OLHANDO PELO LADO DAS GUITARRAS
Viola, Saúde e Paz!
Normalmente, tanto em nosso livro A Chave do Baú quanto aqui, nos Brevis Articulus, o foco é nas violas dedilhadas… Mas já tivemos que ampliar estas bases desde o início, vez que concluímos que o mais esclarecedor é estudar violas dedilhadas e friccionadas ao mesmo tempo. Não apenas pelo nome igual: suas histórias também estão interligadas desde que o nome surgiu, lá no século XII, embora a maioria dos estudiosos ocidentais ainda não teria percebido, desprezando as evidências de dedilhados nos registros (ver nosso artigo Chronology of Violas according to Researchers).
Também temos demonstrado, por meio de nossa metodologia (que soma à musicologia aspectos linguísticos, históricos, sociais e outros), que a origem das violas dedilhadas vem de uma peculiar ação nacionalista portuguesa, ao chamar de “violas” o que na verdade seriam outros instrumentos, e depois manter este nome e algumas poucas alterações a um formato abandonado pelos espanhóis a partir do início do século XIX para suas chamadas “guitarras barrocas”. Isto são prosas passadas e repassadas por aqui.
Outrossim, apontamos um curioso paralelo entre “guitarras e violas” desde cerca de 4000 anos atrás (!), a partir de variações próximas dos nomes e características organológicas. Por evidências que alargam bastante o antes observado principalmente por Curt Sachs (1940) apontamos que desde que os assírios resolveram renomear como kethara o tricordiano pan-tur, dos subjugados sumérios, os descendentes daqueles cordofones vêm paralelamente disputando espaços no Ocidente. Uma boa prosa passada, que é das primícias do rebanho de pioneirismos que já detalhamos por aqui.
As guitarras, portanto, também fazem parte da história das violas. Em alguns períodos, mais diretamente – em outros, um pouco mais afastadas, mas, sempre estiveram “ali por perto”, como um irmão ou primo com quem temos contato pela vida toda. Por isso, desta vez resolvemos trazer um aprofundamento um pouco maior sobre as “guitarras”, desde as origens até as hoje consolidadas com os nomes “violão”, guitarra elétrica e “guitarra” portuguesa (aspas em “violão” porque é um apelido português das guitarras espanholas; e as aspas na versão portuguesa, vamos deixar para explicar um pouco mais à frente aqui).
Dando apenas uma pincelada no começo do começo dos cordofones, os mais remotos registros escritos, sumérios e egípcios, indicam desde cerca de 6000 anos atrás a existência de vários tipos de cordofones, que podem ser listados como numa linha evolutiva. Utilizando nomes que se consolidaram depois, mas com consciência, podemos apontar primeiro as “harpas” (nome tardio, de origem grega); depois, quando menores e portáteis, as “harpas” seriam “liras” (outro nome tardio dado pelos gregos); e estas “liras”, quando mais tarde passaram a apresentar caixas de ressonância ao longo das cordas seriam “saltérios” (este, um nome originado já no latim).
Depois desta fase, a evolução apontaria os tais braços destacados das caixas de ressonância. Além dos dois primeiros nomes (sumério e assírio) que citamos, o remoto termo nefer também surgiria, entre os egípcios. Até a época da influência grega (entre os séculos VIII e II aC.) teria ido tudo relativamente bem: teria surgido o kellys, latinizado depois como chelys e apelidado testudo (os três nomes significam “tartaruga”), muito provavelmente porque já se morria de inveja dos árabes e seus bem feitos instrumentos abaulados (como cascos de tartaruga). Para ficar seguro nesta parte, sugerimos conferir excelente artigo de Carin Zwilling (brasileira que sabe muito de musicologia, História e até de linguística, coisa rara no meio).
A bagunça teria começado com os romanos: para demonstrar que eram “os tais”, começaram a querer que tudo fosse traduzido para o latim. O problema é que textos antigos em latim apontam uso de vários nomes sem critério, sem observar diferenças entre os instrumentos. Não que esperássemos que todos conhecessem de organologia (ciência que ainda nem existiria), mas, por exemplo, o filósofo Marcus Tullius Cícero citava exemplos com música / instrumentos musicais com tanto cuidado que até nos ajudam hoje a atestar que fides e seus diminutivo fidicula eram termos genéricos (sugerimos ler dele pelo menos o texto De Legibus II). Poucos, entretanto, leram Cícero com olhar musicológico.
