A ORIGEM DO ESTILO “SERTANEJO UNIVERSITÁRIO”

“[…] A música sertaneja tem certas características de melodia de simples assimilação. […] E tem o som da viola caipira, que já está no “iê-iê-iê”, também com este negócio de violão de 12 cordas que os Beatles usaram muito…”.

[Rogério Duprat, em entrevista ao Jornal do Brasil, 01/12/1970, nº 204, p. 38].

Viola, Saúde e Paz!

O assunto é já bastante discutido: há dezenas de opiniões de curiosos, historiadores, sociológos, antropólogos… É citado em artigos independentes e científicos, dissertações, teses… Mas não encontramos análises musicológicas embasadas cientificamente por dados de época e contextos histórico-sociais – por isso, resolvemos abordá-lo no livro A Chave do Baú e neste Brevis Articulus apresentamos aprofundamentos, com referências, as quais os leitores podem confirmar se quiserem. Desenvolvemos a origem a partir das violas e do caipirismo, pontuando o ano de 1966, como quase ninguém teria observado e relatado antes.

“Quase ninguém” porque, entre cerca de uma centena de textos que checamos, apenas no artigo Raízes Caipiras da Música Sertaneja (do paranaense Rodrigo Mota, publicado em 2011), encontramos uma citação vaga de que:

 “[…] no Festival da Viola promovido pela TV Tupi de São Paulo, em 1970, com a participação do maestro Júlio Medaglia, procurou-se dar um novo tratamento harmônico, melódico e temático à música sertaneja, inspirado, de certa forma, nas perspectivas abertas pela música “Disparada” de Théo de Barros e Geraldo Vandré”.

Neste bom artigo há também citação às motivações do maestro Rógerio Duprat, na mesma época, conforme trechos como o destacado na abertura – motivações que na maioria das vezes nem é apontada por estudos acadêmicos. Entretanto, não há no artigo o que chamamos de “desenvolvimento científico” – até porque, para Mota, a ligação da hoje chamada “música sertaneja universitária” com “Disparada” não seria clara, concisa.

Ligação entre a música “Disparada” e o surgimento do estilo sertanejo universitário? Não é “forçar a barra”, já que tantos estudiosos não teriam visto isso?

Antes de responder via nosso desenvolvimento, não podemos deixar de dar crédito ao Dr. Roberto Corrêa, que na sua tese Das Práticas Populares à Escritura da Arte, de 2014, fez um bom apanhado sobre o fenômeno envolvendo a música “Disparada” – até porque o sucesso dela teria sido um dos cinco pilares do suposto “avivamento da viola caipira na década de 1960”, defendido pelo pesquisador. Já citamos e comprovamos por numerosos registros de época que, na verdade, a nomenclatura “viola caipira” ainda não estaria consolidada naquela década – antes, ao contrário, o que se caracterizaria desde pelo menos 1959 até meados da década de 1970 seria uma dúvida pública sobre o melhor nome para as violas, entre “viola brasileira” e “viola caipira”, com a consolidação só tendo vindo a ser atestável a partir de meados da década de 1970. Apontamos inclusive todas as citações ao termo no período, em nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, em dezembro de 2021.

Corrêa, entretanto, percebeu e citou muito bem dois aspectos importantes: primeiro, o envolvimento de Vandré e do Trio Novo (Théo de Barros, Airto Moreira e Heraldo do Monte), principais compositores e intérpretes de “Disparada”, com a multinacional Rhodia (Companhia Química Rhodia Brasileira), que à época promovia com aqueles artistas uma grande tournée nacional chamada Mulher, este Super-Homem. Corrêa também percebeu e discorreu que Duprat, em 1970, estaria às voltas com a divulgação do disco Nhô Look – e que, bem mais que um simples lançamento, Duprat na prática dava a ideia de uma intenção, que pode ser resumida numa espécie de “dar nova roupagem”, em todos os sentidos, à música sertaneja (“caipira”) que já existia, de estilo em tudo muito simples e rústico.

Dois aspectos chamaram a atenção e nos levaram a escolher o trecho destacado na abertura para ilustrar: no princípio, tanto o estilo “antigo” quanto o “mais moderno” seriam chamados de “música sertaneja”. E que embora Duprat devesse ter bom conhecimento de organologia (ciência que trata da classificação e descrição de instrumentos musicais), por algum motivo teria apontado em entrevistas como se fossem a mesma coisa: violas, violões, violões 12 cordas, guitarras – sendo que nunca foram.

