NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO?

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO?

Viola, Saúde e Paz!

Entre as ainda não consensuais considerações da Organologia (Ciência que estuda a classificação dos instrumentos musicais), sobre o que diferencia ou não os cordofones, está o número de cordas. Ou seja: ainda não haveria um consenso que determinasse diferença entre, por exemplo, uma guitarra (ou “violão”) de seis, de sete ou de doze cordas. Mesmo informalmente, muitos estudiosos dentre os que pesquisamos nas principais línguas ocidentais desde aproximadamente o século XV, referenciariam estes três tipos de instrumentos simplesmente como “guitarras”.

Como consideração inicial, já apontamos que entendemos, em nossa experiência como instrumentista e arranjador, que há clara diferença de sonoridade entre os três modelos citados (e, no caso do violão 7 cordas do choro brasileiro, um destaque especial pela forma mais usual de execução, de linhas melódicas “recortando” acordes e melodias principais). E, também, que a classificação se aponta clara pelas nomenclaturas consolidadas destes, embora nomenclatura ainda não seja tão estudada pelos pesquisadores quanto nós, atrevidamente, nos pusemos a pesquisar.

Para uma luz sobre o assunto, inicial ou complementar, sugerimos o bom doutoramento de Adriana Ballesté: Viola? Violão? Guitarra?: proposta de organização conceitual de instrumentos musicais de cordas dedilhadas luso-brasileiras do século XIX, de 2009. Nele se encontra um bom histórico dos estudos de classificação ocidentais, além de ser, em si, uma nova proposta de classificação, que levaria em conta outros aspectos, visões e Ciências, como o que ela chama de “terminologia” (ou seja, os nomes e descrições) e que concordamos em grande parte.

  Outra consideração nossa, mais importante, é que se não considerarmos número de cordas como diferenciador de instrumentos (em paralelo aos nomes dos mesmos, em diferentes línguas), seria difícil entender alguns particulares da História deles (e da História que eles representam). É o que chamamos, em nosso livro A Chave do Baú, de “tesouros” que outros pesquisadores ainda não teriam descoberto antes de nós.

Para começo do começo, seria difícil diferenciar os mais remotos cordofones com braço que se tem conhecimento: em formato e número de cordas (três), praticamente só se diferencia um pan-tur sumério, uma kethara assíria e um nefer egípcio pelos nomes (informações que conferimos em dezenas de fontes, e sugerimos conferir no ótimo The History of Musical Instruments do musicólogo alemão Curt Sachs, 1940). Também pelo número de cordas pudemos atestar um padrão de evolução que teria se repetido por séculos em diversos cordofones ocidentais, padrão que detalhamos recentemente em outro Brevis Articulus aqui: a partir de três, depois quatro, cinco (cordas ou ordens de cordas) e assim em diante até se consolidarem em seus formatos atuais, também teria sido a história dos alaúdes, de friccionados por arco (como violas, depois violinos), das guitarras e outros.

Mais remota citação a respeito, seria das kitharas gregas, da região da Trácia, que ali pelo século VIII aC. já teriam sete cordas. Foram citadas no século I aC. na Eneida do poeta romano Virgílio (em latim, como citharas) e depois “recitadas” por São Isidoro de Sevilha, já no século VI da era Cristã, segundo o Etymologiarum sive Originum de Wallace Lindsay (1911, p.157). Isidoro, que também já rascunhava alguma classificação ou diferenciação de instrumentos à época, apontava, entre outras diferenças, que citharas teriam sete cordas e saltérios, dez cordas.

Um capítulo muito importante da História dos cordofones europeus, pelo que pesquisamos, teria sido até antes de nós pouco desenvolvido, muito provavelmente pela não consideração a diferenciações por número de cordas: o grande capítulo das guitarras espanholas, entre os séculos XVI e XIX.

