepaire-Rohan, o Diccionario de Vocabulos Brazileiros (de 1899, o mais remoto registro conhecido), “caipira” ser termo paulista teria agradado, mas “carpir” ter raiz em carpere não teria agradado tanto… De que poderíamos chamar isso? Talvez, “pesquisa seletiva”?

Não sabemos o que é mais difícil acreditar: se durante cerca de 90 anos (entre 1820 e 1910) ninguém antes teria percebido que “caipira” teria algo a ver com “carpir”; como “brotaram letras” em apenas algumas palavras e noutras não; como pira teria variado de seu significado mais observado em tupi, relacionado a “peixe” e cai (que sempre teria existido) teria variado, seletivamente, de seu significado mais observado que seria relacionado com “fogo, queimar” ou, finalmente, se os romanos teriam sido influenciados pela língua indígena, séculos antes da Invasão chamada “descobrimento” do Brasil…

O povo parece achar cômodo aceitar essas possibilidades incríveis todas, ou qualquer uma delas, tanto faz (além de nós, não observamos quem questione publicamente). E estudiosos e famosos seguem defendendo a incrível explicação “etimológica” sem apresentar comprovações de época, naturalmente.

Por brasileiros, a mais remota citação escrita do termo caipira, claramente como um apelido político, inclusive assumido por quem escreveu (que, portanto, não se sentia ofendido pela alcunha), vimos no jornal paulista “O Tamoyo” (12/09/1823, nº 5, p.6).

Numa análise que, curiosamente, os chamados grandes pesquisadores não costumam citar quando tratam deste tema, sequer os ditos historiadores, contextos histórico-sociais apontam que a partir da Revolução de 1820, em Portugal, o regime Constitucional teve rejeições, tendo a primeira revolta (chamada “VilaFrancada”) em 1823. A rejeição teria tido bom número de adeptos até o fim da Guerra dos Dois Irmãos, em 1834. Xingar brasileiros contrários a D. Miguel faria sentido, muito mais com um apelido que remetesse a selvagerias indígenas, lendas de demônios, etc. Só que portugueses nunca falaram tupi, guarani ou língua geral: teriam inventado, pois, apelidos ou “xingos” próximos a nomes indígenas de fato, atestados desde o século XVI: curupira (entidade maligna que viveria nos rincões selvagens, segundo os indígenas) e caapora (indígena que viveria nos mesmos ermos, portanto, os mais selvagens).

Além do já citado Saint-Hilaire, o pesquisador Carl Martius (que também teria convivido, e muito, com os indígenas) apontou fontes e estudos sobre os termos indígenas originais, em seu Glossaria Linguarum Brasiliensium. É bom considerar que Martius escreveu este glossário em latim, português, “tupi” (entre outros dialetos indígenas misturados com a Língua Geral amazônica) e ainda comentários em alemão. Não, ele não era linguista ou etimologista, mas era cientista e sem dúvida entendia de línguas.

Será que precisamos lembrar a diferença que existe entre apontamentos de quem conviveu com indígenas, conhecia e estudava diversas línguas… e pessoas que, embora também estudiosos, não teriam convivido com as línguas, e lançam e/ou defendem teorias convenientes, séculos depois? Se nenhum deles for seu “compadre”, qual acha que teria mais propriedade para publicar sobre o assunto?

Ah, sim, é bom frisar, pois não vimos por aí: caapora teria sido relativo a indígenas, os mais selvagens, não a “qualquer ser humano” que morasse em “qualquer mato”… É bem criativa também este “empréstimo” inventado, muito aceito e repetido, posto que oportuno. A deturpação do sentido constaria, também em mais remoto registro, dentre colocações consideradas agradáveis do já citado dicionário de Beaurepaire-Rohan, de 1899. Linguisticamente? Sem querer ser rudes, mas talvez isto possa ser considerado uma aberração. Uma “forçada de barra” descarada, que precisaria de profunda pesquisa etimológica de dados concretos para ser provada, não apenas a opinião de uma pessoa… e o dicionarista, um militar carioca, não aponta ter estudado línguas indígenas, nem convivido com elas, além de ter lançado interpretações pessoais a maior parte do tempo sem citar fontes, sequer desenvolvimentos concisos. Entretanto, como já destacamos, algumas colocações suas agradam até hoje, e são selecionadas para serem repetidas, sustentadas; outras, como a citação às mesmas conclusões dos dois grandes pesquisadores estrangeiros citados (porém sem citar os nomes deles), parecem não agradar tanto…

Vasculhamos (e disponibilizamos) todas as citações ao termo “caipira” entre 1820 e 1910, não encontrando sequer uma de alguma possível “cultura”, só outros significados. Preconceito? Sim: a partir de 1850 teria iniciado pontualmente, junto ao significado de apelido político, mas não apenas contra pequenos produtores rurais paulistas, como interpretou Pires e dizem “amém” todos que o seguem em “coro cego”.

O contexto histórico-social aponta claramente que o preconceito seria contra toda uma classe proletária, por todo o Brasil chamada pejorativamente de “caipira”, além de outros termos regionais de igual valor, sendo que nenhum dos outros termos é considerado nome de uma “cultura” até hoje. Importante: apesar de sugerido assim em dicionários desde 1889, “caipira” nunca foi termo utilizado apenas em SP… e dezenas de matérias de jornais comprovam isso. Duvidou? Confira gratuitamente, pela internet, o bom acervo da Biblioteca Nacional Digital, e dos jornais Estadão e Folha de São Paulo. Nós conferimos.

É bom lembrar, em tempos de memória histórica tão fraca (ou deturpada, talvez?), que o que chamamos aqui de “proletários” (quer dizer, trabalhadores mais simples, “chão de fábrica”) abrangeria também pretos e até alguns estrangeiros. Em SP, por causa do Ciclo do Café, haveria mais proletários ligados à atividade rural, realmente… Mas o pejorativo não se aplicaria a pequenos produtores. É bom lembrar também que a maioria dos brasileiros seria rural, a divisão de classes estava apenas começando e não faz sentido antes da Revolução Industrial. Pergunte ao seu pesquisador de estimação: mesmo os defensores do caipirismo deveriam confirmar isso, se não for inconveniente por algum motivo.

Imaginar que teria existido uma cultura ancestral “caipira”, que seria uma “raiz” brasileira, é genial, criativo, agradável e lucrativo, mas não se atesta. É incrível, entretanto, que tantos doutores não admitam isso publicamente, e, ao contrário, gostem até de se autodeclarar “caipiras de fato”… Por que?

Consideramos genial a interpretação lançada e defendida arduamente por décadas por Cornélio Pires pelos aspectos como os seguintes:

– com excelente e até precoce visão de “marcas”, teria percebido que “caipira” seria um nome / marca forte, e que passaria facilmente como “original indígena”. Desta forma, poderia alegar ligação com os mais remotos tempos brasileiros, e, portanto, de uma “cultura ancestral”;

– ao recontextualizar um preconceito realmente existente, de que “caipiras” seriam perseguidos e menosprezados, Pires não apenas levantou o moral de uma classe simples, mas também atraiu a simpatia de outros, das demais classes sociais, dada a nobreza da causa. Esta “isca” foi mordida e cuspida fora por um “peixe grande”, o então já grande vendedor de livros Monteiro Lobato, o único além de nós que parece ter percebido a engenhosa estratégia de Cornélio e tentou combatê-la, posto que ameaçava suas vendas de livros. Não, não teria sido por puro preconceito de Lobato, embora eugenista declarado (como se imagina muito), mas por óbvias motivações financeiras. A prova é que Lobato, que chegou a afirmar que “meu Urupês veio estragar o caboclo de Cornélio”, calou-se a partir de quando se tornou sócio de Amadeu Amaral, primo e mentor de Cornélio Pires, em uma editora que então passaria a publicar livros dos dois grandes vendedores. Afinal, “se vende bem, que mal tem?”… e assim o “preconceito” de Lobato teria acabado.

–  Cornélio aponta ter tido plena consciência de que podia lançar sua reinterpretação sem se preocupar com fundamentações científicas, pois suas publicações eram artísticas: no livro As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho chegou a afirmar que seus registros tinham pretexto de serem “casos e mentiras”, e que lexicógrafos (elaboradores de dicionários) é que deveria “pescar regionalismos de verdade” neles.

– outra grande “sacada” de Pires foi induzir a ligação com o divino, com a religiosidade católica fervorosa brasileira, ao apontar recontextos que remeteriam aos primeiros tempos do Brasil-Colônia, como danças. Neste sentido, colaboram lendas como as do chamado “São Gonçalo”, que além de nunca ter sido santo, mas apenas beato, desde o século XVI é citado via diversas lendas. Pesquisamos alguns relatos sérios sobre a interessante vida de Gonçalo, onde não encontramos nenhuma citação de atividade musical pelo beato, como o famoso Sermão de São Gonçalo, do jesuíta português Antônio Vieira (estimado ao ano de 1690). Entretanto, no Brasil há uma Dança de São Gonçalo praticada não só na época de Pires, mas até os dias atuais: esta dança específica tem registros de ter começado só em 1621, em Portugal, mas no recontexto genial teria sido sugerida como ligada aos primeiro jesuítas por um (!) texto que citava um outro tipo de dança, sem qualquer citação a Gonçalo, realmente registrada por Fernão Cardim em 1584. Em contexto histórico-social “não lembrado” pelos seguidores de Pires, danças similares teriam existido, como celebrações de vitórias em guerras importantes e, especificamente em Portugal e na Espanha, desde a expulsão dos mouros, em 1492. Boa pesquisa histórica sobre danças, sugerimos ler Curt Lange, Danças do período Colonial…   

É genial ou não? Aponta que Cornélio teria plena consciência do que estava a fazer: defender uma “cultura inventada”, perseguida e menosprezada, ajudou muito nas vendas. Ele só talvez nem imaginasse que, com o passar dos anos, tantos outros “compadres” seguiriam suas reinterpretações livres, que agradam muito até hoje, tanto para elevar o moral de quem não gosta de ler, quanto de religiosos, quanto de quem quer faturar com a história.