Em textos romanos surgiram variações como guiterna e, a partir de cithara, variações como cedra, cetula e outras próximas. É compreensível que quisessem substituir nomes antecessores, mas para nós, que vamos depois pesquisar, é exigida muita atenção. Infelizmente o péssimo hábito não durou só pelos primeiros séculos da era Cristã: até os dias atuais muitos ainda fazem e até acham bonito. Entendemos que o generalismo e as traduções e invenções pouquíssimo acuradas tornam mais difícil entender reflexos histórico-sociais que os instrumentos testemunharam por séculos, e que está também nos nomes. É uma canseira, e uma pena que tantos não percebam isso.
Pitangas já devidamente choradas, sigamos com o andor: depois da queda de Roma, nas línguas não-latinas (chamadas “germânicas”, mas não são só as alemãs), a partir da citada variação em latim quinterna / guiterna surgiram citterns e gitterns que mais tarde apontariam para instrumentos com caixas redondas, antecessores da hoje chamada “família dos cistres” (bandolins, “guitarras” portuguesas, etc.). As aspas continuam, mantenhamos o suspense um pouco mais, enquanto vamos proseando…
O formato redondo das caixas é um meio termo, mas assim como o formato cinturado também indica rejeição aos instrumentos abaulados árabes. Assim, “guitarras” ainda não seriam cinturadas como hoje em “quase todo” o ocidente, mas também arredondadas, até o século XVIII. Pode-se dizer que até aquela época era uma grande bagunça, “liras gregas” seriam as sem braço, “liras bizantinas”, com braço e tocadas por arco, “cítaras”, só Deus sabe o que seria em cada texto… Nomes de instrumentos parecem “terra sem lei”, não à toa poucos têm a (in)sanidade de estudá-los com profundidade musicológica, e sobram “chutes” feitos até por linguistas respeitados.
Não por coincidência, mas por um reflexo histórico-social relacionado à Revolução Industrial, foi naquela época a consolidação das guitarras espanholas e da chamada “família dos violinos”, das orquestras (estes a partir da Itália, mas já com apoio de orquestras e compositores famosos na França, Inglaterra, Alemanha). Resumidamente, o que aconteceu é que, como a maioria das coisas, instrumentos passaram a ser vistos também como “produtos” – e produtos precisam de bons nomes e investimento (estudos, aprimoramentos, divulgação) para serem melhor vendidos.
Entretanto, desde pelo menos o século XIV já se observaria tendência de separação, na Espanha, entre “guitarras latinas” e “guitarras mouriscas” – e assim teria surgido a preferência europeia pelo formato cinturado de caixas. A rixa com os mouros é claramente apontada, por exemplo, por Juan Ruiz em seu Libro de Buen Amor. Crawford Young (2015) fez uma boa análise documentada de nomes, mas como vários outros, não incluiu nas equações os contextos histórico-sociais, que são claros: árabes muçulmanos, chamados “mouros”, foram invasores do território europeu entre os séculos VIII e XV. Eles teriam levado para lá cordofones dedilhados de formato periforme, com caixas de fundo abaulado, especialmente em dois tamanhos que seriam chamados, numa adequação à nossa língua, algo próximo de mandura e al’ud (alaúde).
Em reação aos instrumentos dos invasores, após alguns séculos surgiriam cordofones já europeus com caixas cinturadas e fundo plano (e demais características quase idênticas aos dois anteriores, mouros), chamados respectivamente: guitarra e vihuela (ver, por exemplo, Juan Bermudo e sua Declaracion de los Instrumentos Musicales, de 1555).
As guitarras traçaram (a partir do século XVI, portanto), uma história de sucesso: primeiro, pequenas, com 4 ordens de cordas, concorrendo claramente com bandurrias (nome espanhol para as citadas manduras árabes), guitarras já chegaram a ficar “famosinhas” por outras terras além das espanholas; depois, a partir do século XVII, as pequenas cairiam em desuso, assim como as vihuelas, maiores, quando então ambas teriam sido substituídas por guitarras com 5 ordens, a tal “guitarra barroca” (nome inventado depois, e muito citado até hoje, porque que se tornaram bem famosas). À época, fora do território espanhol, há inúmeros registros, inclusive métodos, de guitare (em francês), Guitarre e/ou Gitarre (em alemão), chitarra (em italiano) e até guitar, gittern e cittern (em inglês), no caso, cinturadas concorrendo com as arredondadas de lá.
