Uma Família de Violas dedilhadas

Viola, Saúde e Paz!

Entre as principais novidades que apontamos cientificamente no livro “A Chave do Baú” é que o Brasil está muito longe de ter apenas “uma viola dedilhada” como a maioria entende…

 Atrevemo-nos a contextualizar, muito provavelmente pela primeira vez, a existência e desenvolvimento histórico de uma Família de Violas Brasileiras dedilhadas, consolidada atualmente. No caso, consideramos “consolidados” os modelos que hoje teriam comprovada incidência além de suas regiões/Estados de origem, via praticantes e participações / citações em estudos, eventos, publicações e outras evidências.

Nossa base científica parte da História europeia dos cordofones, à qual o Brasil e todas as Américas devem suas origens. Os modelos de viola consolidados hoje, bastante diferentes entre sí, estariam de acordo com dados histórico-sociais-organológicos comuns e, assim como em Portugal, são ligados pela nomenclatura “viola” – nome cujas evidências indicam ter sido a verdadeira origem dos atuais instrumentos dedilhados, numa ação nacionalista portuguesa contra nomes utilizados por culturas dissidentes como alaúde, vihuela, guitarra e outros. Desenvolvemos cientificamente, em outra postulação inédita e com base em diversos registros e contextos de época, que o nome “viola” para dedilhados teria surgido em Portugal antes do instrumento existir de maneira distinguível, tendo se consolidado a partir de um modelo antecessor das guitarras espanholas. Em uma fase de transição de aproximadamente 70 anos, as guitarras migraram de 10×5 (dez cordas em cinco ordens) para 6×6 – o atual “violão” – e as “violas” (que antes eram apenas um outro nome dado pelos portugueses às mesmas guitarras, assim como antes também o faziam quanto às vihelas, também espanholas) seguiram e depois se consolidaram em 10×5, entre alguns poucos registros de modelos 12×5 e até 12×6, que também teriam começado a ser desenvolvidos durante a citada fase de transição.

Todas estas colocações se comprovam em instrumentos remanescentes, registros de época e contextos históricos sociais como os da disputa histórica entre Espanha e Portugal e as fases da Revolução Industrial (que trouxeram grandes mudanças sociais, exatamente durante o mesmo citado período de transição).

O nome “Viola” sempre foi “a chave”, a origem – por causa da preferência histórica portuguesa – e contextualiza até os dias atuais a classificação mais plausível deste conjunto de cordofones, em coerência com a história de um país cuja principal característica é a diversidade – diferente, portanto, da família das violas portuguesas, que apresentam desenvolvimento relativamente mais padronizado.

Descartando nomenclaturas genéricas e/ ou afetivas como “viola cabocla”, “viola divina” e outras – além de modelos que (ainda?) não se consolidaram totalmente pelo vasto território brasileiro, como as “Violas de Queluz” (mais radicadas em Minas Gerais), formariam hoje a FAMÍLIA DAS VIOLAS BRASILEIRAS – pela ordem cronológica dos resquícios históricos:

VIOLA DE COCHO (Incidência nos estados MT, MS, SP, DF, MG)

Armação de cordas: 5×5, de nylon (substituto das antigas tripas de animais).

Registro mais remoto: [entre 1851 e 1868] – livro de Joaquim Moutinho, Notícia sobre a Província de MT, 1869.

Violas de Cocho remetem diretamente, pela curiosa forma de construção da caixa de ressonância a partir de peça única, aos chamados “alaúdes curtos”, surgidos no século VIII na Península Ibérica. Um desenvolvimento importante foi apresentado por Julieta Andrade, Cocho Mato-grossense: um alaúde brasileiro, em 1981.

VIOLAS NORDESTINAS (sub família: repentistas, machetes, 10×5 e outros).

Armações: 7×5, aço (dinâmicas e comuns); 10×5, aço (principal dos demais modelos).

Registro mais remoto: ca.1580 – numa peça de teatro em Olinda – PE, citada em autos de Heitor Furtado de Mendonça e apresentada por José Antônio Gonsalves de Mello no livro Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595. Já o registro mais remoto do nome “Violas Nordestinas” foi observado no jornal Diário de Pernambuco, edição de 15/11/1945.

