Batuques, Lundus, Modinhas e Violas Pretas: mais um olhar.

“A pesquisa (quaerere, em latim) sempre foi e sempre será (re)questionar, (re)perguntar, ‘reduvidar’: olhar para o passado requer extremo cuidado e revisões ad infinitum, pois a influência do presente é forte e traicoeira!”   

(João Araújo)

Considerados por nós equívocos não pouco graves, o que mais observamos em pesquisas são tentativas de ver o passado utilizando conceitos do presente. A fim de minimizar o problema de que somos seres humanos, mortais e falíveis, tentamos aplicar atentamente conceitos científicos como: observar o máximo de “fenômenos circundantes” ao objeto de estudo (dica atribuída ao grego Platão); com a ampliação de tipos de fontes e de ciências, aplicar também bases estatísticas; e procurar não afirmar quase nada – ou, no máximo, dizer “é o que se pode afirmar com base nos registros estudados até o momento” – pois entendemos que a ciência séria e honesta sempre tenderá a “requestionar”, a reanalisar dados, a repensar e confrontar teorias.

Na busca por equilibrar a musicologia com a história, sociologia e outras ciências, em fontes e estudos pelo menos das línguas europeias mais conhecidas, aplicamos (atrevidamente) esta metodologia inclusive em nomes de instrumentos e conceitos que os circundam, pelos séculos. No caso da língua portuguesa, desde raízes em grego (quando conseguimos traduções confiáveis, posto que sequer conseguimos ler fluentemente no idioma), passando pelo latim, occitano, catalão e influências e paralelos históricos com/de outras línguas europeias (dependendo sempre da época de registros atestados).

            Dito isso, recentemente tivemos uma agradável e renovadora troca científica pelas redes sociais virtuais (sim, existe vida inteligente nas redes!): por já termos dissecado o excelente trabalho de doutoramento (cujas precisas fontes relacionadas a violas pudemos todas rastrear, e por isso recomendamos a leitura), nos atrevemos a “questionar” (ou “requestionar”) publicamente uma postagem do professor Rubens Russomanno Ricciardi, da USP – e, confessamos, sem esperança de ter dele muita atenção, pois somos nada, senão um curioso tarado por leitura e reflexão – inclusive, e sobretudo, academicamente, somos nada.

Foi-nos, entretanto, gratíssima surpresa a generosidade deste grandíssimo pesquisador em trocar várias ideias e informações conosco. É fato notório que vários assim considerados “grandes pesquisadores” ligados às violas dedilhadas (muito mais comprometidos afetivamente ao caipirismo, entretanto) vem ignorando nossas descobertas e “requestionamentos” (se não existia, agora pedimos licença em inventarmos este termo, “requestionar” – está a nos perseguir neste texto!). O que não é inventado, nem novo, é que a afetividade pelo entendimento coletivo chamado “caipirismo” (ou outras motivações, talvez?) vem há cerca de um século a tornar alguns olhares científicos “bastante seletivos” (por assim dizer, para não ser deselegante com pesquisadores aos quais admiramos e com os quais não podemos negar que sempre aprerdemos muito). O requestionar, sobretudo por chatos embasados em citações de referências de época e metodologias científicas como nós, é reprimido sistematicamete via bloqueios ou simplesmente ignorado.

            Não foi o caso, de forma alguma, do professor Ricciardi: dele, a paciência (benevolência, magnitude, etc.) só podemos entender ser fruto de um altíssimo compromisso com a ciência, possivelmente aliado a uma grande experiência no trato com alunos chatos, atrevidos, “que se acham” – mesmo assim, superlativa, pois sequer estamos à altura de sermos aluno dele. O que interessa é que ele nos motivou a dar mais uma olhada – um pequeno profundamento a mais nos estudos e dados sobre as modinhas, “lunduns” (como gosta de grafar o professor), batuques e similares; aprofundamento que é dos principais objetivos desta coluna, a partir das citações, como é o caso, em nosso livro “A Chave do Baú”.