Atente que, mesmo com as traduções, a Europa da época teria se rendido ao nome espanhol / catalão “guitarra”, mas apesar de vizinhos, os portugueses não teriam ido “na mesma onda”. Uma boa fonte para visualizar este panorama geral é o livro The Guitar and its Music: from the renaissance to the classical era, de Tyler & Sparks (2012).
É importante salientar que o que caiu em desuso, na prática, foi a utilização do nome guitarra para dedilhados cinturados pequenos, e vihuela para os maiores. Instrumentos similares continuaram existindo pelos séculos, fora do território espanhol, com outros nomes. Por exemplo, para os menores, o nome castelhano charango e os portugueses rajão, braguinha, machinho, machete, cavaquinho e até a versão hawaiana ukulelê (os dois últimos, já a partir do século XIX). Na Itália, desde o século XIV, e em Portugal, desde o século XV, haveria registros de violas, que eram correspondentes às antecessoras vihuelas espanholas (uma evidência disso é que nas três culturas os nomes eram bivalentes, ou seja, o mesmo nome era usado para dedilhados e para friccionados por arco). A diferença é que na Itália, a partir do XVII, acompanhando vários outros vizinhos, o nome dos dedilhados cinturados mudou, surgindo as chitarras – e em Portugal, isso nunca aconteceu, a bivalidade inclusive ainda continua.
Como apontamos, as histórias se entrelaçam, é preciso ter sempre “um olho no peixe, outro no gato”. Um exemplo é que, como o charango (que com o tempo teve mais cordas acrescentadas), “machete” viria a se tornar a nossa Viola Machete, não sendo, portanto, por coincidência que estes instrumentos, cinturados de tamanho menor, tivessem tido armações com 4 ordens e hoje armem em 10×5 (exatamente a armação das guitarras barrocas).
Finalmente, as guitarras espanholas mudariam mais uma vez, na virada dos séculos XVIII e XIX, passando a armar com 6 ordens (seis cordas simples), que é o “violão” atual, e que acabou por “dominar a zorra toda” de lá pra cá. Não foi “do dia para a noite”: durante o período de transição entre a “guitarra chamada barroca” e o “violão” (aproximadamente entre 1760 e 1830), teriam surgido também versões com cinco cordas simples e de 12×6 (uma revisitação à antiga armação das vihuelas e também dos alaúdes). Poucos, além dos citados Tyler & Sparks (2012), teriam observado registros de todas estas variações durante a fase de transição.
Lembrando que as guitarras seriam simplesmente chamadas de “viola” em Portugal, por lá há registros também, no mesmo período, de armações em 12 cordas em 5 ordens (onde, portanto, duas ordens seriam triplas) que, diferente das guitarras espanholas, apontariam de uso de cordas metálicas (ver Paixão Ribeiro e Pita Rocha).
É bom prestar atenção em alguns detalhes pouco observados por outros: as violas 12×5 portuguesas seriam afinadas e tocadas exatamente como as guitarras espanholas da época (o citado método de Pita Rocha é tradução equivalente à parte referente à cinco ordens do famoso método de Amat, de cerca de 150 anos antes). A armação 12×5 teria sido citada pelo francês Michel Courrete depois disso, em 1762 e, sabe lá Deus porquê, ele apontou que seria chamada “a la Rodrigo”. Muita gente boa, até hoje, acredita que por isso a invenção da armação teria sido portuguesa, mas não se atesta (já esclarecemos isso por aqui, em um Brevis Articulus específico). Também já denunciamos que ordens triplas com cordas de metal seriam utilizadas em chitarras italianas desde o século XVI (ver Martin).
Não teria sido, portanto, uma “grande criação” portuguesa, mas as violas portuguesas 12×5 seriam de fato as primeiras “violas” da História daquele país com diferenças significativas das guitarras espanholas e de outros cordofones existentes. Esta é a nossa descoberta sobre a origem das violas dedilhadas, que até então teriam sido apenas “um nome preferido” utilizado pelos portugueses para cordofones existentes. Também não é nenhum “grande feito” nosso, apenas olhamos por ângulos diferentes e mais amplos alguns registros e contextos que outros já poderiam ter percebido.
