VIOLAS A PATRIMÔNIO

“Art. 216: constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira…”

(CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988)

Viola, Saúde e Paz!

Entre começar pela notícia boa ou a ruim, optamos por começar pela péssima: segundo inventariantes, em pesquisas em andamento neste nosso ano de 2023, na ilha Terceira, nos Açores, não estariam mais ativas violas “18×7” – quer dizer, 18 cordas em 7 “ordens”, ou “parcelas”, como se diz por lá. Nem lá, nem em nenhum outro lugar. O modelo ainda existiria até meados da década de 1990, segundo livros de José Alfredo FERREIRA ALMEIDA e José LÚCIO (* = ver referências ao final). Na verdade, constituiria-se de uma espécie de “extensão” (por uma sétima ordem, tripla), ao modelo 15×6 (de 3 ordens duplas e 3 triplas) – este que, felizmente, ainda sobrevive, mas, como vários outros, tanto em Portugal quanto no Brasil, poder-se-ia dizer, numa analogia, que estão “com a vida sustentada por aparelhos” (ou seja, “mais pra lá do que pra cá”, como se diz no Brasil popular).

Não sentimos “apenas” a perda de um modelo (que, no caso, até estaria de certa forma ainda representado pelo citado modelo 15×6), mas nos amedronta bastante a perda de referências concretas, palpáveis e “apalpáveis” – verdadeiros resquícios da História dos Cordofones Ocidentais presentes em cordofones contemporâneos, sobreviventes. Mesmo que este tipo de estudo seja abordado mais profundamente praticamente só por nós, em todo o mundo (por enquanto?), a esperança é que, no futuro, outros estudiosos possam conferir dados e registros de época que contextualizamos, e até aprofundar os estudos que nos atrevemos a lançar em publicações como o livro A Chave do Baú.

No caso, os tais dos “resquícios históricos” seriam os trios de cordas metálicas, que pelos registros até então conhecidos só teriam surgido em Portugal a partir de meados do século XVIII (*ver João Leite Pita da ROCHA e Manoel da Paixão RIBEIRO), mas que refletiriam o observado desde o século XVII nas chitarras italianas (*ver Darril MARTIN e John GRIFFITHS). Por enquanto, só nós temos apontado esta ligação histórica das violas portuguesas com as chitarras italianas e outros cordofones da terra da pizza, nos séculos XV-XVI, com base em contextos histórico-sociais da época envolvendo Portugal-Espanha-Itália (*ver Johannes Tinctoris, De inventione et uso musicӕ, ca.1486 – e LANFRANCO, GANASI, MILANO, entre dezenas de outras referências que levantamos e sempre citamos por aqui). Se os resquícios desaparecerem, junto com os modelos (como já desapareceram os das também extintas violas portuguesas 12×6), vamos acabar por parecer mais malucos do que já somos…

Em tempo, para os que não leram nosso livro ainda: o mais comum (ou mais divulgado), tanto em Portugal quanto aqui, é violas armarem com duplas de cordas – como o nosso famoso modelo top star de vendas, Viola Caipira. Com uma ordem tripla, sobrevivem os modelos brasileiros Viola Nordestina e Viola Branca (“Caiçara” e “Fandangueira”); duas ordens triplas, nos modelos portugueses Viola da Terra e Viola Toeira e na mineirinha brasileira Viola de Queluz; três trios, agora então não há mais sobrevivente…

Sim, sim: você tem razão, estamos a exagerar um pouco mesmo… Há que, por caridade, desculpar nossa dor tão sensacionalista! Não se pode negar que trios de cordas continuam representados… Mas convenhamos: o único modelo brasileiro com dois trios de cordas – Viola de Queluz – hoje em dia praticamente só resiste em peças de coleção, sendo pouco eficazes, na prática, as ações pelo renascimento dele na região de origem (Conselheiro Lafaiete, MG) e nada além dos limites da nossa terra, a dos comedores de pão-de-queijo. Por este motivo, inclusive e apesar de muito “nossa”, não listamos Viola de Queluz em nossa postulação científica inédita de uma Família das Violas Brasileiras. As Violas de Queluz, então, não podem sumir de jeito algum: ainda nem teriam o resquício histórico delas entendido pelos mais famosos pesquisadores do assunto no Brasil (que talvez, por alguma mórbida coincidência, são ambos nascidos em Minas Gerais). A nossa dor, ao escrever este Brevis Articulus, é um tanto de vergonha também, principalmente por nossos conterrâneos, famosos e teimosos…