            Outra confissão precisamos fazer: é grande a nossa preguiça em reavaliar estudos sobre as modinhas… Há dezenas de publicações, porém a maioria feita por pessoas que, embora sérias e dedicadas, cometem equívocos básicos, como tratar como cavaquinho ou violão o instrumento do grande e indubitavelmente VIOLEIRO Domingos Caldas Barbosa (ca.1738-1800). Quem comete tais tipos de equívocos, lamentamos dizer, não parece se preocupar nem um pouco em pensar o final do século XVIII como diferente do que só se constata possível bem depois – e são, como dissemos, dezenas deles. Já passamos por este martírio algumas vezes…

Constatamos, entretanto, que não é nem de longe este o caso do professor Ricciardi: extremamente muito mais motivador, entendemos tratar-se de um dos mais sérios e aprofundados estudiosos sobre este e outros assuntos musicológicos. Além da generosidade e compromisso com a ciência, aceitando sem problemas requestionamentos públicos, destacamos uma característica que consideramos importantíssima (e, infelizmente, muito rara entre estudiosos): é nítido que o professor Ricciardi não se ancora para sempre em descobertas já feitas. A partir do seu citado doutoramento, do ano 2000 – Manuel Dias de Oliveira: um compositor brasileiro dos tempos coloniais – partituras e documentos -,vem fazendo aprimoramentos e aprofundamentos, compartilhados em várias publicações, das quais destacamos (como referência mínima de leitura) seu livro Música Popular Brasileira Antiga, volumes I e II, de 2015 (disponível gratuitamente pela internet): é uma seleção de estudos feitos até aquela época, mas o (realmente) grande pesquisador não parou (e parece, nunca vai parar). De fato, torcemos que não pare, pois é sem dúvida “dos imprescindíveis”, como diria Bertolt Brecht.

Embora acreditemos que pesquisadores são como goleiros – só podemos elogiar após o apito final – ainda precisamos apontar mais uma qualidade importantíssima, que destaca o professor Ricciardi da maioria: é instrumentista, maestro e arranjador orquestral. Ah… como são desprezadas estas qualidades em análises de estudos musicológicos… e quanta diferença de visão somada elas fazem!

Mas… (e, naturalmente, este “mas” já era esperado), precisamos a este ponto vestir o personagem memento mori (saudação de antigos padres) ou hominem te memento, atribuído a antigos escravos romanos – ambas as expressões que servem para lembrar que, apesar de tudo, continuavam (e continuamos, todos) sendo humanos, mortais. Naturalmente, não nos atrevemos a desmentir o (agora) ídolo nosso, que esperamos que continue a ser paciente conosco após esta publicação – mas nos atrevemos, sim, a questionar algumas de suas colocações.

Não cabe aqui, nem estamos a fim de ir muito a fundo: tivéssemos onde publicar artigos científicos a serem antes revisados por cientistas, até poderíamos tentar fazê-lo. Abordaremos apenas alguns detalhes, especificamente quanto ao capítulo “Grande Lundum editado por Edward Laemmert no Rio de Janeiro – o gênero popular brasileiro entre o batuque e o samba”, do citado livro do professor Ricciardi, de 2015. Neste capítulo há desenvolvimento muito bem detalhado e embasado sobre diferenças entre batuque, lundum e modinha – ao qual, entretanto, observamos alguns requestionamentos (já agora não mais conseguimos evitar este nosso termo inventado).

A primeira e mais importante questão vem de nossas principais descobertas e defesas: questionamos apontamentos de alguma possível “viola caipira” antes da década de 1970, como se fosse a única – e até a predecessora de todos os demais modelos atuais da Família das Violas Brasileiras (postulação inédita nossa, baseada em centenas de fontes que apresentamos em nossa monografia). Não entendemos que possam ser consideradas nem citadas como “violas caipiras” as “violas” registradas nos primeiros séculos por aqui. Entendemos ser este, possivelmente, um equívoco: olhar o modelo mais famoso e conhecido modernamente como se já existisse na antiguidade – principalmente antes do caipirismo proposto só a partir do século XX, sendo que o termo “caipira” já existiria desde o início do século XIX, sem nunca antes ter significado, nem de longe, uma “cultura”. Este é o entendimento coletivo hoje replicado, por influência principalmente de teorias sociológicas que não tem comprovação por registros de época.

