VIOLAS TROVADORESCAS

“[…] it is generally allowed that the Troubadours, by singing and writing in a new tongue, occasioned a revolution not only in literature but the human mind.”

 “[…] é geralmente aceito que os Trovadores, cantando e escrevendo em uma nova língua, ocasionaram uma revolução não apenas na literatura, mas também na mente humana”

[Charles Burney (1726-1814), em A General History Of Music, 1782 – trad. nossa].

Viola, Saúde e Paz!

Neste Brevis Articulus vamos aprofundar, um pouco mais, dois entre vários contextos inéditos apresentados em nosso livro A Chave do Baú: a influência das poesias trovadorescas na História Ocidental dos Cordofones – e o período do surgimento do nome VIOLA em occitano – língua também chamada langue d’oc, provençal ou romance, influenciada pelo latim popular e que depois, entre outras línguas, influenciaria o catalão e o francês, e com estas, mais tarde o espanhol e o português.

O nome “trovador” viria a partir do latim trovare, francês trouver, occitano e catalão trobar – que significariam “inventar, descobrir”. É traduzido em francês hoje como joungler (“malabarista”) ou ménestrel; em inglês, juggler ou minstrel; e em espanhol, juglar. Como nosso leitor é inteligente e atento, já percebeu pelas traduções (ou já sabia) que os Trovadores eram artistas de múltiplos talentos: de fato, declamariam versos, cantariam, dançariam, fariam malabarismos, comédia, etc. Qualquer semelhança com os ainda resistentes espetáculos circenses, entendemos que não seria mera coincidência… 

Charles Burney, autor em destaque, foi um músico inglês (cravista, organista, compositor) e também historiador/musicólogo – um erudito respeitado, com várias publicações elogiadas e citadas até os dias atuais. O trecho destacado introduz um profundo e bem embasado desenvolvimento que ele assim justificou, à página 221:

[…] As the origin of Songs and the formation of the Language of every country are so nearly caeval, I hope the reader will allow me to bestow a few pages upon a subject, which though it be thought not absolutely necessary for a musical historian to trace, yet it lies so near his path that he can hardly proceed on his way without its being often impressed upon his mind, fortuitously

(“Como a origem das Canções e da formação da Língua de cada país são quase contemporâneas, espero que o leitor me permita dedicar algumas páginas a um assunto que, embora não seja considerado absolutamente necessário para um historiador musical traçar, fica tão perto de seu caminho que ele dificilmente pode prosseguir sem que se impressione, fortuitamente”).

Concordamos muito com Burney que este assunto esteja “no caminho” de todo interessado pela História dos instrumentos – mas apesar disso, em cerca de uma centena de estudos que pesquisamos, das principais línguas europeias, ele teria sido o único a dedicar maior profundidade às poesias; o único que se aproximou da nossa maneira de analisar o fenômeno histórico chamado Trovadorismo: um evento de grande impacto social, principalmente em seu auge (entre os séculos XII e XIII), e que por isso teria tido grandes reflexos na sociedade, demonstrados nos instrumentos musicais populares.

O musicólogo analisou de forma científica um assunto que mais poderia ser considerado das áreas de “literatura” e/ou “linguística”, apresentando uma cronologia de registros, inclusive manuscritos, em latim e em variações de francês, inglês, italiano, catalão. Assim, foi capaz de apontar contextos histórico-sociais relacionados às poesias (e/ou prováveis letras de canções) desde os Gregos, passando pelos Árabes e os Romanos até chegar ao chamado vulgare (o latim popular) e sua influência no que chamou de “nova língua dos Trovadores” – que seria a que definimos aqui como occitano (e suas outras alcunhas). Qualquer semelhança entre alguns dos caminhos de Burney e parte da nossa metodologia também não acreditamos que seja mera coincidência – e sim comprovação da lógica científica. É bom atestar paralelos com os bons, embora, com todo o respeito, “nós é marrento” e procuramos sempre ir mais adiante do já tenha sido pesquisado – no mínimo, porque vivemos 200 anos depois que Burney se foi, com maior facilidade de acesso a um número maior de fontes.

