A HISTÓRIA DAS VIOLAS EM QUATRO PERÍODOS

“[…] chegamos à conclusão de que a guitarra italiana, guitarra espanhola, guitarra francesa, viola portuguesa, viola brasileira foram nomes diferentes de um mesmo instrumento.”

[Theodoro Nogueira, Anotações para um estudo sobre a viola, jornal A Gazeta, 24 de agosto de 1963] 

Viola, Saúde e Paz!

Não fomos os primeiros a intuir que as violas dedilhadas de fato não existiriam, no início (teriam sido primeiro apenas um nome que italianos e depois portugueses utilizavam para outros instrumentos já existentes). Além do destaque da abertura, de 1963, entre alguns poucos outros, por exemplo, em 1985 o português Manuel Morais já teria apontado em seu artigo A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789) que “[…] desde meados do século XV a inícios do XIX o vocábulo Viola é empregue como nome genérico de uma família de instrumentos de corda com braço”. O que é difícil de aceitar é a curiosa “classificação abrangente” apontada a seguir pelo estudioso, onde instrumentos dedilhados e outros tocados por arco, com armações de cordas, formatos e nomes diferentes, pudessem ter sido todos “violas”… Se for, podemos afirmar que seria uma forma de classificação única na História dos Cordofones ocidentais. A conclusão é que apenas o nome, este sim, seria aplicável a todos: mas seriam instrumentos diferentes que, conforme o português mesmo aponta e lista, teriam outros nomes e características próprias, o que “violas” não teriam, porque na verdade não existiriam. Entretanto, não observamos ninguém antes de nós que tivesse a coragem de afirmar o que os fatos e contextos demonstram.

A nós cabe, portanto, a primazia em afirmar com atrevimento: “na verdade, não existiriam violas, só instrumentos diferentes, todos chamados de violas”. Não apenas afirmar, mas desenvolvemos e atestamos por centenas de registros e por contextos histórico-sociais. Isso por sermos melhores pesquisadores? De forma alguma, e muito longe disso. É porque seguimos um caminho científico diferente, bem amplo, com paralelos a outras áreas da Ciência além da Musicologia (como História, Sociologia, Linguística e outras), e ainda, com destaque, um aprofundado estudo sobre nomes de instrumentos, em fontes e estudos nas principais línguas europeias desde o latim do século II aC. Que saibamos, nunca tinha sido feito assim antes (e por isso fazemos).

Percebemos inclusive que pouquíssimos estudiosos teriam dado mais atenção às violas dedilhadas, a não ser alguns portugueses e brasileiros, e estudos sobre as vihuelas espanholas, estas que teriam caído em desuso a partir do século XVII.

Por nossa inovadora maneira de investigar, inclusive, não admiramos que nossos apontamentos não sejam muito considerados ainda nos dias atuais, embora tenham profundo embasamento científico. Afinal, são séculos de análises feitas antes e por estudiosos mais famosos que nós: é normal que demore algum tempo até que sejamos entendidos, checados e reconhecidos. Estimamos que levará, talvez, uns 50 anos até que nossos apontamentos sejam melhor considerados, ou seja: nossa monografia, o livro A Chave do Baú, os artigos e estes Brevis Articulus aqui seriam provavelmente destinados de fato a quem nos lerá no futuro, quando infelizmente não teremos a oportunidade de esclarecer dúvidas, corrigir possíveis equívocos nossos e colaborar mais para o avanço da Ciência. Paciência, cest la vie, shit hapens

Em termos da História das violas dedilhadas portuguesas e brasileiras, o que a maioria dos estudiosos aponta é um equivocado e aparentemente óbvio “bilinguismo português”, ou seja, que os portugueses simplesmente utilizariam um nome diferente, uma espécie de simples tradução (por exemplo, usar “viola” ao invés de vihuela). Ainda assim, um nome diferente não comprova que instrumentos seriam diferentes: seria necessário apontar características diferentes entre eles. Assim como, um nome igual não comprova que os instrumentos sejam iguais, como é o caso das “violas” de arco e as “violas” dedilhadas. O fato é que não seriam conhecidas características diferenciadoras nas “violas dedilhadas” até pelo menos meados do século XVIII. Assim, até o próprio bilinguismo atesta que não haveria instrumentos diferentes, apenas nomes diferentes.