A intenção era claramente comercial: a música caipira, alavancada de 1910 a 1945 com maestria e muito labor pelo visionário empresário artístico Cornélio Pires, era ainda, na década de 1960, uma realidade interessante em termos de vendas (de shows, palestras, livros, discos, etc.). E nenhum sucesso de vendas passa despercebido dos concorrentes…

  O que teria passado despercebido, porém entre pesquisadores, é que não teria sido iniciativa individual de Duprat uma “repaginação estética geral” da música caipira visando agradar a um público maior: por trás do disco e do “movimento” Nhô Look estaria a mesma multinacional Rhodia, como na época de “Disparada”.

Cabe uma explicação: a empresa química, além de cosméticos, lançou no mercado brasileiro tecidos com materias sintéticos, como o nylon e o poliester, por isso o investimento em eventos ligados à moda (roupas, “looks”). E promoveu diversos eventos ligados à música pelo atrativo de público, às vezes junto com desfiles, como Festivais, tournées nacionais e outros. É fácil entender os tipos de ações de marketing pelo próprio site oficial da Rhodia – porém, lá não constam a tournée de 1966 (com Vandré e o Trio Novo) nem a de 1970 (com Duprat). Uma significativa característica destas duas tournées é que haveria apresentações de duplas caipiras e de músicas também utilizando violas nas formações, mas em outras “roupagens”, outros tipos de ritmos e interpretações. Estas informações colhemos de diversas fontes como o livro A Era dos Festivais, de Zuza Homem de Mello (que viveu e trabalhou com música na época) – além de várias outras. Além das já citadas, acrescentamos em destaque por serem mais recentes (abrangendo outras mais antigas) e com visões que partem de outras regiões do país: a dissertação Música Caipira e Música Sertaneja, depositada no Rio de Janeiro em 2005 por Elizete Santos e o artigo Da Cultura Popular ao Erudito, lançado na Bahia em 2017 por Lucas Schafhauser e Ângela Fanini. 

   Fato é que “Disparada” foi um grande sucesso, para o qual o lendário envolvimento político de Vandré só veio a colaborar e, até hoje, faz parte dos repertórios de violeiros, de adeptos da MPB em geral e, naturalmente, de música nordestina – o que efetivamente é, embora até seus autores a tenham citado como uma espécide de “moda de viola que não deu certo”. O título original, inclusive, teria sido Moda para Viola e Laço – que comprova que falar de violas, à época, era interessante comercialmente.  “Disparada”, já com uma “nova roupagem” de uso de violas e seguindo uma trilha de sucesso comercial da música nordestina que passava por Luiz Gonzaga, “bombou” (como se diria hoje) – e isso também não passaria despercebido ao mercado. Sobre origem e entendimentos distorcidos das modas-de-violas, recomendamos, como sempre, lerem o livro A Chave do Baú ou o Brevis Articulus que já fizemos – sendo que, podendo comprar o livro, melhor, pois ajuda a manter os aprofundamentos que fazemos aqui de graça…

Sempre recorremos a registros de época e a contextos histórico-sociais que apontem reflexos em instrumentos musicais populares, por questão metodológica e de honestidade, clareza, embasamento científico. O que a virada para a década de 1970 aponta é que fatores mundiais já vinham apontando mudanças nas músicas populares desde o fim da segunda Guerra Mundial (1945): os Beatles estavam em plena evidência, assim como o movimento hippie e o rock com suas guitarras elétricas, como no Festival Woodstock (1969). No Brasil, teria sido época de ditadura (ou “governo militar”) – um período politicamente conturbado que duraria até 1985 – e em 1967 também já tinha ocorrido aqui a “Passeata contra as Guitarras”. Após o movimento Jovem Guarda – onde guitarras elétricas já eram utilizadas -, seguiram-se outros, onde guitarras também estariam em destaque, como o “Iê-iê-iê” e o Tropicalismo. Neste último movimento, inclusive, já teria havido a participação ativa do próprio maestro Rogério Duprat, daí seu nome surgir para a implantação da ideia de um “novo sertanejo”, que vendesse bem também para as classes média e alta.

