Beaurepaire-Rohan e a distorção do significado de “caipira”
On doit s’honorer des critiques, mepriser la satire, profiter de ses fautes et faire mieuax.
(“Devemos ficar honrados pelas críticas, desprezar as sátiras, aproveitar nossas faltas e fazer melhor”).
(creditado ao poeta francês Jean-Baptiste-Louis Gresset (1709-1777) por Beaurepaire-Rohan, no prefácio de seu Diccionario de Vocabulos Brazileiros, publicado em 1889).
Viola, Saúde e Paz!
Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan (1812-1894) foi um militar carioca que começou sua carreira muito jovem e atingiu o alto posto de Marechal do Exército. Descendente da nobreza francesa e filho de mãe anglo-portuguesa, teria se formado em Física e Matemática, chegou a presidente de algumas províncias brasileiras e teve vários títulos de honra.
Apesar de seu contato com várias línguas, visto sua filiação, o que não encontramos é porque o militar e político – então já “Tenente-General” e com o título de “Visconde Beaurepaire-Rohan” – entendeu que estaria apto a escrever um Diccionario (transcrevemos grafias observada nas fontes); e, principalmente, porque teria se achado apto a criticar estudos “etimológicos” (segundo entendimento dele). Talvez sua justificativa estivesse na afirmação feita no prefácio: “Parece incrivel que a lingua portugueza não tenha ainda um diccionario officiaI, que nos sirva de auctoridade” – onde o sem dúvida grande leitor-pesquisador (pelo menos pelas fontes listadas) parece não ter considerado o trabalho de décadas feito em Lisboa pelo lexicógrafo londrino Rafael Bluteau (1638-1734) – ou, talvez, se referisse apenas à língua “portuguesa” falada no Brasil.
O Visconde apontou um estudo interessante sobre grafia de termos “da língua Tupi” (que, na verdade, seriam do tupi-guarani), mas, no todo, observam-se muitos equívocos e imprecisões em seu trabalho – aliás, como sempre foi comum em dicionários: há grande quantidade de termos apontados e pouco aprofundamento sobre cada um deles. É preciso sempre ler dicionários com atenção e refletir bastante. Sobretudo, neste caso, onde o autor não teria sido especialista em linguística, sequer em língua portuguesa – foi um nobre, militar, político e formado em Exatas.
Para tentar ser mais polidos, sempre que possível tentaremos evitar o termo “equívocos”, principalmente quanto a este respeitável senhor – que, inclusive, confessou ter publicado um pouco às pressas o trabalho, por já estar “em avançada idade” – e até pediu indulgências e colaborações para o melhorar. Afirmamos, outrossim, que “entendimentos peculiares” são bastante observados em seu dicionário…
Qual o problema disso?
O problema nunca é de trabalhos terem falhas, pois são publicados por seres humanos: o problema sempre está em outros seres humanos que, a partir de citações “peculiares”, não as conferem, repetindo-as em cadeia, perpetuando assim conceitos difusos – seja talvez por simples erro humano, preguiça ou por quererem se aproveitar de uma “peculiaridade” conveniente a algum propósito particular.
A nós, parece muito clara a mensagem destacada no início: “aproveite suas falhas para fazer melhor”: disso, entendemos que tentar “fazer melhor” seja reanalisar um texto com olhar bem atento, as fontes que teriam sido utilizadas e acrescentar algo ao já feito antes – muito distante, portanto, do que simplesmente citar o que foi escrito, mesmo que seja agradável. É, portanto, o que fazemos aqui – a começar com a leitura atenta do prefácio da obra, que sempre revela muito.
Conforme já citamos no livro “A Chave do Baú”, o dicionário de Beaurepaire-Rohan entra na cronologia de estudos como o primeiro registro conhecido de distorção do termo “caipira”, que, junto a “caipora”, teria sido utilizado em Portugal e no Brasil desde antes de 1822 como apelido político; daí, a partir da década de 1830, “caipira” seguiria como o único apelido, vez que “caipora” já apareceria em dicionários com o significado atual, relacionado a lendas de seres fantásticos. Só a partir da década de 1840 teria passado a também ser utilizado para ridicularizar a classe proletária. Este tipo de pejorativo teve registros em várias partes do Brasil, como em São Paulo, onde, durante o chamado “Ciclo do Café”, o proletariado tinha grande representatividade na atividade rural – mas não foi utilizado só em São Paulo e nem só contra os “rurais” (que neste acaso abrangeriam escravizados, estrangeiros e outros trabalhadores).