Outra constatação só nossa é que, historicamente, o comportamento português se demonstra diferente: pelo menos entre os cordofones populares, ainda não encontramos um que eles tenham inventado a partir do zero, ou tenham implementado modificações e evoluções expressivas, só nos nomes (e apenas nomes diferentes não tornam diferentes os instrumentos em si, pela História). Os portugueses podem até ficar chateados conosco, mas é o que a História aponta e aqui nem cabe crítica, antes ao contrário: entendemos que seja uma forma peculiar de nacionalismo, de patriotismo deles, que é até admirável. Há que ser contextualizado que em 1755 aconteceu o chamado Grande Terramoto, que praticamente teria destruído Lisboa: a comoção social teria sido grande, por longo período (a reconstrução não teria sido rápida, nem fácil), e colaboraria para diversas mudanças históricas do país. Como sempre, tais eventos são refletidos de alguma forma nos cordofones populares.
Além disso, àquela época já se evidenciariam reflexos da Revolução Industrial, com as grandes mudanças de comportamento social também observadas. Por exemplo, aliado ao potencial financeiro / comercial intrínseco, ter um instrumento diferenciado ajudaria a destacar um país ou região. Os espanhóis já estariam a explorar e lucrar com esta visão há tempos, os italianos já apontavam estar a fazer o mesmo com seus instrumentos de orquestras, em especial os cordofones friccionados por arco (que apontam mudanças significativas, consolidadas exatamente e não por coincidência naquele mesmo período, entre meados do XVIII e início do XIX). Métodos para aprendizado, aprimoramentos de fabricação e aumento do interesse geral são atestados, dando destaque para espanhóis e italianos à época, em cada um dos dois casos.
Tecnicamente, instrumentos com diferentes armações de cordas seriam “instrumentos diferentes”. Sim: tamanho, número de ordens e de cordas são diferenciadores, embora alguns estudiosos parecem ainda não entender assim, pelo mundo. Uma evidência são diversos métodos publicados onde o número de cordas era indicado desde o título, obviamente para que o cliente não tivesse dúvida sobre a qual instrumento “diferente” se referia. Destacamos o já citado método de Amat, onde no extenso título fez-se questão de indicar Guitarra española y vandola [que teria seis ordens], de cinco órdenes y de quatro. Outra evidência que não deixa dúvida que são diferentes estaria no tocar, mas infelizmente, muitos que estudam instrumentos não desenvolvem também este tipo de habilidade, prazer e honra. Se não forem considerados os detalhes de números de ordens e de cordas, junto a outros contextos, grande parte da História das guitarras, violas e outros cordofones simplesmente passa despercebida.
Eram portanto instrumentos diferentes, mas chamados originalmente de “guitarra” (que teria sido o investimento espanhol, como numa “marca”). Já “violão” e “viola francesa” são apelidos criados pelos portugueses, que sempre foram adversários dos espanhóis e demonstram historicamente não gostar de “dar palco pra inimigo” pelo nome dos instrumentos. Por que aqueles apelidos teriam surgido? Muito provavelmente porque os portugueses já chamavam as antigas guitarras (de 5 ordens) de “viola” … A “nova guitarra”, com 6 cordas simples, evoluiu para caixas um pouco maiores, se tornando mais diferentes ainda e com mais sucesso pelo território europeu… Entendeu o princípio de ação e reação, dentro do contexto de nacionalismo português? Entendeu até certo pejorativismo no aumentativo “violão” e na tentativa de disfarçar a verdadeira origem pelo nome “viola francesa”, sendo que o nome “guitarra” já era utilizado há séculos pelos espanhóis? Entendeu como a História das guitarras se cruza com a das violas? Percebeu porque é importante estudar os nomes nas línguas originais e estar atento a fenômenos circundantes, como a História de culturas/regiões vizinhas?
Portanto, a origem das guitarras se deve aos espanhóis, até por reconhecimento aos esforços que empreenderam por tanto tempo. Mas e as tais das aspas que ficamos devendo?