Em nosso desenvolvimento observamos que teria na verdade havido, pelos portugueses, uma ação patriótica (ou nacionalista), popular e tácita, corroborada por registros e por um contexto histórico-social de notório conhecimento público, que são disputas ou rivalidades entre portugueses e invasores mouros, além de entre portugueses e espanhóis.

Por não ter sido apresentado sob esta visão antes, cabe a nós também a primazia em pontuar quatro momentos históricos, desde a origem da utilização do termo “viola” como genérico para cordofones, em Portugal, até os dias atuais. É o que fizemos na monografia, em linguagem acadêmica, e que tentaremos “traduzir” aqui neste Brevis Articulus.

 

PERÍODO 1 (entre meados do século XV até fins do século XVI): as “violas dedilhadas” ainda não existiriam, e sim instrumentos chamados de “viola” pelos portugueses.

Seu início é estimado ao ano de 1455, data do mais remoto registro conhecido de “violas”, que teria sido apontado pelo militar português Brito Rebelo (1830-1920), em seu livro Curiosidades Musicais – um guitarreiro do século XV. Não teríamos tido acesso ainda ao original, mas confiamos nas citações dos portugueses Ernesto Veiga de Oliveira (livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses, ano 2000, ver páginas 163 e 164) e Manoel Morais (já citado artigo A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789), de 1985, ver página 397); além dos secundamentos feitos nas décadas seguintes por grandes pesquisadores brasileiros como Paulo Castagna (dissertação Fontes bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII, 1991, ver página 221); José Ramos Tinhorão (livro História Social da Música Popular Brasileira, 1998, ver páginas 26-27) e Rogério Budasz (livro A Música no tempo de Gregório de Mattos, 2004, ver página 09).

Todos estes estudiosos, além de outros, apontaram que teriam existido “violas dedilhadas” em Portugal desde o século XV, mas nenhum deles foi capaz de apontar diferenças entre aquelas possíveis “violas” e outros instrumentos existentes. Outros instrumentos bem investigados e descritos até por eles mesmos, que seriam alaúdes (de caixas periformes) e cinturados de caixas com fundos paralelos, a saber: guitarras espanholas de quatro ordens, vihuelas de seis ordens e depois as guitarras também espanholas, chamadas hoje “barrocas”, com cinco ordens de cordas. Além, naturalmente, das violas de arco, bem diferentes pela maneira de serem tocadas. Não é curioso que para todos os demais instrumentos sejam apontadas classificações claras, a partir de diferentes nomes e características, mas das supostas “violas dedilhadas” não haveria nenhuma característica diferenciatória, exclusiva, a não ser o nome? Não é curioso que só as “violas” teriam as mesmas características de todos os demais instrumentos da época?

Que “violas” teriam sido aquelas? Nós respondemos sem medo: nenhuma! Haveria apenas o nome “viola”, nome que de fato já existiria desde o século XII conforme registros em latim, occitano, catalão e até em espanhol (ver detalhes em nosso artigo Chronology of Violas according to Researchers). Assim como as vihuelas espanholas, “viola” era nome utilizado tanto para friccionados por arco quanto dedilhados, basta ver métodos como os de Fuenllana (1554), Bermudo (1555), Amat (1596) e Cerone (1613). No território italiano também haveria registros assim, desde aproximadamente 1486 (ver Tinctoris, De Inventione et usu musicae). A bivalência de nome para dedilhados e friccionados por arco se encerraria a partir do século XVII por todo o território europeu, só seguindo até os dias atuais por causa dos portugueses, que optaram por mantê-la. Observe como o comportamento português é sempre diferente!

