Origens pouco conhecidas do termo VIOLA

[…] alii fistulis, alii sambucis, alii violis […] psalunt

(“Eram tocados algumas fistulas, sambucas, violas”)

 

Codex Calixtinus, criação coletiva, data estimada entre 1130 e 1160

Viola, Saúde e Paz!

Como nós, possivelmente os leitores já tenham lido em algum lugar que o termo “viola” teria vindo de fidula, vidula ou vitula (do Latim), ou do Catalão viula – entre outras teorias similares. É por isso que listamos, nas primeiras páginas do livro A Chave do Baú, os mais remotos registros encontrados de termos parecidos, que teriam sido citados por diversos estudiosos de ciências diferentes, em várias línguas e épocas também diferentes.

A diferença é que juntamos em um só estudo TODAS as citações, sem julgar a princípio se estariam certas ou erradas (o que não observamos ter sido feito por ninguém antes); as retraduzimos, com muita atenção (sobretudo com olhar musicológico e histórico), para uma língua só (inglês, com a supervisão do linguista suiço Rémy Viredaz) e, quando consideradas consistentes, as organizamos todas em ordem cronológica (para podermos analisar o que estava a acontecer em cada época em que os termos teriam surgido).

Entendeu? Seria mais ou menos como pegar uma aeronave e, lá de cima (no espaço), usando uma luneta poderosa, olhar para baixo e tentar enxergar o “todo” dos estudos e dos registros – olhar o conjunto inteiro e não apenas esta ou aquela vertente. Ou seria como olhar, de cima, um grande rio – mas observá-lo inteiro, desde a nascente até a foz, sem perder de vista sequer um ribeirão-zinho de sua cadeia (ou rede) de afluentes.

A Cronologia aponta que o mais remoto registro do termo VIOLA seria o destacado no início desse artigo, que teria sido observado em manuscritos estimados ao século XII. Sem dúvida faz sentido, portanto, que estudiosos procurassem por termos semelhantes que tivessem registros antes daquela época – e assim realmente conferimos vidula (sec. XI) e fidula (sec. X) em textos em Latim… mas aí já começam os entendimentos conflitantes, pois o mesmo fidula foi observado numa poesia toda escrita em dialeto alemão, do século IX… segura essa aí por enquanto, que já voltamos a falar disso.

Também faz algum sentido a alegação de origem do termo a partir de vitula, embora este termos só tenha registro como nome de instrumento musical a partir do século XIII – pois ele existiria em Latim desde muito tempo antes (seria do verbo vitular – “dar demonstração de júbilo, alegria”). E pensar em termos como viula (de textos em Catalão e Occitano), que também só teriam registros conhecidos a partir do século XIII, faria sentido por estas duas línguas estarem ligadas às ancestralidades dos atuais francês, espanhol, português. Acrescentamos, talvez apenas como curiosidade, que viola já seria utilizado pelo menos desde o século VI em Latim – mas como nome de uma flor, conforme já citamos aqui em outros artigos. Mas é um termo latino, sem dúvida.

Tudo faz algum sentido… Porém, até os dias atuais, nenhuma teoria (principalmente de linguistas e outros especialistas em origens de palavras) pode ser considerada decisiva, incontestável – principalmente quando cruzamos informações de outros olhares científicos, onde destacamos a musicologia (naturalmente, por ser a mais indicada quando o assunto é “instrumentos musicais”) e História / Estudos Sociais, que são ciências aplicáveis e aceitas em todo e qualquer estudo.

O que o nosso olhar (aquele da luneta, lá do espaço) vem trazer para a equação global são fatos e evidências históricas bem consistentes – como, por exemplo, o expressivo número de nomes similares, surgidos praticamente ao mesmo tempo em diversas línguas. Levantamos estes registros entre os séculos XII e XIII e consideramos que dois séculos possam ser considerados “quase ao mesmo tempo”, se comparados à História Ocidental toda (aquela visão ampliada, lembra? Sempre ela!).

Para refrescar os estudos sobre História, é bom lembrar: até o século V, quando o Império Romano caiu, os romanos dominavam o que chamamos hoje “território europeu” e, dominantes, tentavam impor o Latim como língua universal; porém, após a queda, o Latim não foi “expulso junto”, pois seguiu sendo a língua praticada pelos padres por todo o mesmo vasto território – mesmos padres, os maiores responsáveis pelos textos escritos (inclusive, sobre música e/ou que continha citações de instrumentos musicais). Após a queda também não haveria ainda os países hoje consolidados (França, Alemanha, Inglaterra, Espanha, Itália, Portugal, etc.). Todos estes eram compostos de reinos independentes, cada reino então a desenvolver suas culturas próprias, onde as línguas começaram a se desenvolver mais a partir do tal século V. Línguas como a Inglesa e a Alemã atuais tiveram complexos desenvolvimentos a partir de vários dialetos. E sim, se pensou na figura da “Babel bíblica”, deveria ser mesmo parecido…

Um fato que veio “bagunçar” ainda mais este caldeirão de idiomas / culturas aconteceu a partir do século VIII: a invasão árabe (muçulmana, “moura”), que durou até o século XV (!). Pense bem: são muitos séculos de uma cultura bastante diferente e, embora poucos comentem, pelo menos em termos de música e construção de instrumentos era bem mais avançada… Ah, sim: nossa poderosa luneta visualiza também as épocas, pois organizamos tudo em ordem cronológica, lembra?