Sobre a utilização de “guitarras” (chamadas de “violas” por portugueses e brasileiros) em batuques, pelo menos no início do século XIX pudemos observar (sempre em tradução nossa), entre outros registros:

– em 1806, o comerciante inglês Thomas Lindley (ca. 1772-?), à página 127 de seu Narrative of a Voyage to Brasil descreveu guitars na Bahia, em uma dança com movimentos sensuais a qual chamou negro dance e que seria, para ele, […] a mixture of the dances of Africa, and the fandangoes of Spain and Portugal (“uma mistura de danças africanas e fandangos espanhois e portugueses”);

– entre 1809 e 1815, o português Henry Koster – “Henrique da Costa” (1793-1820), à página 241 de seu livro Travels in Brazil (edição em inglês que conseguimos acesso), detalhes de uma dança de “escravos de cor”, no nordeste do Brasil, com lascivious attitudes (atitudes lascivas) e cantos que conteriam indecent allusions (“alusões indecentes”), conduzidos por um guitar player (“guitarrista”);

– entre 1814 e 1815, o naturalista alemão Georg Wilhelm Freyreiss (1789-1825), à página 542 de seu Reisen in Brasilien (“Viagem ao Brasil”) citou Guitarre (em alemão) para instrumentos usados na dança que chamou de Batuca, em Minas Gerais;

– entre 1815 e 1817, o etnólogo alemão Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied (1782-1867), à página 91 de seu livro Travels in Brazil (novamente, só conseguimos a edição em inglês), chegou a registrar literalmente o termo “viola” ao lado de guitar, em duas descrições de baduccas, reuniões presenciadas no Rio de Janeiro;

– em 1819, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), à página 60 do segundo volume de seu Voyage aux sources du Rio de S. Francisco et dans la province de Goyaz também registrou o nome “viola” ao lado de guitare (em francês), que teriam sido vistas em Minas Gerais – além da interessante narrativa de uso do mesmo tipo de instrumento para a complainte (“lamentosa”) modinha e em seguida para o obscene batuque (os dois últimos termos sublinhados, grafados em bom português);

– em 1823, o militar português Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839), à página 37 de seu Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas províncias de Minas Gerais e Goiaz, apontaria excelente noção sobre instrumentos tocados por vadios em batuques em Minas Gerais, ao chamar os instrumentos de “[…] machete, bandurra ou viola”.

Como se observa pela pequena amostragem acima (há muitas mais em nossa monografia), pessoas de diversas nacionalidades narraram, com detalhes bastante similares, fatos observados em diversas regiões do Brasil. A nós se torna difícil entender, portanto, que nos batuques houvesse apenas kalimbas (sequer citadas nestas e várias outras fontes) – pelo menos, naquele período, do qual há bom número de registros.

Sobre instrumentos utilizados por pretos à época, já destacamos antes aqui, em outro brevis articulus, a narrativa do pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848), às páginas 128 e 129 do segundo volume de seu livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil: marimba (hoje conhecida também como kalimba); viole d’Angola, espèce de lyre à quatre cordes (“Viola de Angola, espécie de lira de quatro cordas”); violon (“violino” de uma corda, cujo corpo seria um côco atravessado por uma vara, tocado por um pequeno arco) e oricongo (que pelas descrições e imagens seria o berimbau). Os instrumentos, citados também por outros exploradores estrangeiros à época, infelizmente não teriam sido todos registrados em pinturas / desenhos, que apontam mais kalimbas / marimbas – talvez daí o equívoco em pensar que estes instrumentos (e não as violas) predominassem nos batuques.

Aos dados muito bem apontados pelo maestro Ricciardi, consideramos importante acrescentar que os mais remotos registros que encontramos de “modinhas” transcritas em pauta, no Brasil, foram:

– em 1806, o médico e naturalista alemão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852), Cônsul da Rússia, durante expedição pela Vila de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina, fez o registro em pauta musical de uma Brasiliaansche Aria (“ária brasileira”, em holandês), à página 54 do livro Reis rondom de Wereld, in de Jaren 1803 tot 1807 (“Viagem ao Redor do Mundo de 1803 a 1807”). O viajante grafou em português, no alto da partitura, a palavra “modinha”, assim como a letra completa da música – mas sem apontar autor. Em 6/8, no tom de Fá maior ou Ré menor (clave de sol com um bemol), a pauta aponta, abaixo da parte da linha melódica do canto, uma parte de acompanhamento simples que poderia ser para piano (claves de Sol e de Dó). Em termos de descrição, encontramos apenas a afirmação “[…] Talvez uma ária brasileira seja mais agradável aos meus leitores do que uma simples descrição: portanto, não hesito em acrescentar uma aqui” (tradução nossa, *1) e a informação “[…] Os instrumentos musicais mais usados são a guitarra e o dulcimer” (também em tradução nossa, *2). É possível que o Langsdorff tenha identificado ao “dulcimer” (uma espécie de saltério cujas cordas sriam tocadas via golpes de palhetas) as tais kalimbas. Esta informação, entretanto, vem logo após apontamento de que os instrumentos eram utilizados em reuniões onde também se dançava e se contavam anedotas, que vem ao encontro de outras citações de uso dos mesmos instrumentos nos chamados batuques (que neste caso o alemão não citou nem descreveu em detalhes).