Portugueses simplesmente teriam optado por utilizar o nome “italiano” (ou latino) “viola” para evitar nomes espanhóis como vihuela e guitarra, e até árabes como alaúde. Isso, por contextos histórico-sociais claros de disputa, de rivalidade. Entre as dezenas de evidências deste peculiar comportamento português, destacamos que eles utilizariam nomes como “violas grandes” e “violas pequenas”, enquanto outros povos diferenciariam muito bem vihuelas e alaúdes (maiores, com mais cordas) das primeiras guitarras (menores e com menos cordas). Neste particular, jamais interpretaríamos a padronização do nome como falta de acuidade intelectual de um povo que teria sido o primeiro a se levantar como Reino Independente no território europeu: ao contrário, damos ênfase exatamente ao forte nacionalismo inato dos lusitanos. Particularmente? Achamos bonito e temos até inveja daquele senso de defesa da pátria português.

O término do primeiro período é estimado a 1596, com a decadência de registros de vihuelas e guitarras espanholas de quatro ordens de cordas, em função da ascensão da guitarra espanhola de cinco ordens (estes instrumentos todos que, para os portugueses, seriam “violas”). As hoje então chamadas “guitarras barrocas” dominariam a preferência no território europeu mais ou menos pelos dois séculos e meio que se seguiram, segundo, além dos estudos já citados, também outros importantes e isentos como a Encyclopedie de la Musique (na edição de 1920, volume 4, ver páginas 2023 a 2027).

PERÍODO 2 (entre o século XVII até a primeira metade do século XVIII) começariam a ser observadas duas características que no futuro viriam a distinguir as violas portuguesas de outros instrumentos: os usos de “cordas de arame” e de “ordens triplas de cordas”.

A gama de instrumentos diferentes chamados de “viola” pelos portugueses teria gradativamente se tornado menor, dada a já citada preferência pelas guitarras de cinco ordens de cordas, que teria trazido uma decadência, em registros, dos alaúdes, vihuelas e guitarras menores, de quatro ordens. A transferência do nome guitarra para instrumentos maiores e com mais cordas não caracterizaria na verdade o desaparecimento total dos anteriores, menores, que já teriam relativa fama pelo território europeu: na verdade, teria aberto a oportunidade para eles terem outros nomes consolidados. Em Portugal, as chamadas “violas pequenas”, “machetes” ou “machinhos”, depois, com o passar do tempo, também seriam identificadas por “braguinha”, “rajão”, e, mais no futuro ainda, até o “cavaquinho” e o “ukulelê” hawaiano.

No Brasil, “violas pequenas” teriam mais remoto registro conhecido na Lista dos itens musicais encontrados no Registro dos Generos de varias fazendas que se despachaò nesta Alfandega do Rio de Janeiro – ano de 1700, segundo Mayra Cristina Pereira (tese A Circulação de Instrumentos Musicais no Rio de Janeiro, 2013, p.127). Cá como lá, logo depois se observam registros de “machinhos” e “machetes”, mas não os demais, sendo que o nome “cavaquinho” só teria sido utilizado aqui bem depois de ter surgido em Portugal, causando aqui, diferente de lá, o surgimento de dois instrumentos diferentes: o cavaquinho (4 cordas simples) e as Violas Machetes (10 cordas em 5 ordens).

Gradativamente, duas características teriam começado a surgir especificamente em violas portuguesas: a utilização de trios de cordas (em duas das cinco ordens) e a utilização de arame ao invés de tripa, embora cordas de arame já fossem utilizadas em cordofones europeus há algum tempo. Observa-se que ordens com trios de cordas (sem citação ao material delas) foram citadas no método Liçam Instrumental creditado a João Leite Pita Rocha (1752, ver página 2) e violas com dois trios de cordas, e indicações de que cordas de arame dariam menos despesa e seriam mais duráveis, apareceriam no método Nova Arte de Tocar Viola, de Manuel da Paixão Ribeiro (1789, ver página 6). Estes dois métodos são largamente apontados por estudiosos, porém sem que indiquem ter percebido que aquelas teriam sido as primeiras características de “violas” que seriam fisicamente distinguíveis de guitarras. Entre estes grandes pesquisadores, por décadas, podemos apontar: Paulo Castagna (1992, p.2), Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.158-161) e Júnior da Violla (2020, p.19 a 25).