As escalas e narrativas típicas das chamadas “violas repentistas” (que na maioria das vezes portam o modelo chamado “dinâmico”, com cones metálicos nas caixas) remetem à cultura árabe (“moura”), muito difundida durante o Trovadorismo, que teve auge nos séculos XII-XIII; as ordens triplas de cordas remetem a violas portuguesas a partir do sec. XVIII – trios de cordas que teriam sido utilizados em instrumentos dedilhados italianos desde o século XVII, chamados por lá também de “viola” entre os séculos XV (Tinctoris, ca.1486) e XVI (Milano, 1536) mas que, ao contrário do que aconteceu em Portugal, depois migrariam de nome para chitarras (que seria o equivalente de guitarras, em italiano).

VIOLA DE BURITI (TO)

Armação: 4×4, nylon.

Registro mais remoto: 1949 – instrumento rústico remanescente, pesquisado por Marcus Bonilla, tese Minha Viola é de Buriti, de 2019.

As Violas de Buriti remetem às vihuelas espanholas, que teriam sido instrumentos tanto de arco quando dedilhados pelo menos desde o sec. XIV (antes das italianas e das portuguesas, portanto). O curioso fato de não ter cintura, mas ter se consolidado popularmente como “viola”, confirma que a nomenclatura é fundamental na classificação destes cordofones, suplantando inclusive princípios organológicos (que teria sido, de certa forma, o mesmo que aconteceu em Portugal, porém com o nome “viola” prevalecendo por questões nacionalistas). Esta visão, entrentanto, não foi ainda levantada por nenhum outro estudo, sendo desenvolvimento inédito nosso.

VIOLA MACHETE (BA)

Armação: 10×5, aço – que substituiu antigas armações em 4 ordens.

Registro mais remoto: 1744, segundo registros alfandegários pesquisados por Mayra Cristina Pereira, A Circulação De Instrumentos Musicais No Rio De Janeiro, 2013.

Violas “Machêtes” (destaque na pronúncia), também chamadas “machinhos”, eram típicas dos batuques, tendo sido as mais citadas por todo o Brasil até início do século XIX. Sem citação ao nome “batuque”, mas com descrições similares (inclusive de umbigadas) já teriam sido referidas desde a época de Gregório de Mattos (sec. XVII), via nomes como guitarrilha e bandurra. Remetem às pequenas guitarras espanholas de 4 ordens, que cairiam em desuso no século XVII) – com o curioso fato que, a partir da consolidação do cavaquinho (no início do sec. XIX), passaram para a armação 10×5 conservando o nome “viola”, diferente de Portugal onde se consolidaram machetes, cavaquinhos, rajões e outros cordofones similares, de 4 ordens.

VIOLA DE CABAÇA (SP, RJ, MG)

Armação:10×5, aço.

Registro mais remoto: ca.1981.

Por alegações infundadas de terem sido como banzas as violas de Gregório de Mattos (séc. XVII), o boato de uso de cabaça como caixa de ressonância rompeu séculos mesmo com pouquíssimas citações em instrumentos até o século XX, quando passou a ser construída pelo luthier paulista Levi Ramiro e hoje se encontra consolidada pelo Brasil. Este é mais um exemplo da força da nomenclatura para a história da Família das Violas Brasileiras.

VIOLAS BRANCAS – [“Caiçara” (SP) e “Viola de Fandango” (PR)]

Armação: (7ou6)x5, aço.

Registro mais remoto: o termo “Viola Caiçara” foi observado no jornal A Tribuna (SP), edição de 01/11/1980, em referência de uso a partir de cerca de 1974. Entretanto, já teriam sido apontadas como “violas do litoral” por Mainard Araújo, na década de 1950, sem contar citações de “violas utilizadas em fandangos” no Rio Grande do Sul, até cerca de 1840.

As Violas Brancas (cujo nome seria referência à madeira chamada “caixeta”) remetem às violas beiroas portuguesas (sec. XIX), sobretudo pelo cravelhal extra, chamado “benjamim” – mas apresentam vários resquícios históricos coincidentes com outros modelos: a armação mista de ordens simples com duplas (ou triplas) coincide com violas repentistas; a fabricação de caixas em peças únicas, remanescente em algumas regiões, coincide com as Violas de Cocho, além da nomenclatura “machete” para suas versões menores, de quatro ordens.