O “entendimento coletivo” atual, de uma suposta “cultura caipira”, só tem registros a partir de 1910, pelos empenhos do empresário paulista Cornélio Pires (1884-1958), fortalecido, entre outras publicações, por um Dialeto Caipira – publicado em 1920 pelo folclorista Amadeu Amaral (1875-1929); este último, também paulista e primo de Cornélio.
O que tem a ver o “u” com a “alça”?
Tem a ver que Amadeu Amaral, em seu citado Dialeto, repete claramente procedimentos não científicos e opiniões apontadas por Beaurepaire-Rohan – a saber, críticas a “etimologistas”, sem citá-los nominalmente e, principalmente, sem citar nos verbetes os trabalhos criticados, as fontes para conferência de suas críticas. Dizemos “não científicos” para não sermos rudes com adjetivos como “covarde”, “amador” ou similar – cada um analise os fatos como achar melhor.
Beaurepaire-Rohan, no já citado prefácio, até chegou a fazer crítica aberta ao trabalho Glossaria Linguarum Brasiliensium, do botânico alemão Carl Martius (1794-1868) – mas em seu verbete sobre o termo “caipira” não citou o alemão, nem ao também botânico, mas francês, Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853). Sem citar os nomes e trabalhos, entretanto, destacou as origens “etimológicas” apontadas pelos botânicos para “caipora” e “caipira” – que teriam sido os termos indígenas caapora e curupira. Sempre chamando os cientistas de “etimologistas”, de Martius o militar-dicionarista teria desconsiderado que o citado Glossaria é uma publicação com citações em três línguas (alemão, latim e português), além das diversas línguas estudadas e citadas por Saint-Hilaire. O principal: o dicionarista desprezou que os estrangeiros apontaram registros de seus vastos contatos com indígenas, de onde teriam recolhido os termos, entre os anos de 1817 e 1822. No caso de Saint-Hilaire, este teria chegado a levar consigo dois indígenas para a França, ainda citados em seus relatos pelo menos na década de 1830 – sendo, portanto, um período bastante considerável de contato direto com uma língua indígena, por um professor universitário versado em várias delas.
Não, não teriam sido estudos “etimológicos” propriamente ditos: entende-se que Beaurepaire-Rohan (e depois Amadeu Amaral) assim os apelidaram como tentativa de ridicularizar os estrangeiros, que notadamente não teriam sido especialistas na área. Teriam sido, entretanto, observações e recolhas de cientistas experientes em diversas línguas, em seus contatos diretos com indígenas. Ao invés de considerar a legitimidade destes tipos de fontes, a escolha dos brasileiros foi (e ainda é, às vezes) por conceitos fantasiosos, apontados em dicionários por também não-etimólogos, cheios de opiniões e teorias “agradáveis de contar em acampamentos” mas sem indicação precisa de fontes nem desenvolvimentos.
Deu para entender? Por algum motivo, foi desprezado o que foi possível desprezar dos estudos dos estrangeiros, não lhes citando os nomes e trabalhos nos verbetes, tirando sarro de suas capacidades, etc. Isto é fato. Os motivos destes tipos de ações, repetidas ainda nos dias atuais, não podemos provar; talvez, por “ciúme” dos estrangeiros terem pesquisado mais a sério uma língua nativa brasileira? Talvez por outras descobertas e opiniões “desagradáveis” encontradas nos textos deles? Talvez por não atenderem a objetivos específicos de quem fazia os verbetes ou pesquisas? Vai saber…
O visconde-militar-dicionarista iniciou seu verbete com a frase: “Caipira: s. m. [substantivo masculino] (S. Paulo) nome com que se designa o habitante do campo”. O jesuíta português João Daniel (1722-1776), assim como Saint-Hilaire (em citação ao próprio João Daniel) e ainda Martius teriam utilizado expressão semelhante: “habitador de matos” – porém, referindo-se à caapora e à “caipora”; mas o mais importante é que todos os registros antigos referiram-se a indígenas: a ligação de “caipira” a “qualquer tipo de ser humano habitante de qualquer tipo de campo” já foi um “entendimento peculiar” que, mais tarde, parece ter sido agradável a Amadeus Amaral, que o “traduziu”, por assim dizer, como “habitante da roça” em seu Dialeto Caipira; podia ser conveniente para Amadeu Amaral, mas o fato é que seguiu distorcendo os significados, e o que é pior, arbitrariamente: o “mato mais denso”, original dos indígenas, teria se tornado sinônimo de “campo” e, enfim, “roça” de homem branco paulista – tudo isso sem explicação ou justificativa apontada. E também, sem ser observado em outros registros de época, só nos destes intrépidos críticos de etimologistas (e de quem os teriam seguido, até hoje).