Os portugueses teriam começado a investir em algumas diferenças para as violas, mas não teriam seguido no projeto, mesmo quando não haveria mais “concorrência” com as guitarras espanholas, que mudaram. Entendemos que a estratégia realmente não poderia ter sido a melhor, porque “instrumentos chamados de viola” existiam também Brasil, a enorme ex-colônia (já que exatamente no fim daquele período, em 1822, libertou-se). A comoção social em Portugal mais uma vez teria sido grande, pela perda, e novamente nestas ocasiões é normal o nacionalismo ficar exacerbado, e instrumentos apontarem reações. Isso teria levado ao surgimento da “guitarra” portuguesa (e finalmente vamos desvendar o motivo das nossas aspas).
Pra começar, afirmamos (e que os portugueses um dia possam nos perdoar), que a origem das guitarras portuguesas aponta ser a partir das english guitars (ou english gitterns), “guitarras inglesas” de caixas arredondadas, com registros até o início do século XIX. Guitarras portuguesas, de caixas arredondadas, claramente em reação ou concorrência às cinturadas guitarras espanholas (já vimos este filme antes, certo?). Tudo aponta coerência com um povo que não tem histórico de surgimento de instrumentos novos, sofrendo grande comoção social e com nacionalismo aflorado, enquanto vizinhos demonstravam investir em instrumentos como produtos de identidade nacional.
Gostamos de dizer, brincando, que os portugueses pareciam estar “a tirar sarro” dos espanhóis, ao finalmente passarem a utilizar abertamente o nome deles, “guitarra”, porém para um instrumento bem diferente, de caixa arredondada. Naturalmente, é possível que tenha sido apenas uma coincidência, vez que uma tradução natural de guitar / gittern para o português seria “guitarra”. Só que, em termos de histórico de nomes de instrumentos, sempre desconfiamos de “coincidências”: se existiram, são raras.
Entretanto, portugueses como Nuno Cristo (2021), afirmam que não: por grande número de registros realmente atestados, ele, mais que outros, desenvolveu que guitarras portuguesas teriam vindo de antigas cítaras, não das guitarras arredondadas inglesas. O que observamos, entretanto, é que o exaustivo número de fontes apontado por Nuno, por si atesta que muito raramente os portugueses teriam utilizado o nome “guitarra” antes do século XVIII (ao contrário do que grande parte do continente fez). Nuno também ajuda a atestar como os “gajos” expressam seu nacionalismo de forma peculiar, até os dias atuais, em especial a considerar que os nomes que utilizam seriam soberanos quanto aos de outras línguas. É assim, inclusive, o entendimento do próprio Nuno sobre as origens do cavaquinho e dos portugueses em geral sobre as violas: não se considera paralelos com outros países, assim como pouco se embasa em contextos histórico-sociais. Talvez, quem sabe, porque seria sofrido demais relembrar tantos episódios infelizes da História portuguesa?
Para ser muito sincero, entendemos que é bonito, nobre e elogiável o nacionalismo português, quem dera os brasileiros tivessem herdado isso dos patrícios. E quem dera tivéssemos pesquisadores brasileiros com tanta dedicação no levantamento e apontamento de fontes como Nuno Cristo.
Só que, em termos de nomes de instrumentos, a História dos Cordofones Europeus nos aponta por padrão evoluções coletivas, paralelas, por várias línguas e culturas ao mesmo tempo. Apesar do grande banco de dados apontado, Nuno, por exemplo, não cita o desenvolvimento por séculos do termo “guitarra” na parte espanhola da mesma península, que destacamos aqui, e que teve reflexos em grande parte da Europa conhecida enquanto o termo, entre outros nomes de cordofones dedilhados, era rejeitado em Portugal, que chamava a todos de “viola” (esta mesma constatação teria sido apontada pelo respeitado pesquisador português Manoel de Morais, em 1985).
Estudiosos portugueses raramente consideram, por exemplo, o que descreveu o também respeitável musicólogo alemão Athanasius Kircher, escrevendo em latim em 1650, sobre o que chamou de cytharas: germânicas, gálicas e italianas seriam arredondadas e as hyspanicas, cinturadas (sem citar portuguesas). Mais importante ainda é dar uma boa olhada no excelente doutoramento da espanhola Rozário Martinez (de 1981), onde são feitas análises amplas de registros de nomes por séculos, em várias línguas, atestando a evolução, a partir do século XIII, do latim quinterna / guiterna até guittern e cittern nas línguas germânicas (alemão, inglês, etc.). Ou seja, a ligação mais ancestral do nome com instrumentos de caixas arredondadas não aponta para espanhóis e portugueses. Também em tempo, e para citar fonte em português, “cítara”, em Portugal, no século XVIII, seria nome também de “violas”, cinturadíssimas (ver nos importantes dicionários de Bluteau, publicados em Lisboa por todo aquele século).