Na verdade, conforme várias das citações de Burney que conferimos e outras que acrescentamos (como poesias em dialetos alemães, em espanhol e em português, que ele não citou), teria havido uma grande fase de transição, iniciada com a queda de Roma (século V); seguida pela ascensão das diversas culturas então libertas, mas sob influência da Igreja Católica (que mantinha o latim em uso todo o vasto território antes dominado); e somado à influência da invasão dos mouros-árabes (século VIII), com seus instrumentos e musicalidade superior principalmente em liberdade de uso e criação, levada de forma mambembe de reino a reino, que viria depois a dar origem ao tal do Trovadorismo (este que, então amplamente incorporado à cultura europeia da época, atingiu o já citado auge nos séculos XII e XIII).

Tantos séculos de atrito entre culturas diferentes trouxeram reações no cenário social, que, para resumir, viriam culminar por exemplo no chamado “final da Idade Média” (século XV).

Instrumentos musicais populares (que também tiveram suas próprias fases de desenvolvimento) refletiram o contexto histórico-social pelo surgimento de um turbilhão de nomes diferentes (nas diferentes línguas das citadas culturas emergentes) e também por alguns instrumentos terem caído em desuso (ou quase não sendo observados mais em registros) enquanto outros instrumentos surgiram e/ou tiveram mudanças de formato. É o caso dos alaúdes e similares, de caixa de ressonância em formato de pera (ou gota d’água) cortada ao meio longitudinalmente, com fundo abaulado, que por terem sido introduzidos pelos invasores árabes, teriam sido sustituídos gradativamente por instrumentos de caixas cinturadas, de fundo plano, criados pelos europeus – estes últimos instrumentos, principalmente, com variações de nomes próximos a VIOLA.

Definitivamente não teria sido por coincidência, portanto, que nos tais séculos XII e XIII catalogamos os mais remotos registros de variações do nome VIOLA para cordofones. Entre as variações mais literais, localizamos, retraduzimos e inserimos na cronologia: VIOLA do Codex Calixtinus, em latim, estimado entre os anos de 1130 e 1160, da qual não há descrição se dedilhada ou friccionada; o termo VIOLAR (“tocar viola”), em relatos sobre Perdigon, um joglars (“trovador”) catalão, que teria vivido entre 1190 e 1220, com maior probabilidade de sua viola ter sido dedilhada, visto que ligada diretamente a trobar (fazer versos) – mesma probabilidade de uma VIOLA citada no poema Daurel et Beton, em occitano, estimado apenas “entre fins do século XII e início do século XIII”.

Encontramos ainda o termo VIOLARS (“tocadores de viola”), da qual não se tem muitos detalhes, estimado o texto apenas como “do século XII” por manuscritos que o próprio Burney teria pesquisado, mas sem especificar qual. Ele apontou manuscritos dos anos de 1119 e 1137 e, pelo bom nível geral do livro e do autor, acreditamos nele – mas não deixamos de fuçar mais registros até encontrar confirmações – afinal, “marra é marra”…

Burney entendeu que VIOLARS (no século XII) teriam sido tocadores de vielle (cordofone acionado por teclas e por uma roda com manivela) e/ou também de viol (um friccionado pequeno, que ele entendia ser “o mesmo que o violino”). Neste ponto, nossa boa relação com o inglês azedou um pouco: primeiro, porque sem dúvida o nome francês vielle teria vindo de vielle a roue (“viola de roda”), instrumento que ele descreveu bem, mas não no século XII: com o nome latino antecessor organa ou sambuca rotata, a tal “viola de roda” tinha registros inclusive em esculturas e desenhos desde pelo menos o século X, mas, no século XII, vielle já teria aparecido como cordofone (dedilhado ou friccionado por arco) em textos em francês antigo e até em latim (onde aponta ter sido corruptela a partir do francês, surgido antes).

Além disso… viol? Qual é, Burney! Viol só teria sido observado a partir do século XVI! Pior ainda: “violino” também, enquanto nome, só a partir do mesmo século XVI… “Bola fora” total sua, meu amigo – desculpe o trocadilho, mas nessa você se “queimou” (que seria burned em inglês, em adaptação livre e sacana nossa). 

Infelizmente não é raro que estudiosos, mesmo os melhores, equivoquem-se com o contexto histórico de nomes antigos de instrumentos, sendo também muito comum traduzirem nomes antigos para os de sua própria língua. O mais grave do equívoco é interpretarem que as características dos instrumentos que conheciam sempre teriam sido as mesmos, desde registros mais antigos – muitas vezes analisando apenas por alguma similaridade ou semelhança nos nomes. É por isso, inclusive, que a maioria dos estudiosos pelo mundo considera que só teriam existido violas “de arco”. Esta lacuna observamos muito nos excelentes e muito aprofundados estudos de vários deles. O bom é que grandes estudiosos costumam sempre apontar as fontes pesquisadas, então pudemos localizá-las e as retraduzir, com nosso olhar atento, à procura de detalhes que pudessem revelar possíveis violas dedilhadas.