Prova-se ser boa estratégia para vender livros, aulas, palestras, defender teses em faculdades e até candidaturas, como teria sido o caso de Antônio Cândido, sabia? Foi. E foi por SP, exato quando defendeu seu doutoramento. E utilizou ainda, em soma, outras interpretações lendárias antigas, como a de que os paulistas teriam DNA superior e que os bandeirantes teriam sido grandes heróis. Achamos essa estratégia bem nojenta, mas o fato é que agrada a alguns egos paulistanos desde a década de 1930, então…

É tudo mais ou menos como a história de “Papai Noel”: uma criativa interpretação livre, sustentada e “vendida” por décadas, que agrada a muitos. Apenas uma história, que embora genial, foi criada para alavancar vendas, agradando e sendo multiplicada por afinidades de muitos, principalmente interesses comerciais.

Não é nada ilegal, entretanto, pois somos um país capitalista. E temos liberdade de Credo também, portanto, cada um pode “crer” no que quiser. E é permitido vender muito para quem resolver colocar fé numa boa história. Tudo certo, portanto. E faz sentido, afinal, o caipirismo teria sido criado e sempre foi utilizado para alavancar algum lucro: Cornélio vendeu muitos livros, palestras, apresentações, discos… Antônio Cândido, tentou ser eleito… O estilo chamado “sertanejo universitário”, pegando carona em algumas características, vendeu e ainda vende muito… Inezita tinha um programa de TV para alavancar… Diversos “caipiras” atuais, embora moderníssimos, tem suas aulas de viola, livros, apresentações, palestras e outras coisas para vender.

É bom lembrar que a ideia genial hoje contempla ainda que, para ser “caipira”, basta alegar qualquer ligação com o interior (quem nunca a tem?), ou mesmo só afinidade, e estar-se-ia pronto para começar a faturar e a defender a causa nobre.

Já os que aparentemente não teriam nada “para vender”, faturam em satisfação dos egos, como nobres participantes ou apoiadores de uma “cultura oprimida e que não podem deixar desaparecer”… É estranheza em cima de estranheza: afinal, se é “ancestral”, ou seja, antiquíssima, por que teria chance de sumir? Que raiz rasa seria essa?

Felizes também estariam por não precisarem ler, pesquisar e refletir muito (a tradição oral resolve e, afinal, são diversos “doutores” que defendem). Ler e refletir dá muito trabalho. Também faturam por conseguirem muitos “compadres e comadres”, gente simples, todos “humildes como eles mesmos”, receptivos, amigos, “irmãos caipiras” por praticamente todo o Brasil.

É outra característica da genialidade da ideia, pois realmente pode-se dizer que ainda há pelo Brasil uma classe “interiorana”, pacata, trabalhadora, ligada ao ruralismo, de muito valor, mas com pouco reconhecimento público. Só que antes, esta classe teria sido a esmagadora maioria, assim como a agricultura era desenvolvida, na prática, por escravizados sequestrados da África. E antes, “mais antes”, que seria a verdadeira cultura ancestral, as características eram praticamente todas dos indígenas, que não eram, portanto, “caipiras”, na verdadeira “raiz” histórica brasileira.

Para se fazer parte hoje da classe verdadeira, o faturamento possível é conquistado com muito suor, tem que pegar na enxada de sol a sol, não apenas se autoproclamar “caipira”. Imaginar que o passado teria sido exatamente como o presente é equívoco muito básico, principalmente se apontado por estudiosos, por isso entendemos que não seja simples equívoco, mas que muito provavelmente haja muito de conveniência, de manipulação da verdade nisso.  

Os que ignoram a verdade estão felizes e os que faturam, quer ignorem conscientemente ou não, estão mais felizes ainda… A interpretação tem várias “meias verdades” em paralelo… Está tudo certo legalmente… Então, por que questionar?

Bom, quem estuda um pouco de História e Ciência percebe que a função do pesquisador sempre foi questionar e apontar verdades atestáveis, independentemente de lucros e outros interesses. E não há problema algum em praticar Ciência, afinal, o Natal também é uma história agradável criada e sustentada por milhares: ninguém deixa de faturar se apontamos que, na verdade, o Aniversariante não teria nascido de fato naquela data, e que é estranho que se defenda que todo mundo mereça ganhar presentes se o aniversário é Dele… não é mesmo? Então, sem problemas: podemos relatar o estranho caso do bom velhinho que rouba a cena do Filho do Homem, todo mundo sabe que é um embuste comercial para alavancar vendas e assim segue o andor.

Entende-se, como maior motivação, que o Brasil hoje precisa mais do que nunca de práticas científicas: leitura, estudar e refletir sobre a História, esclarecimentos de equívocos históricos, verdades demonstráveis por dados (e não apontadas apenas por teorias e entendimentos, mesmo que estes sejam sustentados por pessoas importantes).

Nós “temos fé” em dados históricos e pesquisas científicas honestas, e na função histórica da Ciência. Acreditamos que interesses capitalistas, ególatras e corporativistas normalmente costumam ser colocados acima de quase tudo, sobretudo da Ciência, e que podem embotar, mascarar ou até iludir entendimentos. E que a maioria dos brasileiros não tem hábito de ler, não se preocupa em checar fontes e dados, preferindo acreditar em histórias agradáveis, ainda mais se muitos “compadres” também acreditarem.

Quanto mais “compadres” apoiarem, mais “verdade” seria alguma coisa? É o que parece, mas na verdade mesmo não é assim, automático. Muitos podem estar enganados e inocentes (ou quase inocentes) no processo. Estes inocentes principalmente, mas também toda a sociedade, merecem ter a oportunidade de saber. É por isso também dever cívico e moral, além de científico, apontar equívocos e confrontar com verdades atestáveis.

O que vão decidir fazer depois de saberem a verdade, em parte é problema de cada um, mas em parte é problema de toda a sociedade. Além disso, há outros embustes semelhantes por aí, cuja mesma forma de pensar e agir corretamente pode e deve ser aplicada. 

Quando é algo relacionado ao “divino”, mais ainda se deve procurar dados e apontamentos claros pois, afinal, somos um país de fé: de muitas delas… Mas aí já são outras prosas. Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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1 Nov, 2023

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO?

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO?

Viola, Saúde e Paz!

Entre as ainda não consensuais considerações da Organologia (Ciência que estuda a classificação dos instrumentos musicais), sobre o que diferencia ou não os cordofones, está o número de cordas. Ou seja: ainda não haveria um consenso que determinasse diferença entre, por exemplo, uma guitarra (ou “violão”) de seis, de sete ou de doze cordas. Mesmo informalmente, muitos estudiosos dentre os que pesquisamos nas principais línguas ocidentais desde aproximadamente o século XV, referenciariam estes três tipos de instrumentos simplesmente como “guitarras”.

Como consideração inicial, já apontamos que entendemos, em nossa experiência como instrumentista e arranjador, que há clara diferença de sonoridade entre os três modelos citados (e, no caso do violão 7 cordas do choro brasileiro, um destaque especial pela forma mais usual de execução, de linhas melódicas “recortando” acordes e melodias principais). E, também, que a classificação se aponta clara pelas nomenclaturas consolidadas destes, embora nomenclatura ainda não seja tão estudada pelos pesquisadores quanto nós, atrevidamente, nos pusemos a pesquisar.

Para uma luz sobre o assunto, inicial ou complementar, sugerimos o bom doutoramento de Adriana Ballesté: Viola? Violão? Guitarra?: proposta de organização conceitual de instrumentos musicais de cordas dedilhadas luso-brasileiras do século XIX, de 2009. Nele se encontra um bom histórico dos estudos de classificação ocidentais, além de ser, em si, uma nova proposta de classificação, que levaria em conta outros aspectos, visões e Ciências, como o que ela chama de “terminologia” (ou seja, os nomes e descrições) e que concordamos em grande parte.

  Outra consideração nossa, mais importante, é que se não considerarmos número de cordas como diferenciador de instrumentos (em paralelo aos nomes dos mesmos, em diferentes línguas), seria difícil entender alguns particulares da História deles (e da História que eles representam). É o que chamamos, em nosso livro A Chave do Baú, de “tesouros” que outros pesquisadores ainda não teriam descoberto antes de nós.

Para começo do começo, seria difícil diferenciar os mais remotos cordofones com braço que se tem conhecimento: em formato e número de cordas (três), praticamente só se diferencia um pan-tur sumério, uma kethara assíria e um nefer egípcio pelos nomes (informações que conferimos em dezenas de fontes, e sugerimos conferir no ótimo The History of Musical Instruments do musicólogo alemão Curt Sachs, 1940). Também pelo número de cordas pudemos atestar um padrão de evolução que teria se repetido por séculos em diversos cordofones ocidentais, padrão que detalhamos recentemente em outro Brevis Articulus aqui: a partir de três, depois quatro, cinco (cordas ou ordens de cordas) e assim em diante até se consolidarem em seus formatos atuais, também teria sido a história dos alaúdes, de friccionados por arco (como violas, depois violinos), das guitarras e outros.

Mais remota citação a respeito, seria das kitharas gregas, da região da Trácia, que ali pelo século VIII aC. já teriam sete cordas. Foram citadas no século I aC. na Eneida do poeta romano Virgílio (em latim, como citharas) e depois “recitadas” por São Isidoro de Sevilha, já no século VI da era Cristã, segundo o Etymologiarum sive Originum de Wallace Lindsay (1911, p.157). Isidoro, que também já rascunhava alguma classificação ou diferenciação de instrumentos à época, apontava, entre outras diferenças, que citharas teriam sete cordas e saltérios, dez cordas.

Um capítulo muito importante da História dos cordofones europeus, pelo que pesquisamos, teria sido até antes de nós pouco desenvolvido, muito provavelmente pela não consideração a diferenciações por número de cordas: o grande capítulo das guitarras espanholas, entre os séculos XVI e XIX.

Primeiro, que instrumentos chamados guitarra na península hyspanica (segundo Juan Bermudo, em seu Declaracion de los Instrumentos Musicales de 1555) teriam 4 ordens de cordas, a saber 3 ordens duplas e uma corda singela, solteira, sozinha. Percebe-se que os instrumentos espanhóis, à época, espelhavam instrumentos árabes, com mesmas armações de cordas, restando o formato de caixa como diferenciador do que seria “europeu” (que teria escolhido aplicar o formato com cintura e fundo plano). Esta é uma separação por contexto histórico óbvio, vez que árabes seriam invasores, como já teria citado no século XIV o padre poeta espanhol Juan Ruiz em seu longo poema Libro de Buen Amor. Assim, guitarras espelhavam manduras e vihuelas espelhavam alaúdes, estes últimos com 11 cordas em seis ordens (5 duplas, uma singela).