A empreitada com Duprat não teria tido, aparentemente, o sucesso esperado, mas logo em seguida, a partir de 1972, uma dupla que anteriormente teria sido “caipira” como as demais despontaria com várias características do novo formato proposto: Léo Canhoto & Robertinho. Estes teriam iniciado a migração das formações de bandas para “guitarras, baixo e bateria” (como os Beatles e tantos mais que os seguiram), abdicando da antiga formação com violas e violões. No novo estilo, várias características dos movimentos anteriores (Jovem Guarda, Tropicalismo, Iê-iê-iê), como o romantismo das letras, além de outras aproximações com a cultura estadunidense nas roupas, nos cabelos compridos e até com esquetes durante os shows (similares a cenas de filmes sobre o Velho Oeste, inclusive com sons de tiros).

O sucesso teria sido imediato, com outras duplas logo aderindo (como Milionário & Zé Rico, que até no visual e figurino eram praticamente iguais). Outros estrangeirismos foram sendo integrados (como influências da música mexicana e sulamericana) e assim surgiu o que hoje se chama “sertanejo universitário”.

Musicologicamente, a presença ou não de violas nas formações diferencia claramente os dois estilos, entre outras diferenças que normalmente são mais citadas, como as temáticas das letras. Claramente se observa que uma comoção social de grande impacto mundial aconteceu (as Grandes Guerras), e que instrumentos musicais populares teriam reagido (como observamos ter sempre acontecido em toda a História Ocidental dos cordofones, a que nos dedicamos a estudar a fundo). No caso do Brasil, a ascensão das guitarras, em substituição a violas e violões.

De igual nos dois estilos, praticamente só resistiria até hoje a predominância do canto duetado em terças – tipo de canto que em outro Brevis Articulus já detalhamos: teria registros pelo menos desde o século XII, na península britânica, tendo chegado até Portugal e de lá até aqui por causa da influência celta e da atuação do Trovadorismo medieval ibérico (em si, outro fator histórico-social de grande impacto). Não, não teria sido original nosso, sequer dos portugueses, que também cantavam modinhas assim.

Alguns autores que aparentemente se arriscam a escrever sobre música sem nunca terem tocado, nem estudado, nem procurado ajuda de quem conhece melhor o assunto, querem inferir que o estilo chamado caipira teria “evoluído” para o sertanejo universitário, ou que seriam a mesma coisa, ou duas pequenas variações de um mesmo estilo. Seriam equívocos lamentáveis ou, como Duprat teria feito, argumentos interesseiros? Difícil provar o que realmente seja.

Já outros autores tentam inferir que só o sertanejo universitário teria cunho mais comercial, e que o caipirismo seria “puro”, natural – esquecendo-se que, na verdade, a interpretação de uma suposta “cultura caipira ancestral” não tem registro anterior a Cornélio Pires (ao contrário, o termo “caipira” tem registros de uso com outros significados, mas só desde o século XIX, inclusive nunca teria sido original indígena). “Esquecem-se” também que Cornélio foi um estupendo vendedor, e que a ele se devem as principais escolhas de músicas que seriam “caipiras” ou não, no início. O caipirismo é na verdade um entendimento coletivo sem comprovação histórica, com boa resposta comercial, amparado na religiosidade e no ego de vários aficcionados. Uma prova do aspecto comercial dominante no estilo é o ritmo “pagode de viola”, que teria sido criado só em 1959 e que, graças aos investimentos da gravadora alavancados no grande artista Tião Carreiro, hoje se alinha entre os principais “ritmos caipiras”… O caipirismo não seria ancestral? Como um ritmo novo pode ter se tornado o mais celebrado? E porque outros novos ritmos novos não apareceram?

Nós, que não ficamos nem em cima, nem em nenhum dos lados comerciais do “muro”, afirmamos: tanto o sertanejo “universitário” quando o sertanejo “dito raiz”, se forem “culturas” em algum possível entendimento, seriam culturas inventadas e mantidas principalmente por interesses comerciais. Nunca teriam sido culturas surgidas naturalmente, muito menos ancestrais (registros e contextos históricos apontam as datas claramente). São ações toleradas pelas leis que acontecem há séculos pelo mundo ocidental e que por isso, cientificamente, também fazem parte dos contextos históricos, junto a outros comportamentos sociais. E que venham as ameaças de morte, tudo bem: todos temos que morrer um dia…  

O investimento em favor do “pagode de viola”, que teve renovado e comprovado contexto a partir de 1976 com o início da utilização do nome “viola caipira” em discos e músicas de Tião Carreiro (LP É isso que o povo quer) foi fator preponderante para a consolidação deste “sobrenome” para o principal modelo da Família das Violas Brasileiras (Família que é postulação científica nossa) – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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JOÃO ARAUJO

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