Mudemos nós então o rumo da prosa para celebrar a prometida noticia boa: os bons ventos nos chegam d’além mar, mas, curiosamente, por um brasileiro – pernambucano arretado, comedor de sarapatel, mas radicado em Portugal desde 1996. Por lá, Mestre José Wellington do Nascimento – ou apenas “Wellington Nascimento”, como assina no Facebook – já vem aprontando das boas em termos de cantorias e toques de violas, e também de vida acadêmica – da qual, para resumir, vamos citar apenas a ótima dissertação de mestrado depositada em 2012 na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada: Viola Da Terra, Património e Identidade Açoriana.

Como se percebe desde o título da dissertação, não é à toa que Mestre Wellington faz parte da equipe que está a inventariar “Violas da Terra dos Açores”, com vistas ao Reconhecimento Oficial como Patrimônio Cultural Imaterial pela Secretaria de Cultura do Governo de Portugal (via Diretório Geral do Patrimônio Cultural).

Precisa explicar que esta é a tal da grande e boa notícia? E… ouviremos “vivas”, ou será que gastamos aqui os parágrafos de introdução sobre desaparecimento de modelos de viola para nada?  

Sim: a ação, lançada em 03 de junho de 2023, tem potencial de colaborar, e muito, com o fim do desaparecimento de modelos de violas (e dos resquícios históricos que eles representam e atestam). É preciso, entretanto, contextualizar algumas coisas – que faremos a partir de informações que Mestre Wellington, mui generosamente, nos concedeu em entrevista exclusiva para este Brevis Articulus:

“Arquipélago dos Açores é uma Região Autonoma e a candidatura está sendo patrocinada pelo Governo dos Açores; está centrada na Viola da Terra (Açores)”.

Para quem não sabe ou não lembra, o Arquipelágo dos Açores, situado no Oceano Atlântico (mais ou menos no meio do caminho entre lá e cá) é formado por nove ilhas de origem vulcânica: Santa Maria, São Miguel, Terceira, São Jorge, Faial, Pico, Graciosa, Flores e Corvo.

Outra contextualização necessária é que o que o projeto estaria a referenciar como “Violas da Terra” especificamente os modelos “[…] Viola da Terra de dois corações com 12 cordas e 5 parcelas – e a Viola da Terra com 15 cordas e 6 parcelas (Ilha Terceira)”. Foi neste ponto, inclusive, que nosso coração (que é único, e não dois, como em algumas caixas de ressonância de viola de lá), se partiu e foi de dor e tristeza, por saber que não mais existe o outro, citado, modelo de “Viola da Terceira 18×7”…

Os nomes “viola da terceira” e “viola terceirense” são os observados nos livros que citamos, para os modelos da ilha específica – e “viola da terra” ou “viola açoriana”, consta como citação geral aos modelos das ilhas do arquipélago. Já o novo projeto parece estar a adotar, a princípio, a nomenclatura “Viola da Terra (Açores)”. Como estudamos muito sobre nomes de instrumentos musicais pela História, estes detalhes nos chamam a atenção. Nosso entendimento é que o nome “mais certo” é o que se consolida pelo tratamento popular, com o passar do tempo. Normalmente este processo natural aponta nomes diferentes de acordo com diferenças organológicas, mesmo que pequenas, a não ser que algum evento social de significativo impacto atue – e em Portugal “calhou” de ser também referência a regiões geográficas de origem ou procedência. Sabedoria popular, talvez? Não sabemos, só sabemos que costuma ser assim, segundo registros. Muitos e variados registros, confirmáveis. Vamos, portanto, observar o que vai acontecer quanto aos nomes dos modelos sobreviventes.