Quanto à utilização de arame, cordas metálicas já seriam utilizadas desde o século XVII nas chamadas chitarras italianas, de cinco ou seis ordens, segundo Tyler & Sparks (The Guitar and its Music, 2002, ver páginas 199 a 210) e Darryl Martin (artigo The early wire-strung guitar, 2006, página 125).

No Brasil não foram observados muitos detalhes dos instrumentos chamados de “viola” neste período, mas pode-se apontar terem existido pelo menos dois tamanhos: “violas” e “machetes”, estas últimas que teriam sido menores e predominariam entre afrodescendentes. Podemos também apontar o reflexo históricos das ordens triplas metálicas em Violas de Queluz remanescentes (as mais antigas, que apresentariam 12 cravelhas, mesmo que armassem com apenas cinco pares de cordas) e também nas Violas Nordestinas dos repentes, que ainda utilizam uma ordem tripla de cordas.

O período se destaca porque os portugueses ainda continuariam chamando de “viola” as guitarras de cinco ordens com cordas de tripa, então, existiriam “violas portuguesas” (com pequenas diferenças), mas existiriam ainda guitarras “chamadas de viola”. É um período de transição para a História das violas.

 

PERÍODO 3 (entre meados do século XVIII e início do século XIX): violas evoluiriam finalmente para instrumentos diferenciáveis das guitarras, porque a nomenclatura guitarra teria tido seu uso alterado novamente pelos espanhóis, passando a ser aplicada para instrumentos com a armação 6×6 (6 cordas em 6 ordens, o chamado “violão”).

Ao fim deste outro período de transição, a ascensão do “violão” teria proporcionado a caída em desuso de guitarras de cinco ordens (pelo menos, é assim que estudiosos apontam). Entretanto, aquele instrumento (que também era chamado de “viola” pelos portugueses), não teria desaparecido, apenas teria continuado a ser chamado de “viola”: cinco ordens duplas aparecem até os dias atuais, entre os modelos mais conhecidos de violas, tanto em Portugal quanto no Brasil. É uma grande lição histórica dos instrumentos populares: eles guardam consigo resquícios, que são verdadeiras atestações das comoções sociais a que foram submetidos pelos séculos.   

Sobre a fase de transição (das guitarras de cinco ordens até a consolidação do violão, de seis ordens), diferente de outros estudos, preferimos estimar pelo cruzamento e somatória de várias fontes:

– entre aproximadamente 1752 e 1764 teriam sido publicados em Madrid dois métodos citando vandolas de seis ordens: um por Pablo Minguet (conferimos edição de 1754) e outro por Andrés de Sotos (conferimos a edição de 1764). As datas foram analisadas, entre outras fontes, também na Encyclopédie de la Musique (1920, v.4, p.2025). Consideramos a questão do nome vandola para instrumentos de seis ordens, citado desde Amat (1596), como pouco aprofundada em estudos e talvez ainda mereça um artigo específico; mas neste caso, o fato é que são apontamentos sobre instrumentos de seis ordens que por mais de um século não se conheceriam outras citações;

– em 1760, anúncio do jornal Diario Noticioso Universal, de Madrid, apontaria a venda de uma “vihuela de 6 órdenes”, do luthier Granadino (?-?), segundo Tyler & Sparks (2002, p.195). Nos próximos anos haveria outros, mas destacamos este porque o nome vihuela não teria sido observado em registros desde antes de 1596, conforme já citamos;

– entre 1770 e 1780 seria um período estimado do surgimento do violão bastante apontado por estudiosos, com apontamento equivocado de origem francesa ou italiana. Observamos estes apontamentos desde o artigo Stalking the oldest six-string guitar do estadunidense Thomas F. Heck (1943-2021), escrito entre 1972 e 1974. Ao fim do próprio artigo, entretanto, o pesquisador apontou dúvidas sobre as alegadas procedências (mas não quanto às datas de fontes que consultou). Quem, entretanto, acompanhasse a peculiar preferência e modo de utilização do termo guitarra pelos espanhóis, desde o século XIV, não teria qualquer dúvida da origem do “violão” (ou “nova guitarra”, que seria a terceira de uma série);

– de 1773 a 1787 seriam os três possivelmente mais antigos violões remanescentes encontrados em museus europeus segundo Márcia Taborda (tese Violão e Identidade Nacional, de 2004, ver página 47), que checamos e confirmamos;

Paralelo a estas citações, há ainda declarações feitas no método Principios para tocar la guitarra de seis órdenes, do compositor italiano Federico Moretti (1769-1839), que apontou que em 1799 seriam utilizadas seis ordens na Espanha e que na Itália, em 1792, ainda não se utilizariam seis, apenas cinco ordens (menos por ele próprio, que desde 1787 já tocaria com sete ordens simples).