Primeiro, que instrumentos chamados guitarra na península hyspanica (segundo Juan Bermudo, em seu Declaracion de los Instrumentos Musicales de 1555) teriam 4 ordens de cordas, a saber 3 ordens duplas e uma corda singela, solteira, sozinha. Percebe-se que os instrumentos espanhóis, à época, espelhavam instrumentos árabes, com mesmas armações de cordas, restando o formato de caixa como diferenciador do que seria “europeu” (que teria escolhido aplicar o formato com cintura e fundo plano). Esta é uma separação por contexto histórico óbvio, vez que árabes seriam invasores, como já teria citado no século XIV o padre poeta espanhol Juan Ruiz em seu longo poema Libro de Buen Amor. Assim, guitarras espelhavam manduras e vihuelas espelhavam alaúdes, estes últimos com 11 cordas em seis ordens (5 duplas, uma singela).

Entretanto, caracterizando separação ainda maior, a partir do século XVII os espanhóis resolveriam abandonar o uso de guitarras pequenas e também de vihuelas (dedilhadas) em favor de uma nova guitarra, então com cinco ordens (que depois ganharia o tratamento moderno atual, de “guitarra barroca”). Como se percebe, o nome guitarra continuaria o mesmo, restando como diferenciador apenas a armação de cordas e o tamanho. Se não considerarmos o número de cordas como diferenciador, como entender, como se aprofundar no estudo, quando não houvesse desenhos e esculturas bem claros?

E a situação se repetiria mais tarde, a partir do século XIX (após fase de transição de cerca de 70 anos), quando novamente os espanhóis optariam por manter o nome guitarra, mas abandonando a armação antiga (já então de 10×5, ou seja, 5 pares de cordas) para lançar a guitarra moderna, com seis cordas simples. Estas viriam a tomar o apelido de “violão” pelos portugueses (até porque, no desenvolvimento, acabariam por assumir caixas um pouco maiores), mas à época, para espanhóis e depois para europeus em geral menos portugueses, teriam sido todas “guitarras”, e desde o século XVI ou até antes. As diferenças seriam de tamanho, no começo, mas depois praticamente só as armações de cordas diferenciariam todas aquelas guitarras.

Um último exemplo, que também só nós defendemos por enquanto, viria exatamente das guitarras chamadas “barrocas” abandonadas pelos espanhóis, as já de armação 10×5. Estas seriam chamadas simplesmente de “violas” pelos portugueses, num contexto histórico-social bem claro, de inimizade ou disputa com os espanhóis, adversários históricos dos portugueses. Deste contexto, e da análise de mais de uma dezena de evidências em centenas de fontes em cerca de três séculos, concluímos que, na verdade, não existiriam violas dedilhadas até a consolidação do violão, no século XIX, pois “viola” teria sido apenas um nome utilizado pelos portugueses para outros instrumentos já existentes. Para conferência destes dados, entendemos que os trabalhos Instrumentos Musicais Populares Portugueses (de Veiga de Oliveira, publicado em 1964) e A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789), de Manuel de Morais (publicado em 1985) sejam suficientes, mas é preciso analisar com atenção, pois diversos estudiosos citam estes mesmos trabalhos, mas não teriam observado a falta de instrumentos físicos que correspondessem às chamadas violas dedilhadas portuguesas citadas em épocas anteriores ao século XIX. O que existiu, na verdade, foram outros instrumentos chamados de “viola” pelos portugueses (alaúdes, vihuelas, guitarras); todos com descrições bem claras, inclusive que eles mesmo reconhecem, apontam e nomeiam. De “violas”, diferentes daqueles outros instrumentos, não se conhecem registros, pelo menos até…

Sobraria então para nós, os únicos a observar, apontar “a partir de quando, então, pode-se afirmar que teriam surgido as violas dedilhadas?” (pois elas, sem dúvida, resistiram e hoje são realidades, e são hoje claramente diferentes de guitarras espanholas… principalmente, pela armação de cordas!).

Bom, as mais remotas evidências observamos em outros dois trabalhos também muito citados, mas que não teriam sido vistos como os vemos: o método Liçam Instrumental da Viola Portuguesa, de João Leite Pita da Rocha, de 1752, que atesta que as violas portuguesas daquela época seriam, nada mais, nada menos, que guitarras espanholas, posto que o método é praticamente a tradução para português, item por item, da parte das guitarras de famoso método de Juan Amat, estimado ao ano de 1596, cujo extenso título começa por Guitarra espanhola e vandola…  O método “copiei, traduzi e colei” de Rocha também nos traria, numa rara inserção própria (que parece que a maioria não teria percebido), a informação de que as violas portuguesas armariam, sim, com cinco ordens duplas, como as guitarras espanholas, porém duas destas ordens seriam triplas (diferente, portanto, das espanholas).