Foi exato este o caso: Burney teria identificado, entre trovadores, além dos VIOLARS: JUGLARS (que para ele teriam sido tocadores de flauta); MUSARS (para ele, tocadores de outros instrumentos) e COMICS (comediantes). Dos quatro nomes, Burney só teria acertado “comediantes”: uma “queimação” geral…

Com certa dificuldade, alguma sorte e muita atenção (pois nem Burney nem outros citaram), conseguimos localizar um texto muito semelhante, do francês Cesar de Nostradamus (1553-1629) – filho do famoso astrólogo – à página 132, de publicação de 1614 de seu livro L’histoire et Chronique de Provence (“A História e Crônica de Provença”):

[…] sur leurs lyres & instruments, dont ils furent appellez Troubadours (c’est à dire Inventeurs) Violars, Iuglars, Musars & Comics, des violons, fleuttes, instruments musicaux & des Comedies.

(“em suas liras e [outros] instrumentos, os depois chamados Trovadores – que quer dizer Inventores – Violars, Juglars, Musas e Comediantes, com seus violons, flautas e [outros] instrumentos de música e comédias”).

            Um “bombomzinho”, não? Sim… Só que temos que desembalar antes de comer este bombom: Nostradamus não citou detalhes sobre os instrumentos, nem fontes, nem datas – mas apontou narrativas de personagens que apontam que o texto seria do século XII: ok… porém, citou violon – nome que em francês, no século XVII, seria violino (talvez, aí, tenha enganado Burney), mas no século XII, ainda nem existiria… Estes autores desatentos! Bom… Mesmo em um texto em francês, já tínhamos percebido que os termos que também teriam chamado a atenção de Burney (pois não os traduziu para o inglês) estariam em occitano ou catalão (para nós, que falamos português, é fácil perceber). Bom, bom: descascado o bombom, era mesmo dos bons – com destaque à citação de lyres (instrumentos mais conhecidos como dedilhados), feita por Nostradamus, mas não por nosso então já ex-amigo Burney.

            Os apontamentos equivocados de Burney foram depois citados (sem muitos questionamentos) por vários pesquisadores, como o escocês John Gunn (em 1789) e os ingleses Carl Engel (em 1883), Francis Weber (em 1891) e Christopher Page (já em 1987). Nenhum deles apontou ter observado o texto de César Nostradamus, nem os equívocos de Burney – e muito menos um detalhe a mais que observamos: Burney citou como ingenious and probable (“genial e possível, provável”) uma opinião do filólogo francês Pierre-Alexandre Levesque de La Ravallière (1697-1762), que então achamos interessante fuçar em seu livro Les Poesies du Roy de Navarre (“As Poesias do Rei de Navarre”).

Em publicação de 1742, Ravallière arriscou o que chamou de uma nouvelle etimologie (“nova etimologia”) para o termo em francês jongleurs: que poderia ter sido originalmente ligado a ongles (“unhas”), ou seja, específico a músicos que tocassem instrumentos dedilhados. O desenvolvimento, demonstrado por várias citações de dicionários e poemas antigos, é que anteriormente o termo teria significado Enchantieres & Multeplieres (“encantadores e multiplicadores”) de palavras; estes, a medida que começaram a ficar mais raros, foram sendo ubstituídos por outros membros das trupes bem menos qualificados naquele tipo de arte – e assim o nome passou com o tempo a ser usado para significar “malabaristas”, também no sentido figurado de bourder & mentir (“trapacear e mentir”). Todos os artistas se fantasiariam e fariam brincadeiras, inclusive os músicos, e todos teriam passado a serem vistos como “malabaristas” – tanto no sentido figurado quanto no real.

Entende-se que “tocar com as unhas” poderia então ser um indicador de que os JUGLARS dos manuscritos e fontes de Nostradamus e de Burney pudessem tocar instrumentos dedilhados, distinguindo-os assim dos VIOLARS, que então tocariam “violas” ancestrais – mas é preciso não derrapar nas cascas de banana que tantos pesquisadores derrapam: nem todas as violas teriam sido friccionadas por arco! Neste caso, cruzamos os registros que citamos, do mesmo século XII, observadas em textos em latim, occitano e catalão (e que nem Ravallière, nem os demais indicaram ter pesquisado). Vantagem para os marrentos, então!