Pois bem: são estes contextos históricos e sociais que nos trouxeram a resposta para uma pergunta óbvia: “por que diabos teriam surgido tantos nomes diferentes em apenas dois séculos?” – e a resposta nos parece bem simples e clara: foi neste período que os Trovadores teriam “bagunçado mais” a vida de praticamente todos os reinos europeus, viajando de lá pra cá, literalmente “fazendo arte” até no meio da rua, com poesias e músicas onde misturavam palavras árabes (no início), com o latim popular e as tais várias línguas diferentes em desenvolvimento nos reinos… Fácil de entender, não? Queria-se comunicar… e o que se tinha, à época, era utilizado como se podia.

Inclusive, um dos mais famosos intercâmbios de línguas, muito citado como “língua dos Trovadores”, seria o Occitano (também citado como Provençal ou Langue d’Oc) – um língua típica da região de reinos que hoje corresponderiam às fronteiras da Cataluña e França e que, não por coincidência, são grandes influências das línguas faladas hoje nestes lugares, assim como na Espanha, Portugal e Galícia (regiões que, como a Cataluña e outras, faziam parte da grande península Hyspanica).

Só lembrando, o costume nômade já era tradição árabe, assim como os cordofones portáteis, as rimas, etc. Estes costumes depois foram grandemente encampados (copiados, pode se dizer?) por nativos de todos os territórios europeus, mas com intercâmbios de características – onde se observam nomes, formatos e detalhes variados nos instrumentos musicais.

Enfim, de nosso muito atento e dedicado estudo, onde procuramos máxima abrangência (de dados, línguas, ciências, visões, etc.) o que concluímos é que nem faz sentido tentar entender um dos principais nomes de instrumentos surgidos nesta época (séculos XII e XIII) pelo viés de apenas uma língua (ou cultura): o processo foi, claramente, múltiplo – e as evidências são muito claras. Mesmo quando analisamos estudos em cada língua em separado a multiplicidade se evidencia pelas lacunas – por exemplo, excelentes estudos publicados por alemães e ingleses que muitas vezes desconsideram registros e termos em Latim, Catalão, Espanhol, etc. (e vice-versa).

Outra claríssima evidência apontada pela Cronologia montada é que inclusive os citados escritos em Latim, feitos pelos padres – que consideramos, por assim dizer, o “Latim oficial” após a queda de Roma – apresentam claras influências das várias línguas em desenvolvimento, independente do costume de se separar línguas “românicas” (oficialmente consideradas como influenciadas pelo Latim) das demais, chamadas “germânicas” (não só alemão, mas também o inglês, dinamarquês, etc.). Ousamos chamar de “intercâmbios”, mesmo que linguistas só costumem apontar o que chamam de “empréstimos”, que teriam acontecido só do Latim para algumas línguas, pontualmente. O que os registros em ordem cronológica apontam é que teriam havido “empréstimos” tanto nas línguas em desenvolvimento quanto nos próprios textos em Latim “oficiais”, “de lá pra cá”, indo e voltando, pelos séculos – basta observar também as nacionalidades dos padres-autores, ou os locais onde os registros teriam sido feitos. E também que o Trovadorismo se tornou tão comum que há diversos registros de padres que também escreviam versos rimados – assim como outros poetas, legitimamente europeus, que passaram a copiar os costumes implantados pelos árabes.

No popular? O Trovadorismo, com auge nos séculos XII e XIII, claramente “bagunçou a zorra toda”, não só na música / instrumentos musicais, mas também outros costumes sociais que apontam mudanças a partir daquela época (e que descrevemos, em detalhes, no livro A Chave do Baú). Instrumentos musicais normalmente reagem a mudanças sociais de grande impacto – e isso também comprovamos, várias vezes, com outro olhar de “luneta espacial” – só que mais ampliado ainda, pegando do século II aC. ao século XVI… mas aí já são outras prosas…  

  Vamos proseando…   

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS:

Em Latim:

Tratados e textos de Cicero, Homero, Virgílio, S. Isidoro e outros [disponíveis pela internet]

AGRICOLA, Martinus. Musica Instrumentalis – 1542 [1529]

PRӔTORIO, Michaele. Syntagmatis Musici – 1615

KIRCHER, Athanasius. Musurgia Universalis – 1650

DU CANGE, Domino. Glossarium Mediae et Infimae Latinitatis – 1877

Em Italiano:

LANFRANCO, Giovani. Scintille di musica – 1533

GANASI, Silvestro. Regola Rubertina – 1542

BONANNI, Fillippo. Gabinetto Armonico – 1722

Em Espanhol:

BERMUDO, Juan. Declaracion de los Instrumentos Musicales – 1555

AMAT, Joan Carles. Guitarra española y vandola – [1596]

CERONE, Domenico Pietro. El Melopeo y Maestro – 1613

Em Francês:

PLAYFORD, John.  A brief introduction to the Skill of Musick – 1667

ROUSSEAU, Jean. Traite de la viole – 1687

LAVIGNAG Albert. Encyclopédie de la Musique – 1920-1927 (vários volumes)

Em Inglês:

BURNEY, Charles. A General History of Music – 1782

OCURRY, Eugene. On the Manners and Customs of the Ancien Irish- 1873

ENGEL, Carl. Researches into the Early History of the Violin Family – 1883

GALPIN, Francis W. Old English Instruments – 1911

SACHS, Curt. The History of Musical Instruments – 1940.

Em Alemão:

DIEZ, Friedrich. Etymologisches Wörterbuch der Romanischen Sprachen – 1878

AMBROS, August Wilhelm. Geschichte der Musik – 1880

SACHS, Curt. Real-Lexikon der Musikinstrumente – 1913

Em destaque, estudo do citado Burney (1782, p. 224-230) sobre o latim popular e depois o desenvolvimento nas poesias provençais.

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