Entretanto, caracterizando separação ainda maior, a partir do século XVII os espanhóis resolveriam abandonar o uso de guitarras pequenas e também de vihuelas (dedilhadas) em favor de uma nova guitarra, então com cinco ordens (que depois ganharia o tratamento moderno atual, de “guitarra barroca”). Como se percebe, o nome guitarra continuaria o mesmo, restando como diferenciador apenas a armação de cordas e o tamanho. Se não considerarmos o número de cordas como diferenciador, como entender, como se aprofundar no estudo, quando não houvesse desenhos e esculturas bem claros?

E a situação se repetiria mais tarde, a partir do século XIX (após fase de transição de cerca de 70 anos), quando novamente os espanhóis optariam por manter o nome guitarra, mas abandonando a armação antiga (já então de 10×5, ou seja, 5 pares de cordas) para lançar a guitarra moderna, com seis cordas simples. Estas viriam a tomar o apelido de “violão” pelos portugueses (até porque, no desenvolvimento, acabariam por assumir caixas um pouco maiores), mas à época, para espanhóis e depois para europeus em geral menos portugueses, teriam sido todas “guitarras”, e desde o século XVI ou até antes. As diferenças seriam de tamanho, no começo, mas depois praticamente só as armações de cordas diferenciariam todas aquelas guitarras.

Um último exemplo, que também só nós defendemos por enquanto, viria exatamente das guitarras chamadas “barrocas” abandonadas pelos espanhóis, as já de armação 10×5. Estas seriam chamadas simplesmente de “violas” pelos portugueses, num contexto histórico-social bem claro, de inimizade ou disputa com os espanhóis, adversários históricos dos portugueses. Deste contexto, e da análise de mais de uma dezena de evidências em centenas de fontes em cerca de três séculos, concluímos que, na verdade, não existiriam violas dedilhadas até a consolidação do violão, no século XIX, pois “viola” teria sido apenas um nome utilizado pelos portugueses para outros instrumentos já existentes. Para conferência destes dados, entendemos que os trabalhos Instrumentos Musicais Populares Portugueses (de Veiga de Oliveira, publicado em 1964) e A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789), de Manuel de Morais (publicado em 1985) sejam suficientes, mas é preciso analisar com atenção, pois diversos estudiosos citam estes mesmos trabalhos, mas não teriam observado a falta de instrumentos físicos que correspondessem às chamadas violas dedilhadas portuguesas citadas em épocas anteriores ao século XIX. O que existiu, na verdade, foram outros instrumentos chamados de “viola” pelos portugueses (alaúdes, vihuelas, guitarras); todos com descrições bem claras, inclusive que eles mesmo reconhecem, apontam e nomeiam. De “violas”, diferentes daqueles outros instrumentos, não se conhecem registros, pelo menos até…

Sobraria então para nós, os únicos a observar, apontar “a partir de quando, então, pode-se afirmar que teriam surgido as violas dedilhadas?” (pois elas, sem dúvida, resistiram e hoje são realidades, e são hoje claramente diferentes de guitarras espanholas… principalmente, pela armação de cordas!).

Bom, as mais remotas evidências observamos em outros dois trabalhos também muito citados, mas que não teriam sido vistos como os vemos: o método Liçam Instrumental da Viola Portuguesa, de João Leite Pita da Rocha, de 1752, que atesta que as violas portuguesas daquela época seriam, nada mais, nada menos, que guitarras espanholas, posto que o método é praticamente a tradução para português, item por item, da parte das guitarras de famoso método de Juan Amat, estimado ao ano de 1596, cujo extenso título começa por Guitarra espanhola e vandola…  O método “copiei, traduzi e colei” de Rocha também nos traria, numa rara inserção própria (que parece que a maioria não teria percebido), a informação de que as violas portuguesas armariam, sim, com cinco ordens duplas, como as guitarras espanholas, porém duas destas ordens seriam triplas (diferente, portanto, das espanholas).

Esta informação seria corroborada por outro método português, o Nova Arte de Viola, de Manoel da Paixão Ribeiro, de 1789. Neste, um desenho de uma viola portuguesa então com a citada armação 12×5 (as duas ordens triplas seriam as superiores) e a informação de que haveria as opções de uso de cordas de tripa (como sempre foram as das guitarras espanholas) e/ou também de cordas metálicas, “de arame”. Estas duas características (número um pouco diferente de cordas e o uso delas em versão metálica) seriam as mais remotas evidências concretas de diferenças entre guitarras espanholas “barrocas” e violas portuguesas.

Como se vê mais esta vez, se não considerarmos número de cordas como diferenciador válido, este capítulo também fica difícil de perceber (e parece que a maioria dos estudiosos realmente não teria percebido, pois seríamos os primeiros a ter observado o detalhe). E seria capítulo importante se entenderem, como nós, que seriam as mais remotas indicações de origem das violas dedilhadas, como instrumentos físicos diferenciáveis, não apenas como nome genérico aplicado a vários outros instrumentos.

Após a consolidação do violão em seis cordas singelas, as violas “antigas guitarras barrocas” simplesmente seguiriam como eram, mas então tornando-se instrumentos diferenciáveis, únicos: não por nova criação ou grande mudança, mas porque as guitarras teriam mudado. Como evidência, observa-se que após o desenvolvimento e consolidação, sobreviveriam até os dias atuais, modelos ativos com 10×5 e outros com 12×5 na Família das Violas Portuguesas, explicáveis exatamente pela observação do histórico de número de cordas em registros.

Teria havido ainda, durante o citado período de transição de cerca de 70 anos (observamos e coletamos registros a respeito entre 1760 e 1826), também guitarras de 12 cordas em 6 ordens duplas, exatamente no começo do retorno às seis ordens (que teriam sido usados por alaúdes e antigas vihuelas, como citamos no início). Ora, estas guitarras 12×6 também seriam chamadas de “violas” pelos portugueses, e algumas ainda sobrevivem em museus, mas o tipo de armação teria caído em desuso, muito provavelmente pela ascensão, a partir também do mesmo século XIX das guitarras portuguesas, também 12×6. Nunca é demais lembrar que o período histórico (séculos XVIII até o início do XIX) remete às fases da Revolução Industrial, que trouxe grandes mudanças sociais à toda a Europa da época, e aos quais os instrumentos populares sempre reagiram, na História.

Isso, em Portugal, mas não no Brasil: aqui fenômeno diferente aconteceria (por isso apontamos a influência das guitarras portuguesas, que por aqui não têm o mesmo contexto que em Portugal). As 12×5 é que praticamente estão desaparecidas, representadas pelas aqui chamadas Violas de Queluz do século XIX, só ocorrendo por peças de museus e colecionadores, e praticamente só no Estado de Minas Gerais. Já as Violas 12 Cordas (em seis duplas, ou seja, 12×6) se consolidaram como um dos modelos da Família das Violas Brasileiras, sendo hoje tocadas e fabricadas em vários Estados do país.

Outra particularidade brasileira, e também contextualização inédita nossa, é que a Família das Violas Brasileiras apresenta diversidade muito maior que a Família Portuguesa, em tamanhos, formatos, armações de cordas e outros detalhes (condizente com o tamanho e diversidade cultural brasileira). Graças à técnica metodológica que desenvolvemos, conseguimos contextualizar todas as características das violas dedilhadas conforme a História dos Cordofones europeus, o que explica o conjunto agrupado aqui em torno do nome forte adotado pelos portugueses (“viola”), lá num contexto de nacionalismo (rejeição aos espanhóis e aos árabes), aqui por simples continuidade de uma língua comum. Só que aí já não é mais apenas prosa de números de cordas: aí são outras prosas…

Muito obrigado por ter lido até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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26 Out, 2023

COERÊNCIAS HISTÓRICAS EM INSTRUMENTOS MUSICAIS

Coerências históricas em instrumentos musicais

“[…] instrumentos musicais são artefatos mediadores de relações sociais e percorrem ao longo do tempo carreiras simultaneamente musicais e sociais […] Se não levarmos em conta os cenários sociais das práticas instrumentais e os discursos sobre música, as carreiras dos instrumentos musicais parecerão fortuitas e arbitrárias…”

(Dra. Elizabeth Travassos, no livro Artifícios e Artefactos. Rio de Janeiro: Letras, 2006).

Viola, Saúde e Paz!

Em nossos atrevidos, mas inéditos e muito bem embasados estudos, chegamos a apontar algumas postulações. Estes estudos disponibilizamos em nossa monografia, em artigos científicos, no livro A Chave do Baú e nestes Brevis Articulus semanais aqui, que tratam de aprofundamentos, pois o acervo pesquisado é bem grande, em diversas línguas, sobre toda a História dos cordofones europeus. Algumas destas postulações se somam e se cruzam, completando-se. É o caso de duas que escolhemos destacar hoje: “instrumentos musicais mudariam conforme eventos de comoções sociais significativas, porém, ao mesmo tempo, alguns resquícios históricos tendem a resistir neles por muito tempo”.

 A tal História dos cordofones europeus teria seus primeiros indícios na influência dos gregos, que buscamos atestação em fontes de época desde os escritos em latim do século II aC. (Plautos, depois Cícero, Horácio, etc.). O cruzamento que apresentamos aqui é um pouco complexo, já que engloba dados de tantos séculos passados, mas o que constatamos é que, num quadro geral que a princípio poderia aparentar aleatoriedade, observamos coerências históricas. Várias.

Estas atestações de coerência histórica foram observadas em diversos instrumentos musicais, por diversas épocas, procedências e nomes. Mergulharemos aqui em três características históricas de cordofones:

1 – Número de cordas: é apontado normalmente em função de “ordens”, porque cordas montadas bem próximas, acionadas simultaneamente por um mesmo dedo (ou por plectros, que seriam pequenos objetos), seriam afinadas segundo a mesma nota musical. É tão comum que alguns autores confundem “cordas” com o que na verdade seriam “ordens de cordas”, que significa que uma dupla ou trio de cordas teria o mesmo valor de uma corda sozinha, esta dita “singela”. Muitos às vezes se referem a “cordas duplas ou triplas”, mas demonstraria certa falta de acurância (falta de precisão geral no trato da coisa), pois cordas não são como cabelos “de duas pontas”, são individuais; por isso, optamos sempre por apontar que seriam “duplas ou trios de cordas”. Pequenas diferenças, grande cuidado com o tema.