Como os estudiosos apontam terem tido foco em variações do nome “viola” apenas como friccionados, não teriam levantado e organizado um bando de dados como o nosso, nem teriam atestado a evolução histórica do significado de jongleurs (dados que se complementam e se confirmam, vistos assim, em conjunto), a preciosa informação teria se perdido na História até agora.

O termo VIOLARS não teria sido observado literalmente em outras fontes antigas além das que César Nostradamus e Burney teriam pesquisado. Segundo especialistas em línguas provençais, entre os séculos XII e XIII outros termos próximos teriam sido observados em manuscritos, para “tocadores”: Raynouard (1843, p. 561) apontou viulaire e violador – ambos os termos, confirmados por Mistral (1879, p. 1128), que acrescentou violaire – e os três termos foram confirmados por Levy (1915, p. 791). Já o musicólogo Galpin (1911, p. 88) teria observado os termos vilours e vidulators – este último, bastante próximo a vidulatores, que teria sido mencionado por John Garlande, segundo Rubin (1981, p. 82-83). Observa-se, entretanto, que as pronúncias seriam todas relativamente próximas – e sabe-se que o occitano teria sido língua comum em boa parte de territórios catalães e franceses. Sem contar que em poesias (a maioria das fontes da época), as variações orais por causa de adequação a métricas e rimas, ao serem transcritas poderiam apontariam este tipo de variações de grafias (uma observação que fazemos por nossa experiência em composição de letras de músicas, e que Burney também teria constatado no desenvolvimento destacado na abertura deste Brevis Articulus).

Mesmo com o Trovadorismo já a caminho do desaparecimento – que teria se dado após a chamada Peste Negra, no século XIV – o termo VIOLA teria sido ainda o mais observado nos reinos de Navarra e de Aragon, em mãos de juglares (“trovadores”, em espanhol), provenientes de territórios franceses e italianos, segundo pesquisas muito embasadas da Dra. Martinez (1982, p. 1042-1044). Já Portugal, que se estabeleceu como Reino unido e independente também no século XII, só se conhecem registros do nome VIOLA a partir do século XV, o que é muito significativo…

Estas, pois, as muitas evidências de instrumentos chamados “viola” a partir do occitano durante o Trovadorismo – quando é preciso estar atento quanto a descrições, pois poderiam ter sido tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco, no início. Há ainda variações bem próximas, observadas em textos em francês, dialetos alemães, variações do atual inglês, em italiano… mas aí já são outras prosas!   

             Muito obrigado por ter lido até aqui… E vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS (além das descritas no texto):

ENGEL, Carl. Researches into the Early History of the Violin Family. London: Novello, E&Co., 1883.

GALPIN, Francis W. Old English Instruments. London: Methuen, [1911].

GUNN, John. The Theory and Practice of fingering the Violoncello. Reino Unido: Ed. do author, 1789.

LEVY, Emil. Provenzalisches Supplement-Worterbuch. Leipzig: O. R. Reisland, 1915.

MARTINEZ, Maria do Rosario Alvarez.  Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos. 1981. Tese (Doutoramento em História da Arte) – Faculdade de Geografia e História, Universidad Complutense de Madrid. 1981.

MEYER, Paul. Daurel et Beton: chanson de geste Provençale. Paris: Firmin Didot, 1880.

MISTRAL Frédéric. Lou Tresor dou Felibrige ou Dictionnaire Provençal-Français. v.2. Paris: H. Champion, 1879.

PAGE, Christopher. Voices and Instruments of the Middle Ages: Instrumental Practice and Songs in France 1100-1300. London: Dent, 1987

RAVALLIÈRE, Pierre A. L. de la. Les Poesies du Roy de Navarre. v.2. Paris: L & J Guerin, 1742.

RAYNOUARD, François J.M. – Lexique Roman ou Dictionnaire de la Langue des Troubadours. v.5. Paris: Chez Silvestre, 1843.

RUBIN, Barbara Blatt. The Dictionarius of John de Garlande. Laurence: Coronado, 1981.

WEBER, Francis J. A Popular History of Music from the Earliest Times. London: Simpkin, Marshall, Hamilton , Kent & Co., 1891.

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