De todas estas informações e mais algumas, concluímos que as seis ordens teriam gradativamente voltado ao inconsciente coletivo europeu, a partir dos espanhóis, após estes mesmos terem lançado as guitarras cinco ordens com sucesso por mais de um século, comprovável por diversos métodos publicados em inglês, italiano, alemão, francês. A ação de “mudar guitarras que estavam dando certo” pode parecer ter sido aleatória ou equivocada, a princípio, mas chamamos a atenção mais uma vez ao contexto histórico-social: estariam em pleno desenvolvimento as fases da Revolução Industrial, com a nova ideia de produção e venda em série. Instrumentos musicais, assim como outros produtos, significariam atrair divisas a quem os produzisse melhor, em primazia, com características únicas e exclusivas.

Um capítulo da fase de transição (que iria de fato até o início do século XIX) nos apontou a ênfase ao ano de 1799 das guitarras 12×6, que alguns estudiosos chamam de “guitarras clássico-românticas”, como, entre outros, Paulo César Veríssimo Romão (1799, O Ano dos Métodos para Guitarra de Seis Ordens, 2011, p.2). Aquelas guitarras “intermediárias” (vez depois também engolidas pela preferência pelo violão), teriam originado “violas portuguesas” iguais, que não sobreviveriam lá até os dias atuais, mas que no Brasil surgiriam como o atual modelo Viola de 12 Cordas da Família das Violas Brasileiras. As atestações mais remotas aqui são só da década de 1920, por fotos e um instrumento sobrevivente que teria sido utilizado pela dupla Mandy & Sorocabinha, segundo Júnior da Violla (As seis ordens de uma ilustre desconhecida, 2020, p.68); mas é preciso considerar que vários registros escritos desde o século XIX apontariam simplesmente “violas de 12 cordas”, o que não atesta nem descomprova se teriam sido de cinco ou de seis ordens.

Em coerência com a ação patriótica que já vinha sendo executada desde o século XV, os portugueses também não chamariam as novas guitarras pelo nome correto, pois o nome continuaria remetendo, e então mais ainda, aos espanhóis. O procedimento é bastante similar ao que aconteceu antes com machinhos e machetes: quando espanhóis deixam de chamar o instrumento de “guitarra”, eles seguem recebendo outros nomes. Já as novas guitarras espanholas, as nomenclaturas mais adotadas pelos portugueses (até os dias atuais) seriam “viola francesa” e “violão” (claramente derivadas da nomenclatura “viola”, já utilizada para as guitarras antigas). Ressalta-se que não há evidência concreta de origem do violão a partir da França, e sim, pelo apelido surgido, uma continuação da ação de rejeição nacionalista portuguesa. Mesmo o termo “guitarra francesa”, apontado por alguns estudiosos como tendo sido bastante utilizado, só observamos uma vez citado por portugueses já no século XX, por Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.214); e, no Brasil, apenas 20 citações do nome “guitarra francesa” entre 1810 e 1849, em milhares de fontes pesquisadas, como periódicos (jornais e revistas).

No Brasil, em confirmação de que a nomenclatura patriótica era de fundamentação portuguesa, não nossa, entre as décadas de 1810 e 1830 observou-se que “guitarra” teria sido o nome de cordofone mais citado, com larga vantagem aos demais; só a partir de 1818 teriam começado a surgir os primeiros registros de “viola francesa”, “guitarra francesa” e “violão”, segundo dados disponíveis na Biblioteca Digital Nacional. A década de 1840 é apontada como de evidência da consolidação do violão no Brasil também por outros estudos: em análises de anúncios de aulas de música, por Carlos Eduardo Azevedo e Souza (tese Dimensões da vida musical no Rio de Janeiro, 2003, p.289) e estudos de romances por Renato Castro (artigo Musical artefacts in literary texts, 2015, p.39).