– entre 1820 e 1822, coleção de vinte peças que teriam sido compostas pelo VIOLEIRO Joaquim Manoel Gago da Câmara (ca.1771-ca.1738), transcritas para piano pelo compositor e pianista austríaco Sigismund von Neukomm (1778-1858), trazidas a conhecimento público pelo Dr. Marcelo Fagerlande (segundo seu artigo “Joaquim Manoel, improvisador de modinhas”, de 2005).

Sobre a não utilização dos nomes “batuque” e “lundum” (e/ou similares) antes do século XVIII, extremamente bem pontuada pelo professor Ricciardi, nos chama a atenção porém citações de “embigadas”, em poema sem título atribuído ao VIOLEIRO Gregório de Mattos (1636-1695) – Obras Poéticas, 1992 – numa dança que se chamaria, à época, “cãozinho”. “Cãozinho” seria um dos nomes de danças “à viola” daquela época coincidentes aos do século XVIII, além de “arromba”, “canário” e “guandu” – segundo o dicionarista inglês Rafael Bluteau (1638-1734) – Vocabulario Portuguez e Latino. Ou seja, sem os nomes mais “modernos”, descrições evidenciam similaridade das danças com viola desde o século XVI. Aliás, o que não faltam em poesias atribuídas a Gregório “Boca do Inferno” são narrativas sensuais sobre várias situações, incluindo diversas danças – mas o também sonetista, quando queria ser sério, teria aplicado em cantigas dolentes a sua “viola” (citada nas poesias também como “bandurra” e “guitarrilha”, mas nunca “de cabaça” – é sempre bom lembrar!).

O nosso “ponto” final é que, segundo a metodologia que aplicamos, nomes variam de significado com o passar dos anos, por vários fatores (sobretudo em línguas diferentes como as africanas e o português); não estar atento aos contextos históricos deles (tanto nomes quanto significados) pode talvez mascarar entendimentos mais modernos. É muito importante também considerar que a África é um continente, da qual habitantes de várias nações diferentes foram sequestrados (fato considerado, por exemplo, no trecho citado de Debret). Foram, portanto, vários dialetos africanos misturados: é plausível surgirem mais de um nome para as mesmas coisas.

São fenômenos circundantes aos nomes de instrumentos musicais (aos quais já apresentamos desenvolvimentos diversas vezes), os nomes de ritmos, danças e outros. À parte de nomenclaturas como calundu, lundu (ou lundum e similares), festejo, batuque, fandango, cantiga, moda e modinha – entre outras, pelos séculos, que podem ser oriundas de diversas línguas diferentes (nossa pesquisa não foi tão longe para detalhar), evidências são apontadas, num resumo, em atividades musicais típicas de pretos, escravizados presentes por praticamente todo o Brasil e que tocavam cordofones – entre outros instrumentos, mas não apenas “de batucada” (de percussão) para acompanhar cantos e danças. A posterior ligação do termo “batuque” às batucadas, consolidada hoje, também ajuda a entender equivocadamente que os pretos só tocassem instrumentos percussivos nos antigos (e originais) batuques. Debret teria observado muito bem as diversas tendências (bater de palmas, sons com a boca, canto improvisado entre outras), tendo inclusive ensaiado uma possível identificação das nações africanas diferentes representadas, segundo ele, por estas características musicais específicas – mas os escravizados não eram separados por nações, misturavam-se todos.

Há que se considerar que a partir dos registros mais remotos que se tem conhecimento, termos (nomes) hoje consolidados, oriundos de diversas línguas diferentes, teriam passado por fases de amadurecimento – de transição, com mistura entre várias línguas, e muita transmissão oral envolvida – até atingirem os atuais significados a eles atribuídos. É muito provável, por exemplo, que o que se citava como “modinha” em meados do século XVIII não fosse ainda, exatamente, o que veio a se tornar a partir do início do século XIX (quando, inclusive, a sociedade europeia passava por significativas mudanças sociais, por causa da Revolução Industrial).  