Na sequência, após ter indicado “S. Paulo” no início, o militar-dicionarista listou: “[…] Equivale a Labrego, Aldeão e Camponez em Portugal; Roceiro no R. de Jan., Mat. Gros. e Pará; Tapiocâno, Babaquára e Muxuango em Campos dos Goytacazes; Mattuto em Minas-Geraes, Pern., Par de N., R. Gr. do N. e Alagoas; Casaca e Bahiano no Piauhy; Guasca no R. Gr. do S.; Curau em Sergipe; e finalmente Tabaréo na Bahia, Sergipe, Maranhão e Pará”. É bastante peculiar a lista apresentada, que poderíamos também chamar de “apelidos”, algumas vezes mais de um por Estado, possivelmente tendo todos eles em comum apenas que seriam relacionados a interioranos. Entre os estudos sobre palavras antigas que conferimos, desde São Isidoro de Sevilha, do século VI, este talvez seja o mais criativo – a diferença é que Isidoro apontou muitas fontes, checáveis até os dias atuais. Nosso amigo Visconde, por outro lado e dizendo bem no popular, “viajou nas batatas”…
Entende-se que, pela interpretação “peculiar” de Beaurepaire-Rohan, “caipira” só poderia ter tido origem no Brasil e, a partir daqui, ter chegado a Portugal. Ele não teria imaginado o caminho inverso seria tanto possível quanto o de contextualização mais provável (portugueses inventarem apelidos pejorativos contra brasileiros, a partir de nomes indígenas sobre lendas, seres fantásticos, etc.). Ele não teria tido acesso, por exemplo, ao Jornal O Constitucional, de 03 de julho de 1822, onde em resenha da página 37 há a evidência de que “caipora” já teria sido um apelido político utilizado contra os brasileiros desde antes daquela data – assim como “caipira” também apareceu como apelido político, por exemplo, no Jornal O Tamoyo de 02 de setembro de 1823, à página 06.
Seguindo na somatória de interpretações infelizes, se fosse “um termo brasileiro” e entendendo que o que foi utilizado pelos indígenas serviria automaticamente para todos – ou seja, o “mato fechado” deles seria a mesma coisa que “o campo” – o criativo dicionarista chegaria à conclusão de que apelidos dados a interioranos, por todo o país e até em Portugal, seriam, todos, equivalentes a “caipira”. O militar-dicionarista sequer lembrou-se de citar o uso de “caipira” como apelido político, que àquela altura (1889) já era apontado em vários dicionários, além dos jornais, visto que teria registros até a Guerra dos Irmãos em Portugal (1832-1834).
Parece, a princípio, que pudesse ter escapado ao esforçado “colecionador de termos”, entre outros detalhes, que “caipira” teve registro em jornais de várias regiões do Brasil além de São Paulo, como Pará, Pernambuco, Mato Grosso, Paraná, Maranhão e, com grande incidência, no Rio de Janeiro – Estado natal e de maior atividade de Beaurepaire-Rohan. Entretanto, não se concebe que o dicionarista não tivesse pesquisado em jornais, portanto, sua lista só pode significar que os locais relacionados seriam “os de maior incidência dos termos”, mas não que seriam de uso exclusivo daquelas regiões. O apontamento de apelidos iguais utilizados em regiões diferentes aponta isso também. Além de tudo isso, “caipira” não era aplicado somente a pessoas do meio rural, mas… para Amadeu Amaral (e tantos outros que o seguem até hoje), parece ter sido (e ser) agradável e conveniente não considerar nenhuma destas reflexões óbvias, embasadas em mais leituras e apontar(em) que existiria uma “cultura caipira paulista”, inclusive com um “dialeto” próprio.