Vida que segue: são então dois os modelos em processo de “inventariamento” (nos permitimos inventar este termo, inspirado no português de Portugal). Depois desta fase, é para serem reconhecidos como Patrimônio de Portugal. “Inventariar”, no caso, seria o trabalhoso procedimento científico exigido para o Reconhecimento ser oficializado, que consiste em fazer levantamentos e contextualizações de registros escritos, iconográficos, de pessoas que toquem e/ou fabriquem os instrumentos, depoimentos, histórias, etc. Tudo o que for possível investigar.

Achas pouco para considerares como ótima nótica? Ora, pois, pá!… Se assim o pensas, diríamos que o que tens é pouca fé. Sem contar que no Brasil, segundo Gil, “café não costuma faiá” (ops… começamos o parágrafo em estilo “portuga” e acabamos por derrapar para estilo coloquialíssimo “brazuca”: foi mal, “desculpe o auê”, como diria Rita Lee…).

Falando sério, o que vemos: será o primeiro modelo de viola portuguesa a ser Reconhecido como Patrimônio (afirmamos porque temos fé); tudo então pode conspirar (e vai) para que, no futuro, defensores e detentores dos demais modelos portugueses também se aviem para um Reconhecimento Nacional; depois, o céu (quer dizer, a Unesco) é o limite, para um Reconhecimento Mundial, como Patrimônio da Humanidade. Oxalá – pois fé, daqui, não há de faltar! E o que fede aqui… Ah, já chega, né? Melhor não exagerar nessas palhaçadas “texticulares”…

O que teriam as violas brasileiras a ver com isso?

Olha que legal: alguns podem achar estranho um brasileiro por lá, envolvido com defesa de Patrimônio Imaterial – mas quem estudar um pouco da História desse tipo de ação político-cultural, hoje mundial, descobrirá que antes mesmo de iniciativas da Unesco como a Convenção do Patrimônio Mundial (de 1972) e a definitiva Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (de 2003), a ideia já era ventilada por aqui…

Sim: “tupiquiniquins”, comedores de feijoada e outras maravilhas, já pensavam o assunto, bem antes do resto do mundo, e teve até lei (Decreto-Lei nº 27, de 30 de novembro de 1937). O mais importante é que a ideia veio de Mário Andrade, então nos primórdios do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), órgão que depois se tornou o “Instituto” IPHAN (não precisa escrever de novo o que o resto da sigla significa, né?).

Duvidou? Confira nas referências (*) ou até no portal internético oficial do IPHAN. E permita-me refrescar mais as mémorias: Mário Raul de Morais Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 – São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo brasileiro (os negritos são em explícita “causa própria” nossa, pois “farinha pouca, nosso pirão na frente”). Sim, senhoras e senhores: naturalmente não são todos, mas quando alguns pesquisadores falam e são ouvidos, por mais malucos que pareçam, o trem costuma andar bem e nos trilhos… (“trem” aqui, como “trem de ferro” mesmo, não no contexto de mineirice, porque as palhaçadas já cansaram… quer dizer… ops…).

Já para finalizar, um resumo cronológico de ações nacionais relacionadas a “Violas a Patrimônio” por aqui, pois faz parte dum contexto interessante: em 2004, o Samba do Recôncavo Baiano foi reconhecido oficialmente (trazendo, como um “Bem Associado”, as Violas Machetes); em 2005, o modo de fazer e tocar Viola de Cocho; em 2011, o Fandango Caiçara (onde as Violas Caiçaras são um “Bem Associado”), foi reconhecido por aqui e entrou até para a “Lista de Melhores Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da Humanidade” pela UNESCO.

Pausa para reler o último parágrafo e perceber que, de maneira direta, apenas o modelo Viola de Cocho já teria efetivamente sido Reconhecido – confira!

Além de estudos em andamento (como das Violas de Buriti, desde 2019, e a possibilidade de Violas Nordestinas poderem vir a entrar, como Bem Associado ao Repente, este reconhecido oficialmente em 2021), em 2017 foi protocolado Requerimento para Reconhecimento de todos os modelos de viola brasileiros (a tal da nossa Família das Violas Brasileiras), em conjunto, como Forma de Expressão válida aos Livros de Registro – uma iniciativa maluca do músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor mineiro João Araújo (é nóis mess!). Um requerimento que, entretanto, atualmente encontra-se arquivado, por pura falta de interesse da classe.