A coerência histórica seria que instrumentos europeus mais antigos apontariam armar em duplas ou trios de cordas, muito provavelmente por influência dos bons instrumentos árabes, mais evoluídos, como a família dos alaúdes (mandura / rebab, alaúde, teorba), que tinham caixa em forma de uma pera cortada ao meio (chamado formato “periforme”), em diferentes tamanhos. Não conhecemos ainda registros seguros sobre os motivos da preferência árabe por duplas de cordas, então preferimos não conjecturar. O fato é que eles teriam sido, e ainda são (!) exatamente assim. Com o passar do tempo, instrumentos europeus, ao contrário, teriam evoluído com caixas cinturadas; e alguns séculos depois passariam a usar cordas singelas, como, e com destaque, a guitarra espanhola moderna, apelidada de “violão” pelos portugueses. Um contexto histórico social aponta que a rejeição aos invasores árabes teria se expressado pela opção de formato de caixa diferente, rejeição cujo mais remoto registro explícito pode ser observado no extenso poema Libro de Buen Amor, de Juan Ruiz (estimado ao século XIV); entretanto, as duplas de cordas resistiriam por mais alguns séculos: em outro formato de caixa também em rejeição aos mouros, o formato arredondado, as duplas de cordas resistem até os dias atuais, como é o caso dos bandolins e guitarras portuguesas. Somente mais tarde outro contexto histórico-social viria apontar a citada mudança para cordas singelas das guitarras, acontecido em paralelo com a evolução das fases da Revolução Industrial (entre os séculos XVIII e XIX). Soma-se ainda o contexto da ascensão espanhola, uma espécie de “império de destaque” no território europeu entre os séculos XV e XVIII, cujas concepções influenciaram significativamente as culturas vizinhas (não à toa apontamos referências ligadas ao território europeu para exemplo).

Por isso, quando hoje vemos sobreviver violas dedilhadas portuguesas e brasileiras com cinco ordens duplas ou de cordas e formato cinturado como as guitarras chamadas barrocas (de entre os séculos XVII e XVIII), enquanto em toda a Europa este tipo de instrumento passou desde o século XIX para seis cordas singelas, podemos identificar que algo teria acontecido especificamente em Portugal: seria o contexto histórico-social da disputa com os espanhóis, expressa por vários capítulos desde o surgimento dos lusitanos como reino independente, lá nos idos do século XII. A própria “guitarra” portuguesa (único instrumento com esta variação de nome que teria caixa arredondada), com suas seis ordens, mas de cordas duplas, aponta a rivalidade, e atesta que instrumentos populares reagem a contextos histórico-sociais, tanto em características organológicas (formatos, cordas, afinações, etc.) quanto em nomes.

A “outra face da moeda” (ou “postulação cruzada”, como chamamos aqui), é que, apesar das mudanças acontecidas por contextos histórico-sociais, algumas características venceram os tempos, que é o caso das afinações em quartas, presentes desde os periformes instrumentos da família dos alaúdes, que passou por cinturadas: guitarras e vihuelas até o século XVI, guitarras barrocas até o século XVIII e contina nos violões e outros cordofones até os dias atuais. Ou seja: mudanças de formato apontam rejeição aos inimigos árabes, mas afinações e número de cordas persistem até hoje.  

2 – Evolução do número de cordas pelos tempos:  primeiro resumindo as origens dos cordofones, já desde os mais remotos registros escritos e das artes gráficas (desenhos, esculturas, etc.) observa-se que cordofones teriam evoluído a partir de harpas (nome consensual, de mais provável origem egípcia) que seriam, basicamente, estruturas ocas, muitas vezes tubulares ou chifróides, laterais a cordas que seriam presas e esticadas pelas extremidades. Estas harpas viriam a ter também versões “portáteis” (chamadas liras em grego e latim, nabla em hebraico / egípcio); depois, teriam vindo a apresentar caixas de ressonância também ao longo (paralelamente abaixo ou acima) das cordas, chamados hoje psalmorum (“saltério”, em latim). Só depois as liras surgiriam acopladas a caixas de ressonância destacadas das cordas (chelys em grego, testudo em latim), denotando o formato de cascos de tartaruga, muito provavelmente também em concorrência com a tradição árabe de formato de caixas.

Finalmente, depois disso, os cordofones teriam evoluído para instrumentos com braços, e, enquanto os antigos todos preservariam até hoje praticamente as mesmas características, os cordofones com braço se popularizariam. Entende-se que por causa desta popularidade teriam vindo a sofrer várias mudanças contextualizadas histórico-socialmente pelos séculos, principalmente em seus nomes, que mudariam em função de ações nacionalistas de povos que dominariam outros, conforme inclusive já citado aqui (gregos e romanos). Entretando, por outro lado, a tendência de continuidade histórica pode ser apontada nos cordofones com braço: primeiro se observam os de três cordas (como os ancestrais pant-tur sumério, pandur caucasiano, kethara assíria, kithara grega, nefer egipcio e outros), repetindo o que teria acontecido com liras e “saltérios” (cordofones mais ancestrais, sem braços, já citados) para depois irem aumentado em número de cordas, gradualmente. O mesmo tipo de evolução gradual a partir de três cordas (ou ordens) é observado, com o passar dos séculos, em registros históricos de alaúdes, guitarras, violinos e outros.

 

3 – Resquícios em nomes de instrumentos com braço em diversas línguas, por séculos. Estes são os resquícios nos quais mais nos aprofundamos, por não termos visto antes estudos consistentes neste sentido. Observamos, inclusive, uma tendência de bifurcações de nomes, em diversas línguas, e que refletem contextos histórico-sociais bem observáveis. Desde pan-tur (sumério) e kethara (assírio), aproximadamente 1800 anos antes da Era Cristã, passando por fandur / pandur (em dialetos antigos da região do Cáucaso), continuado em registros em grego (pandura, kithara), depois em latim (pandorion, cithara e outros), para finalmente bifurcações serem observadas durante a evolução histórica de registros nas principais línguas europeias, sucessivamente (como a bifurcação pelas iniciais em “v” ou “f”, entre outras, que já tratamos em outros Brevis Articulus).

Todas estas mudanças coincidem com eventos de grande impacto social, desde os assírios que subjugaram sumérios, depois fenícios comercializando pelo território hoje chamado europeu, até a influência grega, depois romanos, depois Igreja Católica, etc. Nas primeiras páginas do livro A Chave do Baú apontamos um cronograma destes eventos de grande impacto e as alterações acontecidas em instrumentos musicais populares.

Esta parte de nossos estudos, é sempre bom dar crédito, evoluímos consideravelmente a partir da visão pioneira do musicólogo alemão Curt Sachs (Real-Lexikon der Musikinstrumente, de 1913, e The History of Musical Instruments, de 1940). Sachs foi citado em alguns poucos estudos que conferimos durante o processo, mas achamos suficiente para aprofundarmos e buscarmos atestações, além de ir bem mais adiante. 

Assim, quando um instrumento muda de nome e/ou de características organológicas significativas (como formatos de caixa), mas mantém outras características (como armação de cordas, afinação, tamanho e outros), caracterizam-se que a alteração teria sido por motivação não técnica (como nacionalismo), vez que para o resultado final da execução musical não haveria muita diferença o formato de caixa. E também caracteriza que, apesar de parecer aleatório, estes dados que são de abrangência popular ainda pouco estudada além de por nós, resquícios muitas vezes podem atravessar séculos, apontando a tendência de continuidade dos instrumentos ao mesmo tempo que apontam, quando há mudanças, as comoções sociais que teriam testemunhado.

Exemplos: a já citada afinação em intervalos de quartas, utilizada em alaúdes há séculos, ainda se mantém em instrumentos de nomes bem diferentes, como guitarras… Só que “guitarra” guarda resquício do antigo nome latino cithara e/ou do grego kithara. Já armações com duplas de cordas (ou “ordens duplas”), também presentes nos antigos alaúdes, são observadas em vários instrumentos europeus de formatos de caixas e nomes diferentes como as vihuelas e depois as chamadas guitarras barrocas, ambas cinturadas e refletindo, em suas origens, rejeição espanhola contra árabes invasores… mas vihuelas guarda resquício do nome latino viola, observado desde o século XII; duplas de cordas ainda sobrevivem, como é o caso das peculiares violas dedilhadas portuguesas e brasileiras, assim como, antes, nos mandolins, agora bandolins (estes últimos, cuja alteração das caixas foi para arredondadas, também diferente das periformes mouras). A constância de variação de nomes, neste caso, sofreu mudança pela rejeição europeia, mas depois seguiu com variações próximas: das manduras árabes, para bandurria, depois bandola, mandola, mandolim, bandolim.  

Aliás, a constância organológica e de nomenclatura dos instrumentos árabes com braço, desde aproximadamente o século XIV até os dias atuais, enquanto os instrumentos europeus teriam tido várias modificações, atestam que alguns contextos histórico-sociais apenas os europeus teriam sofrido (em destaque, a natural rejeição aos próprios mouros, visto os europeus terem sido invadidos por eles, que por lá ficaram “de boa” por cerca de sete séculos).

Curioso, mas dentro da mesma observação e como exemplo, é um detalhe da história dos pianos. Estes, na parte interna das caixas, pode-se dizer que seriam como harpas, porém com característica dos antigos dulcimer (espécie de saltério ancestral, tocado por golpes de pequenos objetos, “pequenas pinças”). O sistema atual dos pianos se assemelha mais a pequenos “martelos”, acionados pelas teclas… Entretanto, seus antepassados (cravo, cravicórdio) utilizariam duplas de cordas (!) e seriam tocados por “pequenas pinças”; portanto, os pianos apontam ter evoluído de duplas de cordas para cordas simples, numa mesma coerência histórica acontecida nos cordofones europeus, a partir da guitarra espanhola, no mesmo século XVIII de consolidação dos pianos e em plena Revolução Industrial. Não pode ser coincidência, certo?