É fácil perceber que o termo “guitarra”, das guitarras portuguesas, estaria ligado ancestralmente ao mesmo latim cithara, assim como este ao anterior grego kithara. A questão é o florescimento do termo “guitarra” em Portugal a partir de fins do século XVIII sem evidências de um desenvolvimento contínuo pelos séculos anteriores, como se atesta que teria acontecido em terras britânicas e outras de línguas germânicas (quinterna, guiterna – guittern, cittern). Inúmeros outros exemplos assim apontamos aqui, pela História dos Cordofones europeus, é um padrão atestável.
Se os portugueses quiserem se basear no desenvolvimento em várias línguas ao mesmo tempo, atestável pelos séculos, tem que explicar porque só eles não teriam aderido ao termo espanhol guitarra (ou variação próxima) para instrumentos dedilhados, como tantos fizeram, inclusive os próprios ingleses após o século XVIII (a english gittern, arredondada, caiu em desuso, após a ascensão da guitarra portuguesa, enquanto as guitars cinturadas ainda existem). Só portugueses seguiriam chamando dedilhados cinturados de “viola”, só portugueses chamam um instrumento de caixa arredondada de “guitarra” até hoje … Por que?
Quando acrescentamos à equação investigativa contextos histórico-sociais amplos, há quadros bem esclarecedores: a evolução em paralelo das culturas “germânicas” e “latinas” nem precisa explicar, vai muito além da intensidade de influência do latim nas línguas. São rixas antiquíssimas, assim como as existentes entre Portugal e Espanha. Outro contexto importantíssimo é a reaproximação de Portugal com a Inglaterra, apoiadora de Dom Pedro I, vencedor na Guerra dos Dois Irmãos, ocorrida entre 1832 e 1834 (sim: foi mais um evento de grande comoção social para os portugueses, ao final do mesmo já tão destacado período, quando é de se esperar alguma reação nos instrumentos populares).
Tudo aponta que, apesar de poder ter havido anteriormente em Portugal instrumentos chamados “citara” (e variações próximas deste nome), é após o expressivo retorno da influência inglesa ao país que surgiu a “guitarra portuguesa”, para depois vir a se tornar uma “expressão de identidade nacional”, junto com ao fado (outro “filme que já vimos antes”, investimentos nacionais em determinado tipo de músicas e instrumentos). Portugueses apontariam historicamente uma forma (possivelmente única) de expressar nacionalismo pelos nomes dos cordofones populares – atestável pelo surgimento de anomalias exclusivas como as “guitarras” portuguesas arredondadas (entendeu agora as aspas?), assim como, séculos antes, a continuidade de “violas” como nome bivalente (para dedilhadas e friccionadas por arco), quando praticamente o mundo todo separa os instrumentos por nomes diferentes. Lembra que lá no início citamos o paralelo histórico pan-tur / kethara? Não seria à toa que o padrão seria quebrado apenas por portugueses.
O fato, pela análise mais ampla, é que nomes de instrumentos tem enorme histórico de que, quando mudam, surgem ou desaparecem, é possível atestar a coerência com contextos histórico-sociais e rastros das transições por longos períodos.
Por falar em nomes que permanecem, guitarras elétricas sempre mantiveram o nome espanhol (!) embora tenham surgido nos Estados Unidos em meados do século XX, já com o Capitalismo mais que consolidado. Muito provavelmente pela grande comoção social causada pelas duas grandes guerras, de onde depois teria também evoluído movimentos pela paz como o hippie (ação/reação). A música reagiu pelo surgimento do rock, onde as guitarras elétricas aparecem com destaque de contexto, junto com evoluções eletrônicas, o que inclui aprimoramento de comunicações e trocas de informações mais globais. Todos estes contextos se relacionam, por exemplo, ao fenômeno Beatles (e não seria coincidência), mas aí já são outras prosas.
Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!
(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, cujos aprofundamentos aponta semanalmente nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).
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