O único Estado brasileiro (até agora) a reconhecer oficialmente as violas como Patrimônio Imaterial foi Minas Gerais, desde 2018 – num curioso Dossiê (*) onde é negado o crédito pela iniciativa registrada oficialmente pela Assembleia Legislativa de MG (!) como Projeto de Lei 1921, de 2015. Aquele PL também foi fruto das insistências e até “brigas” do mesmo maluco, que vos escreve aqui usando o divertido, mas descarinhosamente chamado “plural de falsa humildade”, muito comum nos artigos científicos.

Uma curiosidade que a História provavelmente há de contar no futuro sobre “Violas a Patrimônio” é que tanto o Projeto de Lei realmente originário, quanto a oficialização por Minas Gerais quanto, agora, o início dos processos em Portugal recairam em meses chamados “junho”. Tais coincidências são boas para se criarem lendas, por exemplo, que Santo Antônio (casamenteiro) poderia estar agindo pelas violas, para se vingar de São Gonçalo (considerado o oficial “das violas”, mas que nunca nem foi santo e que teria andado a fazer uns casamentos)…

Finalizando com falares de coisas boas e fundamentadas, que é sempre o melhor, nossa alegria com a (sem dúvida) ótima notícia vinda dos Açores é também porque em 2017 chegamos a convidar, em Almada, violeiros portugueses a entabularmos, juntos, ações de defesa de nossas violas, todas elas, como vistas a no futuro serem reconhecidas como Patrimônio Imaterial da Humanidade… Ou seja, o mesmo filme já teria sido visto antes, né? Entretanto daqueles, como também dos brasileiros, não conseguimos ecos de apoio continuado (ao contrário, há quem até ainda fale mal de nós, pode isso?), mas entendemos que a semente foi lançada: um dia, com muita fé (e, mais ainda, café) há de gerar frutos, como os que já parecem estar a surgir. Esperamos que os registros históricos possam apontar, no futuro, de onde teriam vindo esta maluquice – oxalá e eparreia-aiá! – além de virem a ser bons assuntos para prosas…

Por enquanto, muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS (além das descritas no texto):

FERREIRA ALMEIDA, José Alfredo. A Viola de Arame dos Açores. Separata de Boletim Paroquial da Ribeira Chã, ano XIV, nº100. Ponta Delgada: Ed. do autor, 1990.

GANASI, Silvestro. Regola Rubertina. Veneza: s/n, 1542.

GRIFFITHS, John. At Court and at Home with the Vihuela de Mano: Current Perspective of the Instruments, its Music and its World. JLSA 22, 28 páginas, Universidade de Melbourne, 1989.

GRIFFITHS, John. Las vihuelas en la época de Isabel la Católica. Cuadernos de música Iberoamericana, Madri, v.20, p. 7-36, jul./dez. 2010.

IEPHA – INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. Dossiê para registro dos Saberes, Linguagens e Expressões Musicais da Viola em Minas Gerais. Belo Horizonte, IEPHA, 2018.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. O Registro do Patrimônio Imaterial. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2006.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Dossiê Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2006.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Dossiê Fandango Caiçara. [Dossiê de Registrol]. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2011.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Dossiê Modo de fazer Viola de Cocho. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2005.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. O Registro do Patrimônio Imaterial. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2006.

LANFRANCO, Giovani. Scintille di musica. Brescia: Ludovido Britanico, 1533.

LÚCIO, José. Os Sons e Tons da Música Popular Portuguesa. [Apostila]. Lisboa: ed. do autor, 1998.

MARTIN, Darryl. The early wire-strung guitar. The Galpin Society Journal, UK, p.59, maio 2006.

MILANO, Francesco. Intavolatura de Viola o vero Lauto. Napoli: s/n, 1536.

RIBEIRO, Manoel da Paixão. Nova Arte de Viola. Coimbra [Portugal]: Universidade de Coimbra, 1789.

ROCHA, João Leite Pita da. Liçam Instrumental da Viola Portuguesa. Lisboa: Of. Franc. Silva, 1752.

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