Mais interessante (e atestador, embora complexo) são instrumentos que já citamos por aqui algumas vezes, chamados de forma geral organas (que significa, em latim e em grego, apenas “instrumentos musicais”, ou seja, um nome genérico). Já tratamos em alguns Brevis Articulus, mas nunca é demais lembrar o capítulo especial representado por estes instrumentos. A mais remota citação, sumponiah (“sinfonia” em aramaico/hebreu/árabe), seria de um nome de instrumento mais provavelmente de sopro, que dataria possivelmente do século VI aC. vez que é citado no livro de Daniel, na Bíblia, mas já seria um empréstimo de συμφωνία em grego, depois simphonia em latim. Depois, no século VI (Boethius) e no X (no Musica Enchiriadis), “sinfonia” teria sido ligado a harmonia de vozes, diafonia. Depois, ali pelos séculos XI e XII, que é quando se teria conhecimento da mais remota escultura, as organas seriam cordofones grandes com características bem variadas, mas também teriam sido os mais remotos registros de antigas gaitas-de-fole (instrumentos de sopro, com vários tubos e com foles, naturalmente) e que anteriormente já teriam sido ligados ao nome organa. Uma confusão, não?

Juntando numa lista os resquícios das organas e/ou sinfonias pelos séculos: em flautas múltiplas, em instrumentos com foles, em cordofones (dedilhados e friccionados), teclados, manivelas… Ah, sim, o mais óbvio pelo nome, organum ou organa ligaria ao nome “órgão”, os modernos com teclados e até eletrônicos… mas lembrando que órgãos ancestrais teriam tido tubos, ou seja, as teclas acionariam sistemas pneumáticos. Por isso é possível entender porque o nome “sanfona” teria vindo de “sinfonia”, mas o instrumento hoje teria fole e teclas.

E porque o nome “viola” foi cair para instrumentos cinturados? Ora… organas eram cinturadas, e acionadas por uma roda. Como outros instrumentos, eram chamados também sambuca (um tipo ancestral de sabugueiro, utilizado como material desde as liras antigas), daí, sambuca rotata (“sambuca de roda”), depois vielle a roue (“viola de roda”, em francês”) e viola de roda em catalão… Depois, a roda (e as teclas, e a manivela) caíram de uso, o tamanho diminui e só restou… a “viola”: um cinturado com cordas!   

Há alegações até a hydraulos, instrumentos movidos a água e ar, bem ancestrais, mas aí entendemos ser equívoco: só poderiam ser ligados a organas (como observamos registro no século IX, por Aurelianus Reomensis) se considerar organa como nome genérico, “qualquer instrumento musical”. Muito apontam isso até hoje, mas hydraulos não eram “órgãos”, teria faltado estudar as origens e evoluções do nome “órgão” a partir de organa / organum, que enganam se não for observado o global da História.

Por último, incluímos por nossa conta e esforço de pesquisa o nome “harmônica”, que remete a “harmonia, sinfonia” e à “gaita” (no caso, “gaita de boca”). Gaita, do árabe alghaita, seria “palha” ou “palheta”; palhetas que seriam as divisões e pequenos objetos (plectros), tanto das gaitas quanto das sanfonas, quando de instrumentos de sopro, quanto em cordofones antigos como saltérios (sem braço) até cordofones atuais, como as famosas palhetas das guitarras elétricas… Opa! Já achamos um pequeno elemento comum a vários instrumentos bem diferentes, de várias épocas… mas há outro elemento comum mais importante. É só seguir lendo.

Tratamos aqui de características organológicas muito diferentes, certo? Em alguns casos, os nomes apontam relação, em outros, não: pelos séculos estas relações às vezes foram se perdendo, mas durante muito tempo mantiveram ligação clara. Aparentemente, não teriam nada totalmente em comum, certo?

Atestamos, entretanto, que desde os mais remotos registros conhecidos das “sinfonias” e depois das “organas”, os instrumentos indicam emitir mais de uma nota ao mesmo tempo. Este tipo de sonoridade, inclusive, sempre pôde ser identificado por qualquer pessoa, sem que precisasse ser muito conhecedor de música. E muitos não-especialistas em instrumentos musicais antigos registraram narrativas sobre eles, dando os nomes que entendiam ser mais adequados.

No caso das organas com cordas (as tais do século XI) e as gaitas-de-fole e até algumas flautas múltiplas, uma característica comum a mais é que apenas um dos sons apresentariam variações de notas, enquanto os demais (cordas e sopros) soariam soltos, nas notas originais, fixas. A sonoridade é bem típica, nestes casos.

De qualquer forma, percebeu a continuidade, mesmo com a pulverização de formatos, tipos e nomes diferentes? Os instrumentos antigos, mesmo com diferentes formatos, maneiras de tocar e/ou de nomes, seriam instrumentos capazes de emitir “sinfonias”, ou seja, mais de uma nota musical ao mesmo tempo. São hoje chamados “instrumentos de harmonia”, ou “harmônicos”. Esta característica agrega também o conceito teórico muito estudado até hoje, de organum como “harmonia de vozes, sinfonia, diafonia”, ou seja, “mais de uma voz ou som ao mesmo tempo sendo emitida”. Entendemos que não pode ser coincidência.

Ainda um adendo final, sobre alterações de significados de nomes pelos tempos, em diversas línguas: o mais remoto nome observado, sumponiah em aramaico, aponta ter sido o nome de um instrumento, num empréstimo do grego symphonia (este onde sym seria algo próximo a “inclusão, aumento, soma” e phonia “vozes, sons”). A partir daquele nome em aramaico / grego, pelas diversas circunstâncias, teríamos chegado hoje ao significado de “sinfonia”, mais abrangente, em várias línguas ocidentais, assim como influências em vários nomes de instrumentos musicais (como em “sanfona”). Algumas vezes a consolidação de um nome altera significados anteriores, até por equívocos repetidos por vários séculos, que nunca teriam sido questionados, pesquisados corretamente e corrigidos.

Um exemplo que observamos, mas não vimos em outros estudos, é chamar antigos saltérios de “cítaras”: saltérios seriam cordofones sem braços, e cítara, conforme já descrevemos, viria de nomes de cordofones já com braço (kethara-kithara-cithara). Consideramos equivocado e prejudicial aplicar nomes mais modernos e/ou traduções a instrumentos antigos, mas, neste caso, a consolidação parece tentar corrigir entendimentos equivocados, pois durante séculos se observa a confusão entre “cítaras”, até por linguistas (como dicionaristas, “lexicógrafos”). Cítara, hoje, é convencionalmente nome de instrumentos sem braços, mas o mais correto seria de ser apontado para instrumentos com braço. Há outros exemplos similares, fazer o quê? Paciência.

Mas é ou não é interessante? Pirou sua cabeça também? O nome organa era um genérico, espalhou-se por instrumentos diferentes, aqui e ali com resquícios históricos atestáveis (conforme nossa postulação, de que a história dos instrumentos aponta coerências e constâncias, inclusive nos nomes). Teria alguma lógica e seria possível dissecar as confusões feitas por narradores antigos, que teriam observado pontualmente algumas características, mas sem visualizar o todo, o geral da História. E hoje, podemos “amarrar tudo” comparando várias histórias de instrumentos, que atestamos teriam sido também mudanças por contextos histórico-sociais, mas mantendo alguns resquícios… Só que aí são outras prosas!

Muito obrigado por ter lido até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

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ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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O Segredo por trás da Chave do Baú

            Viola, Saúde e Paz!

Por acaso conhece o nome onomatorganologia?  E separado, onomato-organologia, já ouviu falar?

Pois é… em Primeiro de abril de 2023 já escrevíamos por aqui os Brevis Articulus, onde apontamos aprofundamentos sobre o vastíssimo banco de dados que levantamos e organizamos e que acabaram por culminar em nosso livro A Chave do Baú. Na verdade, tínhamos começado aqui três meses antes, em janeiro. Mesmo assim, por ser citado como “dia da mentira”, brincamos naquele dia, pelas redes sociais, que teríamos “inventado um embrião de uma nova ciência, inspirado num olhar científico milenar” (que foi o título da postagem). Com nome em grego e tudo: zoeira total…

Mas… já ouviram falar que precisamos ter cuidado com o que desejamos, pois pode acontecer? Pois é… agora, apenas seis meses depois, estamos no caminho de conseguir aprovação científica do termo não como “nova ciência” (aí já seria demais), mas como uma técnica metodológica, desenvolvida a partir de outras metodologias existentes. O nome, aquele mesmo, só que em separado: onomato-organologia. Por que inventar um nome? Ora… porque somos o “pai” da “criança”, que não tem “mãe” humana: não acha que temos o direito de batizar? 

Bom, o Tempo é que é, de fato, o verdadeiro “pai” nestes casos, onde a “mãe” seria a Ciência. Então, enquanto esperamos para ver se o Tempo vai confirmar nossas postulações, resolvemos revisar e trazer para cá o texto original, a “zoeira”, a raiz brincalhona sobre aquele que é, falando sério, o segredo por trás de A Chave do Baú, pois este título na verdade se refere à metodologia desenvolvida e lançada para desvendar segredos históricos, “tesouros” sobre instrumentos musicais. Nosso livro, portanto, poderia ser chamado de “onomato-organologia”, só que ficaria bem menos charmoso.

Segue o texto: apontamos a nós mesmos entre aspas, trazendo o tal em primeira pessoa, como foi escrito, para deguste geral e registro histórico aqui:

“Onomatorganologia? Não, você nunca ouviu falar, porque acabei de inventar. Achei divertido lançá-lo exatamente em um “primeiro de abril”, e utilizando linguagem coloquial, brincalhona… Fala a verdade, o academicismo às vezes não cansa um pouco? Por outro lado, muitos gostam de um texto leve, despretensioso, “engraçadinho”… E além disso, estamos numa rede social, então relaxa. E curta (“curta, comente, compartilhe, se inscreva no canal, clique no sininho”, et cetera).

“Onomatorganologia” não “vem” do grego, eu é que quis trazê-lo de lá, porque quis e pronto: onoma, “nome”; organo, “instrumento musical”; logia (a partir de logus), “estudo, ciência, escrita”. Seria, se ou quando vier a existir, “a ciência que estuda o desenvolvimento histórico-social dos instrumentos musicais com ênfase em seus nomes”… mas, por enquanto, me dedico mais aos “cordofones”, que quer dizer “instrumentos musicais de cordas”.