Muito curioso é que se o dialeto de Amadeu Amaral era “caipira”, então “caipira” teria sido o termo mais importante, certo? Pois exatamente deste termo ele não apontou a origem, chamando-o de “[…] palavra de aspecto indígena, real ou aparente” e, conforme já dito, zombou da “imaginação dos etimologistas”. Quais etimologistas? Se Amadeu Amaral os verificou, não os quis apontar – mas, curiosamente também, não teve dúvida em apontar que “caipora” derivaria de caapora (“mais de acordo com a etimologia”, segundo ele) e nomes de demônios dos “caipiras paulistas”: “o caipora, o currupira, o saci, o bitatá”. Para Amadeu Amaral, “caipora” vir de caapora era normal – mas “caipira” vir de curupira seria “imaginação dos etimologistas”, separando bem os dois termos de acordo com significados colhidos em dicionários (!). Amadeu Amaral parece ter insistido em grafar erroneamente “currupira” e “bitatá” (este, ao invés de “boitatá”), mas pode ter sido erro gráfico ou de revisão da edição checada.
Podemos dizer que se Amadeu Amaral fosse um etimologista (o que nunca defendeu ter sido e aos quais tanto criticou), teria sido, por sua vez, um etimologista bem seletivo e despreocupado em apontar fontes e desenvolvimentos científicos… mas que se julgou capar de organizar um léxico, apontando significados de diversas palavras antigas – tudo para tentar justificar uma “cultura”. Sim: destaca-se que os dicionaristas criticaram “falsos etimologistas”, mas de fato eles também não teriam formação (nem competência, comprovadamente) para tentar fazer o que fizeram.
Não se pode provar por que, mas, no mínimo, imaginamos que seria difícil explicar como um termo que significava “indígena do mato mais profundo”, depois corrompido para pejorativo político, poderia ter mudado para “habitante da roça paulista”… A esta “mudança mágica”, porém, temos que apontar crédito a Amadeu Amaral e a Cornélio Pires, pois, graças ao empenho deles, a partir de 1910 realmente se tornou o significado popular mais visto em dicionários (!) – diferente dos demais significados mitológicos e fantásticos, aqueles que Amadeu Amaral tinha feito questão de separar de “caipira”. É fato: a citada “cultura” teria “passado a existir” depois deles – e muitos os seguem, sem contestação, até os dias atuais.
Mas isso tem algum problema?
Bom… Amadeu Amaral era um ser humano e, apesar de se esforçar, não pode ser considerado um bom cientista – pois não apontava os raciocínios que teria feito para justificar suas afirmações e, sobretudo, as fontes de época nas quais teria se embasado. Sequer os dados de sua “pesquisa de campo” teriam sido apresentados, demonstrados, usados em justificativas. Cornélio Pires, muito menos – suas publicações eram artísticas: foi um empresário – genial, visionário e obstinado, mas um empresário cultural, jamais um cientista, um estudioso. Talvez algum problema esteja em quem entendeu (e ainda entende) as colocações destes distintos senhores como científicas – o que teria começado com o respeitado Dr. Antonio Candido, que entre as décadas de 1950 e 1960 teria aplicado em uma tese de doutoramento e depois em um livro que a “cultura caipira” seria dado científico válido. Ainda pior: ao “peculiarmente” também entender que o “caipira” seria de origem paulista, indicou associação da dita “cultura” a uma grande região chamada “paulistânia” (outro “entendimento peculiar”). Tudo isso, Candido fez apenas por citações simples, sem apresentar comprovações científicas básicas, como por exemplo, uma pesquisa de campo em todo o país para apontar as diferenças e semelhanças entre a “cultura” da região alegada e o restante.
Toda “interpretação ou entendimento peculiar” só causa problema se, por acaso, alguém resolve depois utilizá-la como argumento ou embasamento de novas colocações. O bom mesmo, independentemente de quem tenha escrito alguma coisa, é sempre checar fontes, desenvolvimentos, a verdade histórica por vários ângulos e, se for utilizar, apresentar todo este desenvolvimento, mesmo que não tenha sido apresentado antes. Se não, o risco de dar seguimento a equívocos é bastante grande.
É claro que o Brasil tem liberdade de Credo: cada um pode acreditar no que quiser, independentemente de comprovações. Também é o Brasil um país capitalista, onde se aceitam vários tipos de ações de venda (marketing) igualmente sem a obrigação de serem cientificamente comprováveis: “compra” quem quiser, sejam as ideias ou os produtos ofertados. E de forma alguma é crime gostar de histórias agradáveis, convenientes, que fazem tão bem a egos e bolsos.
Está tudo certo – então, vamos proseando…
(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).