Neste período também teriam começado a surgir os registros de “sobrenomes”, alguns deles que se consolidariam depois nos modelos hoje vigentes: “Machete” e “12 Cordas” foram observados a partir de 1827; “Viola de Cocho”, entre 1851 e 1868; “viola sertaneja”, a partir de 1870; “viola cabocla”, 1876; “Viola de Queluz”, 1884.

No início do século XIX talvez pudesse ter sido alcançada certa “vitória” da ação de resistência portuguesa expressa pela nomenclatura nacionalista: eles teriam, finalmente, instrumentos de verdade (e não apenas um nome) para representá-los, exato na mesma época de consolidação do pensamento capitalista geral. Entretanto, não é o que registros apontam, conforme relataram, entre outros, os já citados Manuel da Paixão Ribeiro (1789, p.2) e Veiga de Oliveira (2000[1964], p.165).

Se as violas já estariam em decadência no tempo de Paixão Ribeiro, mais ainda com o crescimento do violão… mas não na Colônia, tornada independente a partir de 1822: aqui haveria muitas violas, conforme já dito, com destaque pelas tocadas por pretos. E portugueses saberiam disso, pois por lá já fariam sucesso, na mesma época, pretos violeiros exímios como Domingos Caldas e Joaquim Manoel.

Daí se observa, em contraponto, que o instrumento que Portugal viria a adotar como representativo cultural junto ao resto do mundo (e com vistas a busca de divisas) acabaria sendo a chamada “guitarra portuguesa”, e exato a partir do início do século XIX. Faz parte do contexto histórico-social uma aproximação com a Inglaterra feita por D. Pedro I, desde ações pela Independência do Brasil em 1822. Esta aproximação teria sido levada a Portugal após a vitória dele na Guerra dos Dois Irmãos, em 1834, exatamente quando é estimado o início da fabricação das “guitarras portuguesas” por lá (embora já existissem antes), “guitarras” então praticamente iguais à english guitar ou “guitarra inglesa” (OLIVEIRA, 2000[1964], p.197).

Com referência a este outro instrumento, de caixa arredondada e armando com seis ordens duplas de cordas metálicas, o nome “guitarra” é observado frequentemente em registros feitos por portugueses, diferentemente do tratamento dado às antigas guitarras cuja nomenclatura praticamente não se observa desde o século XV. Por serem instrumentos de caixas muito diferentes, atesta-se também a rejeição portuguesa ao uso do nome guitarra para seus cinturados preferidos até então, as chamadas “violas”. Os nomes germânicos gitar, gittern e antes cittern, também traduzidos como guitarra, viriam de uma bifurcação por caminho diferente do das línguas latinas, mas todos teriam vindo primordialmente partir da cithara latina, kithara grega e kethara assíria. Duas curiosidades: portugueses aceitariam a versão “cithara” para suas violas, mas não “guitarra”, segundo Rafael Bluteau (1720, v.8, p.508); e pelo menos um estudioso, Nuno Cristo (Em defesa da Cithara lusitânica, 2021) defende que a “guitarra portuguesa” teria vindo de cítaras desde o século XVI, embora não haja registros continuados conhecidos por lá, enquanto a citada aproximação com a Inglaterra e o caminho de registros de nomes citados sejam notórios. Ou seja, mais uma vez se atesta visões diferentes por portugueses.

Mesmo com a preferência pelo violão e ainda que tenha tido menor evidência em alguns centros, violas foram registradas na maioria das regiões brasileiras, tocando repertórios diversificados, com destaque aos pretos (cantigas e temas dançantes em batuques, em desfiles, dentro e fora das igrejas, etc.). Inclusive no maior polo comercial do século XVIII, surgido em função do Ciclo do Ouro, a cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto), em Minas Gerais (CASTAGNA & SOUZA & PEREIRA, 2008) e em capitais como o próprio Rio de Janeiro (segundo a já citada Mayra Pereira, 2013). Não se atestam, portanto, equivocadas alegações de que “a viola teria migrado para o interior do Brasil”, que são colocações oportunas para a defesa de um suposto caipirismo ancestral, que igualmente não se atesta por registros de época, mas que é entendimento coletivo ainda defendido por muitos pesquisadores e outros fiéis.