Uma besteira sem tamanho, não é? Afinal, já existem ciências que estudam palavras, entre as chamadas “linguísticas”, especialmente ramos como a etimologia (etimo, “origem”), filologia (filos, “amor”) e a abrangente lexicografia (lexico, “conjunto”). E também já há ciência que estuda características dos instrumentos musicais, a “xará” com nome mais curto, organologia, ramo da musicologia.

Sobretudo, convenhamos: quem sou eu “na fila do pão” para aventar a questionar ciências consolidadas há tantos séculos? É óbvio que só posso estar querendo aparecer…

Bom… eu sou apenas um “curioso”: periergos (em grego), curiosi ou curiosus (em latim), neugierig (em alemão), inquisitive (em inglês), curiós (em catalão), curieux (em francês)… Um curioso em vários idiomas, mas nada mais que um curioso, que não tem preguiça de ler e refletir.

Também sou brasileiro, terra onde vejo ser cultivada popularmente a cultura da bipolaridade, quero dizer, onde só se pode gostar algo se for “A” ou “B”: político, religião, time de futebol… só pode “preto ou branco”, “homem ou mulher”, “bom ou mal”… Me cresci (sobretudo, no abdômen) não vendo muitas considerações de mais de duas posições antagonicamente opostas para cada situação, embora, curiosamente, veja grafias diferentes para uma palavra só, como “abdôme”, “abdômen”, “abdômem” (com ou sem acento circunflexo)… Este é o meu país, minha língua, somos nós. Cheios de incoerências, mas se a gente falar sobre elas, podemos ser mal entendidos, atacados. Mesmo no meu caso, que demonstro todo dia que amo, bem mais do que a maioria, o nosso país, nossa língua, nossa cultura maluca.

Posso dizer que sou anarquista: ser anarquista no Brasil hoje é estudar, é ler e refletir por conta própria; é ver que o radicalismo da bipolaridade só pode estar errado, pois gera divisão, violência, argumentos estúpidos e sem fundamentos. Ser anarquista é descobrir que quem procura o Conhecimento, sem preguiça e com honestidade, pode achá-lo; que a Ciência nunca foi estática, resolvida, definitiva, ao contrário, sempre evolui, ad infinitum (e sim, as citações em outras línguas, principalmente em grego e latim, são para tirar sarro mesmo, ou “me amostrar”, como se diz em algumas das variações regionais brasileiras).

Pois bem… Se a Ciência sempre evolui, porque devemos acreditar que as ciências existentes seriam perfeitas, inquestionáveis? Afinal, o próprio substantivo “ciência” (significando “conhecimento”) passou a existir só após determinada época, em substituição ou complemento ao termo antes usado, “filosofia” (do grego philo, “amor” + sophia, “conhecimento”), termo que era “tudo” antes. O conceito atual de “Ciência” seria então uma evolução ou dissidência de “filosofia”, que cresceu ao ponto do conceito original hoje ser considerado apenas uma das muitas “ciências”…

Convenhamos mais uma vez: “filosofar” em pleno “primeiro de abril” merece um Nobel, não? Eu sei, eu sei: só não sou perfeito porque sou humilde, é meu principal defeito. O outro, é ser mentiroso (às vezes!).

Mas chega de encher linguiça: os ramos da linguística são excelentes, mas tem por padrão, na maioria das vezes e há séculos, estudar cada língua (ou grupo de línguas) em separado, com teorias sendo mais valorizadas que registros de época e sem aprofundamento em outras ciências. Aprofundamentos que seriam difíceis mesmo, pois palavras são usadas para tudo: já pensou se um dicionarista (“lexicógrafo”) fosse estudar a fundo todas as Ciências envolvidas em cada palavra, de cada língua, de todas as épocas? Cientificamente, mas brincando, pode-se dizer que “não rola”.

Pois bem: a linguística ainda não postulou origens confiáveis do termo “viola” e, atrevidamente, afirmo que dificilmente vão descobrir usando as metodologias convencionais, pois temos mostrado que o termo teria surgido a partir de várias línguas diferentes, ao mesmo tempo. Já a organologia, muito boa também, ainda não conseguiu consenso mundial de parâmetros, principalmente porque instrumentos musicais populares (como as violas) sempre foram uma bagunça, poucos tem paciência de os estudarem a fundo. Pelo mundo, aliás, poucos tem ideia do que sejam violas dedilhadas…

Sim, minha empreitada começou a partir das violas dedilhadas, que não são guitarras e este nome só existiria na língua portuguesa (ponto para o curioso, está na vanguarda mundial).

Como também sabemos aqui que “aprender com os mestres antigos” seria saudável, fui consultar pelo mundo quem estudara cordofones, mas os mestres estrangeiros praticamente só teriam estudado violas tocadas por arco, e os de língua portuguesa teriam se atido (ops… desculpe, termo erudito demais); vou melhorar: teriam “se baseado apenas” nos próprios umbigos, para ser honesto, mas sem querer ser desagradável nem rude. A verdade é que pouquíssimos teriam procurado vestígios das nossas violas na História ocidental dos cordofones… Mas que “os há, os há” (aqui vou manter, achei que ficou legal o eruditismo, brinquei com las brujas, percebeu?).

Outrossim… (putz, de novo, sorry)… Entretanto… (que m…!)… “Mas” vários mestres teriam buscado coerência em datas remotas de registros de nomes de instrumentos! Boa ideia! De onde tantos teriam tirado isso? Quase nenhum entrega a rapadura… Talvez, porque tenham ido por caminhos instintivos: quando é só instinto, mesmo estudiosos costumam não saber explicar. Acontece muito.

Fuça daqui, fuça dali, descobri que o filósofo grego Platão, cinco séculos antes de Cristo, teria partido de ideias mais antigas ainda, que depois foram evoluindo (!) até o que se chama hoje de Metodologia “Dialética” (“diálogo”, “debate”): a “arte de pensar, questionar e hierarquizar ideias”… Ah, aí eu exultei quase orgasmicamente! A principal postulação seria algo como: “… nada deve ser estudado sem considerar os fenômenos circundantes ao objeto de estudo”! Finalmente, encontrei quem falasse a minha língua!

É isso. Quer estudar algo? Fique de olho no que está rolando em volta daquilo. E o que rola com instrumentos musicais? Depende da época, região, utilização deles pela sociedade, nomes que foram tendo, evolução de formatos e características… Tudo isso que circunda os instrumentos fazem parte deles (e, no caso, uma circuncisão como a peniana não é o mais recomendado, nem tem nada a ver).

Naturalmente, os mestres também estudavam nomes antigos por serem, os nomes e eles também, “diferentões” (leia-se “anarquistas”, se concordar). E também porque os mestres também gostavam de se amostrar via outras línguas. Nem vem: os caras eram humanos, que não me venham com argumentos semânticos contra um escritor, poeta, compositor. Os anarquistas antigos, como eu também, sabemos que “se amostrar” dá trabalho, mas é divertido e afasta alguns invejosos, que gostam de “duvidar” ou talvez a eles incomode que a gente estude tanto. E isso tudo vem de séculos já.

Buscar nomes remotos, em línguas antecessoras ocidentais, ajuda a identificar e entender o que rolava desde as respectivas épocas passadas… O complicado é que há poucos registros, às vezes pouco legíveis, feitos muitas vezes por quem não entendia nada de música, de linguística, de sociologia (mas achava que entendia e gostava de escrever sobre música). Se liga: não existia nem luz elétrica, muito menos as Ciências como são hoje… Só existiriam os “achistas”, essa praga sempre parece ter existido.

Sim, o caminho é este: os fenômenos circundantes são vários e os dados não são perfeitos: bipolaridade, portanto, nem pensar, não cabe! É desafiante, multi-possível (com permissão de inventar, anarquicamente, alguns termos como este). Alguns “fenômenos circundantes” são bem óbvios e já são observados há algum tempo, embora superficialmente: aspectos musicológicos (naturalmente), somados com históricos, sociais, linguísticos e… matemáticos! Sim, porque quando não se tem todos os registros, arbitra-se pela maioria estatística entre os que se consegue para aproximação da realidade. A matemática é chamada “exata”, mais nada seria mais paradoxal: nela existem limites de funções, números complexos, a própria estatística e outras técnicas que apontam não a realidade exata, “nua e crua”, mas as melhores aproximações científicas.

Não: não encontrei linguistas dispostos a aceitar o que a musicologia explica (e que o curioso aqui, modestamente, sabe alguma coisa por ter cerca de 45 anos de vivência atenta). Também não achei muitos musicólogos que estariam tão dispostos a estudar hipóteses de outras ciências, sobretudo acatar História e Sociologia como fundamental em suas equações investigativas (e dá trabalho). Sobretudo, não encontrei ninguém que apresentasse um banco de dados amplo, sem preconceitos, sem bipolaridades e organizado cronologicamente (que é o que se entende que apontaria a Metodologia Dialética).

Na real? Um monte de cientistas brilhantes, mas ensimesmados nas próprias Ciências, culturas e épocas. E quase nenhum sabe nada sobre violas dedilhadas… A solução foi pegar um pouquinho de cada um, pois não é de se desperdiçar tanto conhecimento, talento e dedicação deles.

Por isso, ciências e entendimentos enferrujados a mim não serviriam, individualmente, mas pego um pouco de cada um. Só se (ou quando) se evolui  a partir deles, abrindo ao máximo o compartilhamento com outras ciências e visões, passam a valer. Ou, talvez, possa eu mesmo inventar uma nova ciência (ou técnica)? Aí já parece gaiatice de primeiro de abril…

O curioso aqui escreve textos, poemas, música na pauta e sem ela, toca um pouco de vários cordofones, lê fluentemente em algumas línguas, entende um pouco de matemática que estudou parcialmente na faculdade, estuda história e sociologia… Lê e estuda feito louco. Na verdade, estudo sobre muita coisa como um maluco e sou anarquista por natureza. Só isso”.

É isso, foi este o texto brincalhão de 01/01/2023. Agora, se nossa postulação séria for aprovada por “pares” da Ciência (professores doutores de Universidades), serão outras prosas… Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras de centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG – Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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5 Out, 2023

EXCEÇÕES QUE ATESTAM A REGRA

EXCEÇÕES QUE ATESTAM A REGRA

            Viola, Saúde e Paz!