Esta informação seria corroborada por outro método português, o Nova Arte de Viola, de Manoel da Paixão Ribeiro, de 1789. Neste, um desenho de uma viola portuguesa então com a citada armação 12×5 (as duas ordens triplas seriam as superiores) e a informação de que haveria as opções de uso de cordas de tripa (como sempre foram as das guitarras espanholas) e/ou também de cordas metálicas, “de arame”. Estas duas características (número um pouco diferente de cordas e o uso delas em versão metálica) seriam as mais remotas evidências concretas de diferenças entre guitarras espanholas “barrocas” e violas portuguesas.

Como se vê mais esta vez, se não considerarmos número de cordas como diferenciador válido, este capítulo também fica difícil de perceber (e parece que a maioria dos estudiosos realmente não teria percebido, pois seríamos os primeiros a ter observado o detalhe). E seria capítulo importante se entenderem, como nós, que seriam as mais remotas indicações de origem das violas dedilhadas, como instrumentos físicos diferenciáveis, não apenas como nome genérico aplicado a vários outros instrumentos.

Após a consolidação do violão em seis cordas singelas, as violas “antigas guitarras barrocas” simplesmente seguiriam como eram, mas então tornando-se instrumentos diferenciáveis, únicos: não por nova criação ou grande mudança, mas porque as guitarras teriam mudado. Como evidência, observa-se que após o desenvolvimento e consolidação, sobreviveriam até os dias atuais, modelos ativos com 10×5 e outros com 12×5 na Família das Violas Portuguesas, explicáveis exatamente pela observação do histórico de número de cordas em registros.

Teria havido ainda, durante o citado período de transição de cerca de 70 anos (observamos e coletamos registros a respeito entre 1760 e 1826), também guitarras de 12 cordas em 6 ordens duplas, exatamente no começo do retorno às seis ordens (que teriam sido usados por alaúdes e antigas vihuelas, como citamos no início). Ora, estas guitarras 12×6 também seriam chamadas de “violas” pelos portugueses, e algumas ainda sobrevivem em museus, mas o tipo de armação teria caído em desuso, muito provavelmente pela ascensão, a partir também do mesmo século XIX das guitarras portuguesas, também 12×6. Nunca é demais lembrar que o período histórico (séculos XVIII até o início do XIX) remete às fases da Revolução Industrial, que trouxe grandes mudanças sociais à toda a Europa da época, e aos quais os instrumentos populares sempre reagiram, na História.

Isso, em Portugal, mas não no Brasil: aqui fenômeno diferente aconteceria (por isso apontamos a influência das guitarras portuguesas, que por aqui não têm o mesmo contexto que em Portugal). As 12×5 é que praticamente estão desaparecidas, representadas pelas aqui chamadas Violas de Queluz do século XIX, só ocorrendo por peças de museus e colecionadores, e praticamente só no Estado de Minas Gerais. Já as Violas 12 Cordas (em seis duplas, ou seja, 12×6) se consolidaram como um dos modelos da Família das Violas Brasileiras, sendo hoje tocadas e fabricadas em vários Estados do país.

Outra particularidade brasileira, e também contextualização inédita nossa, é que a Família das Violas Brasileiras apresenta diversidade muito maior que a Família Portuguesa, em tamanhos, formatos, armações de cordas e outros detalhes (condizente com o tamanho e diversidade cultural brasileira). Graças à técnica metodológica que desenvolvemos, conseguimos contextualizar todas as características das violas dedilhadas conforme a História dos Cordofones europeus, o que explica o conjunto agrupado aqui em torno do nome forte adotado pelos portugueses (“viola”), lá num contexto de nacionalismo (rejeição aos espanhóis e aos árabes), aqui por simples continuidade de uma língua comum. Só que aí já não é mais apenas prosa de números de cordas: aí são outras prosas…

Muito obrigado por ter lido até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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