 

PERÍODO 4 (entre o início do século XX e o início do século XXI): a grande expansão de um modelo de viola no Brasil.

Surgiu, gradativamente, o modelo mais conhecido e de maior evidência nos dias atuais, consolidado hoje pelo nome Viola Caipira. Registros apontam, entretanto, que até a década de 1970, além das nomenclaturas dos demais modelos, que citamos no período anterior, a nomenclatura mais empregada era simplesmente “viola”, com registros também de “viola paulista”, “viola sertaneja”, “viola cabocla” e “viola brasileira”, para modelos com pequenas diferenças. Com processo de fabricação similar ao de guitarras, desenvolvido na grande capital São Paulo por imigrantes como Del Vecchio e Giannini a partir de 1900, o modelo não apresenta semelhança aos modelos artesanais preexistentes, inclusive os chamados de “viola paulista”, que seriam os mais relacionados ao caipirismo. Definitivo entendimento a respeito, embora desprezado ou não entendido corretamente por diversos estudiosos adeptos ao caipirismo, é indicado em pesquisa de campo da década de 1950 feita por Alceu Maynard de Araújo (ver compilação de artigos A Viola Cabocla, 1964). Entender que, por ter-se consolidado com o nome Viola Caipira este modelo teria sido o ancestral, ou único, é um equívoco talvez só explicável por motivações financeiras e/ou de crença popular.  

As violas tiveram grande salto de popularidade com os registros em discos, a partir de 1929, graças a Cornélio Pires, este apontado por dezenas de estudos, lembrando que entre aquelas haveria Violas 12 Cordas.  Após meados da década de 1970, então, após início de uso maciço do nome pela gravadora de Tião Carreiro, o modelo Viola Caipira foi crescendo em número de adeptos e de potencial econômico, com tudo o está relacionado ao capitalismo vigente no país já desde àquela época, como fabricação em série, avanços tecnológicos, ações de marketing e investimento de empresas. Coerente com o caipirismo, cujos produtos (livros, discos, shows) já tinham provado ser de bom atrativo comercial.

Já a partir de 2015 (talvez, num possível novo período surgindo?), uma cadeia de acontecimentos vem apontando novas perspectivas das violas no Brasil, com a correta ampliação de visão para além apenas do modelo Viola Caipira:

– em 2015 e 2016, o Projeto SESC Sonora Brasil levou mais de 500 apresentações de vários modelos da Família das Violas Brasileiras nas cinco regiões do Brasil, colaborando para a consolidação da diversidade e dos próprios modelos, individualmente, segundo por exemplo Roberto Corrêa (artigo Cinco ordens de cordas dedilhadas, 2015) e Denis Rilk Malaquias (Música Caipira de Concerto, 2019, p.46);

– a proposição em Minas Gerais, e depois em âmbito nacional, pelo reconhecimento oficial da viola como Forma de Expressão válida aos registros em Livros de Patrimônio Imaterial, que temos a honra de ter introduzido nos anos de 2015 em Minas e em 2017 no Iphan Nacional;

– artigos acadêmicos de estudiosos importantes, como os já citados Roberto Corrêa (As Violas do Brasil, 2017) e Paulo Castagna (Viola Brasileira, 2017).

 Os demais modelos além da Viola Caipira, a saber: Brancas (“Fandangueira” e “Caiçara”), Buriti, Cabaça, Cocho, Machête, Nordestinas e 12 cordas continuam a sobreviver, com atrativo comercial e reconhecimento público menor, mas representando a verdadeira abrangência da história das violas. Estas chegam aos dias atuais com possíveis indícios de uma nova fase histórica, quando se espera será mais considerada, estudada, preservada e reconhecida toda a Família das Violas Brasileiras. Esta nova fase deverá ser apontada no futuro a partir desta postulação científica apresentada por João Araújo, em 2021 (monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil)… Mas aí já são outras prosas.

Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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