Temos sempre desenvolvido por aqui nos Brevis Articulus uma espécie de “regra” que postulamos cientificamente, a partir de nossos estudos e descobertas. Não: o que dizemos não é confirmado (ainda) por estudos convencionais sobre as palavras como a etimologia (origens), lexicografia (conjunto), filologia (contextos). Nosso estudo é bem específico e aponta que, pelo menos quanto a instrumentos musicais populares, seus nomes (e outras características) na grande maioria das vezes mudam conforme eventos de grande impacto social.

            Sim, são colocações “atrevidas”, pioneiras. Não apenas porque “somos ninguém”, mas também porque estamos a questionar apontamentos de gente muito séria, já de séculos, e não apenas das citadas áreas linguísticas quanto da própria organologia (a parte da musicologia dedicada à classificação dos instrumentos musicais). Carinhosamente até criamos o nome provisório onomato-organologia… Porque vai que um dia possa se tornar mais um ramo de Ciência? Como “pai”, entendemos ter direito de dar nome à criança.

Entretanto, não somos tão “Dom Quixote” (como gosta de brincar o violeiro Gyba Reis): há estudiosos também muito sérios, nestas áreas científicas citadas e em outras, que veem alguns aspectos como nós, como por exemplo, que registros históricos são base fundamental de todo estudo e que é necessário aplicar o máximo de visões diferentes que for possível. Esta última colocação viria desde o filósofo grego Platão, de quem emprestamos a fundamentação metodológica Dialética para nossas colocações. Não estamos no “mundo dos castelos de vento”, e sim com os pés bem firmes no mundo da Ciência, e no que há de mais moderno atualmente.

            Diversidade não falta ao estudo de “instrumentos musicais”: são citados desde os mais remotos registros escritos que se tem notícia (sumérios e gregos) e tem indicação de terem existido desde bem antes, desde o início da Humanidade, segundo desenhos, esculturas e similares. Além disso, apontam terem vindo sempre mudando, nas mãos dos humanos. Daí nossa segurança em apontar que fatos históricos e sociais, juntos, precisam ser confirmados por toda teoria, de qualquer área da Ciência. Se não são confirmados, é “escreveu não leu…” (vocês devem conhecer o ditado popular).

            Só que é complexo… E o ser humano (mesmo os estudiosos) tem tendência a gostar mais de explicações diretas, rápidas, concisas. Ainda mais hoje em dia, quando, se precisar de duas frases para explicar alguma coisa, a maioria já “rola a tela” e vai procurar um meme com gatinhos, não é? Paciência. O fato é que, num buraco que já seria “mais embaixo” (outro ditado popular), mergulhamos até o fundo e ainda escavamos além, buscando o antes, o fundo do mais fundo do buraco.

            Sim, que temos que considerar alguma quantidade de dispersão pela oralidade nos nomes, como em todas as palavras. A escrita já existiria, mas poucos saberiam ler e escrever pelo mundo, nos primeiros séculos, portanto no início a maior parte da transmissão teria se dado “boca-a-boca”. Uma dispersão oral por línguas bem diferentes, como por exemplo as “europeias” e as “árabes”, que inclusive tem alguns sons que um não consegue reproduzir do outro. Este mesmo fato, entretanto, aponta que o comportamento quando aos nomes de instrumentos musicais teria sido diferente dos de outras palavras, embora linguistas parecem nunca ter considerado assim. E pense conosco: por que raios um árabe e um europeu teriam precisado interagir, por que cada um não ficou no seu próprio lugar, falando só nas suas línguas?

Bom, se gosta de respostas simples, aqui tem uma: todas as vezes que interações de povos muito diferentes aconteceram na História da Humanidade foi devido a eventos históricos que causaram impactos nas sociedades como invasões, calamidades e outros. Nas primeiras páginas do livro A Chave do Baú apontamos inclusive um apanhado sobre estes eventos (e os impactos observados em instrumentos musicais).  

Primeiro (e é importante chamar a atenção para isso), não teria sido por coincidência que onde se constatam os mais remotos registros de escrita houve também desenvolvimento maior que nas demais regiões. Sim, pode conferir: quem “escreveu e leu”, aponta também ter feito descobertas e invenções pioneiras como a roda, utilização do fogo e várias outras constatações de desenvolvimento do humano primitivo. E até hoje, onde há mais desenvolvimento, há interesse (inveja?) de outros povos. Sumérios, então, tiveram menos sorte que egípcios: tanto foram invadidos e saqueados até que a civilização foi extinta, restando só o que a arqueologia ainda está a tentar descobrir e traduzir por completo. Entendeu nosso ponto de partida “História e relações Sociais”?

Depois teria havido uma grande interação, com grandes impactos para várias sociedades então distantes e diferentes, mas que não teria sido tão violenta: os fenícios, ali pelo século XVII aC., teriam saído a navegar pelo Mar Mediterrâneo a fora, com fins de comércio. A mistura de línguas foi tão latente que a eles devemos o início de investimento num conjunto de códigos (letras, palavras) que pudesse ser utilizado como padrão, como facilitador das comunicações. Dos fenícios, depois os gregos (já entre os séculos XVIII e II aC.) herdaram o costume de “visitar” as mesmas terras e de querer inventar uma língua mais geral, o que realmente inventaram; isso foi até que um macedônio de sangue mais quente, Alexandre chamado “o grande” (já no século IV aC.) dominou a Grécia e depois partiu para dominar e explorar pela força o que tivesse de valor onde os gregos tinham “visitado” antes. Em seguida, de Alexandre os romanos herdaram a sede de conquistas e do alfabeto grego derivaram o latim, que inclusive tentaram impor a toda a vasta região dominada, esta que ainda aumentaram, sempre buscando “ao infinito e além”.

Pronto: assim tentamos explicar, em palavras simples, porque linguistas classificam como “tronco indo-europeu” línguas tão diferentes, de povos tão distantes, como asiático-árabes (onde ficava a Suméria) e de toda a atual Europa, inclusive seus limites mais longínquos como o Norte (Grã-Bretanha), diversas fronteiras com a Rússia, etc. Para nossos estudos, destaca-se a diferença causada pela maior ou menor influência do tal latim, que subdivide línguas indo-europeias até hoje entre “germânicas” (inglês, alemão, holandês, etc.) e “latinas” (italiano, francês, espanhol, português, etc.).

Os nomes de instrumentos musicais que viajaram com povos diferentes para o território hoje chamado europeu foram sofrendo mudanças por causa das diversas línguas que começariam de fato a progredir só após quedarem livres de Roma (século V), apesar da Igreja Católica ainda ter mantido o latim por praticamente todo o território. Por isso é como já citamos, algumas daquelas línguas foram mais e outras menos influenciadas pelo latim, mas todas foram. E daí, a partir do século VIII, ocorreu mais um evento de grande impacto, a Invasão Moura no território europeu. Esta foi decisiva para nossos estudos, pois levaram cordofones que inspirariam (no contexto histórico-social de reação aos invasores) o surgimento e evolução dos instrumentos europeus.

Para estudar os instrumentos tantos séculos depois, há ainda outro complicador de origem humana: uma mania que as pessoas tem, há séculos, de inventar significados para palavras (às vezes, nem procuram direito algum registro, se a “invenção” for criativa e agradável aos que gostam de respostas fáceis). Já fizemos até um ensaio a respeito, em nosso livro A Chave do Baú: uma série de nomes, de diversas línguas, que com o tempo foram sendo considerados por significados que “parecem muito” terem sido aquilo, vistos séculos depois. Desde Isidoro de Sevilha, no século VI, que apontou alguns significados sem ligação com registros antigos em sua Etymologiarum sive originum (“Etimologias ou Origens”, que conferimos tanto por Lyndsay quanto Gerberto, ver nas referências) até um dos maiores organólogos do mundo até agora, o alemão Curt Sachs, em seu The History of Musical Instruments (“A História dos Instrumentos Musicais”), já na década de 1940. Sachs apontou (à página 274), tradução de pan-tur (cordofone sumério de três cordas, já com braço e caixa de ressonância) como “pequeno arco”, porém, a atestação de instrumentos tocados por arco só viria a ser registrada bem mais tarde pelo mundo. Sachs também foi dos que usaram genéricos como o inglês fidle, o alemão fidel e o latino fidula para descrever todos os instrumentos tocados por arco: estes termos simplesmente não tem registros antes do século IX, de onde viria fidula, do clérigo alemão Otfried de Weissenburg em seu Liber Evangeliorum (“Livro dos Evangelhos”). O problema é que aquela fidula simplesmente não aponta ter sido tocada por arco… Entendeu a bagunça? Chamam os friccionados por arco por um genérico que teria sido, na origem, nome de um dedilhado. Defendemos que criar e perpetuar genéricos é um grave equívoco, só complica mais o que já é complexo por natureza, que são os nomes em suas línguas originais. Mas, por enquanto, parece que só nós teríamos percebido e desenvolvido sobre isso.

São estas complexidades que decidimos estudar e desvendar. A fim de não sermos enganados pelas verdadeiras “cascas de banana” que até estudiosos muito sérios e competentes jogam no caminho, desenvolvemos uma busca pelas mais remotas fontes a partir de diferentes línguas, épocas e tipos de estudo; retraduzimos com olhar bem atento, organizamos cronologicamente e trabalhamos com a média estatística deles (em outra Ciência envolvida, a Matemática), de olho nos registros históricos e nos impactos sociais dos povos envolvidos. Não, não é algo de se explicar por poucas frases. Longe disso.

Entendemos serem normais nossas descobertas pioneiras, pois no considerável acervo que levantamos pouquíssimos parecem ter intuído algo no sentido de abraçar toda a complexidade, e nenhum teria apontado contextos e metodologias atestáveis como procuramos fazer. Entretanto, intuições e apontamentos bem fundamentados de linguistas e musicólogos de várias nacionalidades como Ambros, O’Curry, Engels, Martinez e, com destaque, do próprio Curt Sachs, foram cruciais para desenvolvermos e atestarmos nossas visões. Ao mesmo tempo, lacunas de tantos pesquisadores competentes ajudam a atestar que nossa visão não teria sido aplicada antes. E sim, também como teria dito Platão, em A República, o que fazemos é apenas apontar o olhar, algo que todos tem, para outros “ângulos mais atestáveis” (assim dizemos nós, mas Platão teria dito “ângulos mais corretos”).