Nenhuma teoria é capaz de mudar o fato de que Domingos Caldas Barbosa, em 1798 ou 1799, no seu Viola de Lereno, não usou os termos “modinha” nem “lundum” para suas CANTIGAS (os dois termos são observados apenas na edição póstuma, de 1826) – e que durante todo o mesmo século XVIII, em diversas e abrangentes publicações, o já citado dicionarista Bluteau (considerado um dos mais importantes da época, em Lisboa) não citou “modinha” – apenas “moda”, porém como genérico a “qualquer canção tocada à viola ou ao cravo”. Pela cronologia dos registros, “moda” teria sido usado bem antes de “modinha”: “moda” continua tendo  o mesmo significado genérico popular até hoje – mas “modinha” é aplicado como o nome de um estilo, mais especificamente ligado a canções dolentes, lentas, melancólicas. Nem no passado, nem atualmente os dois termos apontam ter sido / serem “a mesma coisa”. Naturalmente, teorias podem tentar explicar/justificar estes fatos – é lícito e válido.

Entre diversas outras questões, porém, acrescentaríamos: mas afinal, onde raios Domingos Barbosa terá aprendido a tocar viola e a improvisar / criar versos como os de suas cantigas publicadas? Terá um preto nascido no Rio de Janeiro aproximadamente entre 1738 e 1740 visto tais coisas serem feitas? Terá havido outros pretos bons de viola e bons versadores na época dele? Partes desta mesma pergunta múltipla também caberiam sobre Joaquim Manoel Gago da Câmara, sobre Gregório e seu irmão Euzébio, e sobre o Padre Mestre Maurício Nunes (embora dos últimos três haja registros de quem os teriam ensinado viola: “mulatos”). Será coincidência ou amostra estatística terem existido e sobrevivido notícias destes pretos tão bons de viola, de música, de versos?   

Sobre variedade de termos, apontamos como exemplo os atuais entendimentos a respeito do termo “pagode”: sem contar o que significa fora do Brasil (como na Índia e outros países, onde é nome de templos), “pagode” referia-se desde antigamente, em Minas Gerais, a uma reunião para tocar, cantar e dançar (exatamente como os batuques); hoje, é alcunha também de ritmos: um ritmo de viola, criado por Tião Carreiro e, depois, passou a ser usado também como nome do samba mais comercial, do qual se diz ser possível “dançar um pagode” – que seria o mesmo que “sambar”.

Pelas evidências em dezenas de registros, “batuque” e “lundum” (entre outros nomes) também teriam tido entendimentos semelhantes, confundíveis e confundidos pelos tempos: tanto as reuniões (para cantar, dançar, “folguedar”), quanto os ritmos tocados e ainda as respectivas danças. E, apesar da posterior utilização (e desenvolvimento) também pelos brancos, tudo teria se originado (ou “sido criado”, ou “executado antes”) a partir dos afrodescendentes.

Pode-se dizer que não seria “música brasileira popular” porque seria oriunda diretamente da África, se há tantos registros de escravizados (como os chamados “barbeiros”, entre outros) adaptando-se, para tentar sobreviver um pouco melhor, a demandas musicais dos brancos, tanto dentro quanto fora das igrejas? Pode-se alegar (e provar) que o temperamento musical não estaria presente nas “violas” dos batuques do início do século XIX? Pode-se. Tudo pode. Só afirmamos (com as devidas ressalvas) que o assunto parece ainda não estar esgotado, e que ainda poderia haver crédito histórico a ser concedido aos geniais VIOLEIROS pretos brasileiros – que poderiam ser nossa verdadeira raiz musical – que chamamos, atrevida e arbitrariamente, de “violas pretas”.        

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

As principais fontes foram todas citadas durante o próprio texto.

No original:

*1: Misschien zal voor mijne lezers eene Brasiliaansche aria aangenamer zijn, dan eene kale beschrijving: ik aarzel daarom niet, er eene hiernevens te voegen.

*2: De gebruikelijkſte ſpeeltuigen zijn de guitar em het hakkebord.

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JOÃO ARAUJO

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