VIOLA 12 CORDAS (incidências nos Estados SP, RJ, MG, NE).

Armação de cordas:12×6, aço.

Registro mais remoto: ca.1929 – instrumento remanescente.

As Violas de 12 Cordas remetem às chamadas “guitarras clássico-românticas”, de registro na Espanha no citado período de transição (entre fins do sec. XVIII e início do século XIX) – mas, naturalmente, também remetem mais remotamente às vihuelas espanholas que dominaram do sec. XV ao XVII, por usarem a mesma armação de cordas daquelas. Um aspecto que teria passado despercebido a muitos, menos ao atento violeiro e pesquisador paulista Júnior da Violla, é que “doze cordas” também teriam tido as já citadas violas portuguesas 12×5, com registros desde o século XVIII – portanto, registros escritos que não tivessem detalhamentos não deixariam clara a existência de Violas 12×6. Outro fator a prejudicar o entendimento deste modelo são violões também com armação 12×6, cuja principal diferença esta apenas nas dimensões (além, naturalmente, da não consolidação do nome como “viola”, que vemos em todos os modelos consolidados que é fundamental).

Apesar de todas as distrações de fontes de pesquisa, fotos como as do citado instrumento (da dupla Mandy & Sorocabinha, uma dupla caipira, portanto equivocadamente presumida por muitos que usariam “violas caipiras 10×5”) e a presença em catálogos Gianinni na década de 1950 (sob o nome de “viola portuguesa”) não deixam dúvida da atestação do modelo, hoje consolidado no Brasil – mas infelizmente ainda negado até por estudiosos. Este tipo de negação, entretanto, vem da preferência (comercial, afetiva, etc.) pelo modelo Viola Caipira e se aplica a todos os demais modelos da Família, que nunca antes teria sido apresentada com contextualização e embasamento científico.  

VIOLA CAIPIRA (praticamente em todo o Brasil)

Armação de cordas:10×5, aço.

Registro mais remoto: a nomenclatura surge algumas vezes a partir de 1901, quando o modelo também começou a se desenvolver, mas só se consolida a partir da década de 1970.

Remete às guitarras espanholas que dominaram a Europa entre os séculos XVII e XVIII, tendo se consolidado como “violas de fato” a partir da migração das guitarras para o novo modelo, 6×6 (o violão moderno), acontecido nas primeiras décadas do sec. XIX. No Brasil, a consolidação do violão como principal cordofone é observada a partir da década de 1840 – exatamente quando surgem registros da variedade de modelos diferentes chamados de viola.

No livro “A Chave do Baú”, toda a História dos cordofones europeus é descrita, até culminar nas violas brasileiras, com fartas listas das referências pesquisadas em diversos idiomas e até quadros organológicos / etnográficos de cada modelo, com ilustrações.

Vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

Principais Referências:

ANDRADE, Julieta de. Cocho Mato-Grossense: um alaúde brasileiro. São Paulo: Escola de Folclore, 1981.

BALBI, Adrien. Essai Statistique sur le Royane de Portugal et D’algarve. 2ª ed. Paris: Chez Rey et Gravier, 1822.

BALLESTÉ, Adriana Olinto. Viola? Violão? Guitarra?: proposta de organização conceitual de instrumentos musicais de cordas dedilhadas luso-brasileiras do século XIX. 2009. Tese (Doutorado em Música) – UNIRIO, Rio de Janeiro, 2009.

BONILLA, Marcus Facchin. Minha Viola é de Buriti: uma etnomusicologia aplicada-participativa-engajada sobre a musicalidade do quilombo Mumbuca, no Jalapão (TO). 2019. Tese (Doutorado em Artes) – Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.

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CORRÊA, Roberto. Viola Caipira: das práticas populares à escritura da arte. 2014. Tese (Doutorado em Musicologia) – Escola de Comunicação e Artes da USP, 2014.

CORRÊA, Roberto. As Violas do Brasil. In: Partituras Brasileiras on line – brazilian songbook international on line. Brasília (DF), FUNARTE MINC, 2017.

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