Um ditado popular apontaria que “toda regra tem exceção”. Entretanto, cientificamente, entende-se que se uma exceção não foi prevista na regra é porque a regra não teria sido bem elaborada. A exceção, portanto, testa a regra (ou, no nosso caso, até “atesta” a tal). Naturalmente (e estatisticamente) pensando, se há um número grande de “exceções não bem explicáveis” é porque a regra pode ser furada, portanto, analisar possíveis exceções deve fazer parte de todo bom desenvolvimento. Neste Brevis Articulus vamos analisar algumas possíveis exceções interessantes que encontramos.

Nosso começo sempre foi a partir das violas dedilhadas. Dos portugueses observamos anomalias que já deciframos por aqui, como a consolidação de “violas e violas” (ou seja, dois instrumentos bem diferentes com o mesmo nome) e uma “guitarra portuguesa” com caixa arredondada. Essas coisas só teriam sobrevivido na língua portuguesa. Outra anomalia (ou “exceção”) é próprio nome forte “viola”, preferido pelos portugueses em detrimento aos dos demais cordofones, que se tornou a origem de nossas violas dedilhadas. Tudo isso é explicado pela característica histórico-social particular dos portugueses, com atestação em dezenas de registros. E se mostra coerente com casos curiosos surgidos depois, e em consequência, como o surgimento real do modelo Viola de Cabaça no Brasil só a partir da década de 1980, após uma lenda ter sido criada no século XIX (ver Rebello), equivocadamente apontando origem ao século XVII (ver Mattos): isso atesta que o nome “viola” prevaleceu por muitos séculos nas mentes e para novamente só bem depois ter originado um instrumento de fato (além de, no caso, “cabaça” também ser um nome forte). Outro caso, o da Viola de Buriti, que nem tem caixa cinturada, mas que, além de consolidada com o mesmo “nome forte”, é tocada até hoje tanto dedilhada quanto friccionada por arco, evidência da raiz nas vihuelas espanholas. E ainda a consolidação do nome “viola caipira”, na verdade só a partir da década de 1970, mas que antes de nossas descobertas e denúncias, popularmente se jurava que seria anterior, relativo à uma “cultura” representada pelo termo “caipira”… Este termo que só a partir do século XX começou a ser interpretado e defendido como se fosse de origem indígena direta, mas que já atestamos que nunca teria sido.

Tantas possíveis “exceções” (se considerarmos em paralelo à História Ocidental dos cordofones) talvez sejam o motivo de lá fora não serem muito estudadas nossas violas, mas, na verdade, o fato é que tudo isso atesta e confirma nossa metodologia, nossa visão.

Há vários outros exemplos pela História dos Cordofones que analisamos bem mais profundamente que os demais estudos encontrados. Quase todos já mereceram aqui Brevis Articulus específicos (afinal, esta ação é para apontar aprofundamentos). São “prosas passadas”, por exemplo, o caso das ORGANAS, destaque por serem antecessoras dos cordofones cinturados e seu nome ser, de longe, o mais alastrado e confundido pelos séculos. Há também o caso das cítaras, hoje entendidas como espécie de saltérios (cordofones com caixa ao longo das cordas, sem braços).

Não somos malucos de ir contra consolidações ocorridas naturalmente pelos povos, depois de longos períodos (até porque é científico, é estatístico), mas “cítara” não faria sentido e nem teria existido antes do domínio dos romanos, que claramente teriam convertido kithara do grego para cithara (assim como várias outras palavras iniciadas com “k” para “c”). Estes foram, por séculos, nomes de instrumentos já com braços, posteriores aos saltérios antigos e é assim que devemos vê-los, conforme o período referenciado. O fato de terem hoje “nomes de valor retroativo ao tempo” (o que é impossível), atestam dois aspectos de nosso desenvolvimento: o contexto histórico-social da imposição do latim pelos romanos e a falta de precisão histórica por estudiosos e pessoas comuns, que nos trouxeram à citada (e respeitada por nós) consolidação popular. Ou seja, não se discute com fatos históricos: atesta-se, analisa-se e se considera na equação (senão, vira teoria furada).

Outra interessantíssima “prosa passada” é o grande capítulo das guitarras espanholas, com seu histórico de manterem um mesmo nome desde o século XIV (pequenos cinturados com 4 ordens de cordas), passando para 5 ordens entre os séculos XVII e XVIII (as famosas assim chamadas “guitarras barrocas”) e para 6 cordas simples a partir do século XIX (o mais famoso ainda, e assim chamado “violão” pelos portugueses). Sim, o nome guitarra viria a ser sucessor de kithara e cithara, lembrando que o “c” em latim, que não existia em grego, também substituiu a letra gama, que teria som de “gh”. Este pequeno dado histórico-linguístico deixa um pouco menos complexo entender porque dois caminhos paralelos anteriores ao termo guitarra (que chamamos “bifurcações de nomes”) surgiram entre línguas germânicas (cittern / gittern) e latinas (cistro, cistre, cedra, cétula, etc.). Quando adicionamos a visão organológica na equação dá pra entender porque teriam surgido antes, em algumas regiões, instrumentos chamados guitarra (e as diversas variações citadas) com caixa arredondada, e não cinturada, mas que a partir do século XVII todos teriam aderido à opção lançada pelos espanhóis… Menos os portugueses, que teriam então tentado fazer um impossível “retorno ao passado” exclusivo, particular, pela nomenclatura de suas guitarras portuguesas, de caixa arredondada. Não, não foi natural aquilo, é anômalo, é exceção. Quando inserimos contextos histórico-sociais fecha-se o quadro, por atestarmos nomes e formatos sofrendo interferência (entre outros contextos, Hyspania em ascensão no século XVI, lusitanos portugueses em concorrência explícita desde que se lançaram como reino independente no século XII, e por isso aproximando-se historicamente mais dos italianos e ingleses, etc.).

Ainda entram na mesma equação outras “exceções atestativas”, como as chitarras italianas, surgidas no século XVII e já cinturadas como as guitarras espanholas (porém sem aderirem diretamente ao nome espanhol) e não arredondadas como as antigas cétulas deles. Também a lacuna deixada pelos espanhóis ao redesignarem o nome guitarra para cinturados de 5 ordens, abrindo caminho (a partir do mesmo século XVII) para surgimento de outros nomes para cinturados pequenos, de 4 ordens, como machinho, machete, braguinha, rajão e até cavaquinho e ukulelê; ainda depois (a partir do século XIX), ao redesignarem guitarra para seis cordas, deixaram espaço para o verdadeiro surgimento das violas dedilhadas portuguesas, que simplesmente mantiveram o nome preferido “viola” para a armação já utilizada, de cordas duplas, das antecessoras guitarras de 5 ordens. Percebeu as exceções atestando a regra?

Ainda um pouco de carona nesta longa e importante fase das guitarras espanholas, desvendamos o novelo também das vihuelas deles, que teriam caído em desuso, junto com as guitarras menores, no já tão citado século XVII, pela preferência pelo nome forte guitarra para um novo instrumento com 5 ordens. As vihuelas, na verdade, teriam continuado organologicamente como eram, inclusive com nome único para dedilhados e friccionados por arco: só que, para o nome, teria surgido a variação viola na península itálica, nos séculos XV e XVI (ver Tinctoris, Lanfranco, Ganasi) e em Portugal no século XVI (ver Oliveira e Morais). Já das violas de arco italianas (já que as dedilhadas mudaram de nome para chitarras), surgiria depois a família dos violinos atuais, mas não sem um acréscimo de complexidade, pois entre o surgimento do nome então genérico violino (“pequena viola”) até sua consolidação atual ter-se-iam passado aí cerca de 300 anos, só começando mesmo em meados do século XVIII.

Um dos mais fortes contextos histórico-sociais teriam sido as fases da Revolução Industrial (entre o início do XVIII e início do XIX) e naquele período praticamente todos os cordofones europeus mudaram muito. Não, nada teria sido aleatório. Mesmo o complicado cenário (de registros em tantas línguas diferentes e por tantos séculos) se demonstra contextualizável por nossa metodologia, nossa nova maneira de olhar.

Por fim, outra evidência atestável é que a possível aleatoriedade (que parece ter sido o entendimento geral antes de nós) coloca-se em xeque pela atual padronização, em praticamente todas as línguas, de nomes como o espanhol “guitarra” e italiano “violino”. E até as violas de arco das orquestras, conforme demonstramos em A Chave do Baú, apontam estarem num caminho de padronização ao nome “viola” em diversas línguas.

Em mais uma “exceção atestativa”, este nome viola sofreu interferência de outro período de transição na península itálica, quando foram chamadas da braccio e alto (este último, a partir de contralto, a segunda voz menos aguda entre as femininas). Os termos italianos braccio e alto influenciaram outras línguas, mas que nos últimos anos apontam estarem a retornar ao mais original, ao latino VIOLA (observável desde o século XII, influenciador portanto do occitano, do catalão e outras línguas, até chegar ao espanhol vihuela). Retornos ao uso de nomes originais em várias línguas é o contrário de ser aleatório, pois as línguas continuam diferentes e cada vez mais consolidadas (assim como o natural nacionalismo dos países) … E é aí que entra o contexto histórico-social: embora a globalização, pelas comunicações, já venha sendo observada há alguns séculos, houve no meio do caminho histórico o forte período da Revolução Industrial (quando nomes viraram “marcas”, para melhor vender os produtos). Passado o período mais forte, o que se vê é uma globalização absurda (on line, em tempo real), mais forte que o próprio capitalismo consolidado (embora também motivada e alimentada por ele, enquanto ampliação de mercados). Os instrumentos não poderiam deixar de continuar reagindo a episódios assim.

A evidência final é uma premonição, que talvez não estejamos vivos para atestar: com a recente pandemia, que afetou muito a vida de muitos, a tendência é que instrumentos musicais reajam, que reflitam isso de alguma forma. Como será, não sabemos… Mas quem sabe a próxima reação já esteja a começar conosco, e seria um período de requestionamentos, reestudos e reescrita da História dos Cordofones? Isso, sem dúvida, é papo para outras prosas (e esperamos poder contá-las!).

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, cujos aprofundamentos aponta às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG – Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

Referências:

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