VIOLAS EXISTIRAM ANTES DE EXISTIREM DE FATO

“[…] outros instrumentos de corda dedilhada que, na terminologia portuguesa do tempo, também eram compreendidas na designação genérica de *violas de mão*.”.

[João de Freitas Branco, História da Música Portuguesa, 1959]. 

Viola, Saúde e Paz!

Em recente artigo que aqui registramos, assim como no livro “A Chave do Baú” (onde dedicamos um capítulo), levantamos a questão de existirem hoje, no Brasil e em Portugal, dois instrumentos diferentes com nome de VIOLA: as “de arco” (friccionadas, das orquestras) e as dedilhadas, “parecidas” com violões.

Assim como nosso “xará”, destacado no início – o músico e historiador português João de Freitas Branco – há vários estudiosos que apontam que nos primeiros séculos os portugueses utilizavam uma “denominação genérica” aos seus dedilhados. Alguns indicam que teria havido um bilinguismo (ou seja, dois tipos de instrumentos chamados pelo mesmo nome), mas Branco, como nós, percebeu que a denominação era “genérica”, ou seja, era para todos os dedilhados antigos, a saber: as vihuelas e guitarras espanholas e os alaúdes árabes / “mouros”, em todos os seus tamanhos e variações. A esta lista acrescentamos, naturalmente, os “de arco” – até o século XVI, aproximadamente, conhecidos em outras línguas como “de braço”, “da gamba”, “rabebs”, etc.

Para os portugueses, era “tudo viola”. Mas… por quê?

Branco, que não constava ainda das referências de nossas pesquisas (sim, continuamos lendo e pesquisando!) também apontou semelhança com a metodologia que desenvolvemos (a tal da “chave do baú”), ao afirmar, em conclusão ao bem embasado prefácio de seu recomendável livro, que tentava ali aplicar uma “relacionação historiográfica de reflexos musicais da realidade sociocultural portuguesa”. Sim! Bem semelhante ao caminho que traçamos para tentar responder a uma pergunta que nem Branco, nem nenhum entre as centenas de estudiosos que pesquisamos se aventou a responder: “por que os portugueses agiriam assim, quanto ao nome viola?”.

É sempre bom lembrar que em outras culturas, também já desde os séculos XVI e XVII, a tendência geral é de separar, pelos nomes, as maneiras diferentes de tocar: para os dedilhados, nomes similares à guitarra (que teve um certo “investimento” dos espanhóis em desenvolvimento de técnicas) e, para os friccionados, nomes similares à viola (graças ao investimento, no caso, dos italianos, no que hoje se chama “família dos violinos”).

No livro e em outros trabalhos listamos mais de vinte evidências, baseadas em registros observados entre os séculos XV e XIX e em trabalhos de vários estudiosos importantes – portugueses, brasileiros, espanhois e de várias outras nacionalidades / línguas. Àqueles, somaremos agora esta, do livro de Branco. O principal fator se baseia nas incontestáveis divergências históricas de Portugal, tanto com os árabes (invasores da Península por cerca de 700 anos) quanto com os espanhóis (que tem capítulos por séculos como concorrentes, desde o surgimento de Portugal como reino unificado). Faz muito sentido, portanto, que portugueses não quisessem utilizar os nomes originais daquelas outras culturas em seus instrumentos populares que, conforme atestamos na História Ocidental desde o século II aC., sempre demonstraram reflexos da “realidade social” (como se referiu Branco) ou dos “contextos histórico-sociais”, como se diz hoje em dia – tudo em concordância com o que já teria afirmado o filósofo grego Platão, cerca de quatro séculos antes de Cristo, que fenômenos circundantes são cruciais a qualquer estudo.

Mas… não estaríamos a ser prepotentes (arrogantes, megalomaníacos) ao afirmar que fomos capazes de ver o que centenas de outros competentes estudiosos não viram? Bom… aos estudiosos estrangeiros, a explicação é bem atestável e clara: eles simplesmente desconsideram o nome “viola” para dedilhados, admitindo (e estudando) apenas as violas de arco – e quase todos consideram as violas dedilhadas portuguesas e brasileiras como “um tipo de guitarras”. Isto, de certa forma, não seria muito errado… a não ser pelo fato que, a partir da consolidação das guitarras em seis cordas não metálicas (que chamamos de “violão”), nossas violas se tornaram instrumentos consideravelmente diferente das guitarras, pelo tamanho, número de cordas em pares e sempre metálicas e outros detalhes. Em tempo: este comportamento dos estrangeiros e o fato de chamarmos as guitarras de “violão” já são evidências de que o uso do nome “viola” para dedilhados é específico da língua portuguesa e reflete o nacionalismo português.

Já quanto a estudiosos portugueses e brasileiros (mas não só eles), comprovamos por grande número de publicações reinvestigadas, que é muito comum acontecerem equívocos de avaliação histórica dos nomes e características de instrumentos, ou seja, é mais comum do que se espera que estudiosos confundam instrumentos que existem em suas épocas com citações de tempos mais remotos de nomes iguais ou semelhantes. Assim, estudiosos portugueses, no século XX, por atestarem a existência das violas em seu tempo, supunham que aquelas teriam existido por lá sempre, desde os mais remotos registros do termo “viola” em línguas antecessoras do português (século XII) – porém, sem atentarem à falta de registros do nome até o século XV e, a partir daí, a falta de registros sobre detalhes dos instrumentos. Ou, para brasileiros, também no mesmo século XX, ao constatarem a existência do modelo Viola Caipira, imaginar que este teria sido o mesmo (e único) desde os registros do nome VIOLA, sem descrições, encontrados no século XVI; neste último caso, estudiosos brasileiros ainda teriam procurado informações em  publicações portuguesas e, como estas apontam a existência de “instrumentos chamados de viola”, cairiam nos mesmos tipos de equívocos de contexto histórico.

Nós não nos baseamos apenas em outros “mapas de tesouro”, mas principalmente em nossa metodologia, nossa “chave”, que testamos bastante – além de termos colecionado, checado e organizado um banco de dados significantemente maior do que todos os estudos que pudemos conseguir – principalmente porque, ao contrário da maioria maciça, avaliamos ambas as possibilidades (dedilhados e friccionados) juntas, desde remotas eras, contextualizando em somatória aspectos históricos, sociais, musicológicos, linguísticos e outros. Muitos contextos (ou “fenômenos circundantes”) que são aplicáveis à História das violas, mas que não teriam sido considerados desta forma antes.

Não é tão impossível, portanto, que ao realizarmos estudos mais abrangentes possamos ver além do que já teria sido publicado – até porque o objetivo de pesquisarmos foi este mesmo: de buscar o que outros teriam deixado passar – o que chamamos figurativamente de “tesouros perdidos”! E enchemos um baú com eles.

Quanto à ação nacionalista (ou patriótica) portuguesa, demonstrada pela preferência de uso de um “genérico”, são várias evidências listadas no livro e em nossas pesquisas: desde a falta de detalhes nos registros (ou, quando existiam, serem similares a outros instrumentos, não caracterizando “violas” como instrumentos diferentes); a preferência por utilizar um nome utilizado na Itália (viola) e não um espanhol (guitarra ou vihuela); chamar de “violas pequenas” ou “violas grandes”, quando os espanhóis diferenciavam guitarras e vihuelas pelo tamanho; até enfim a adesão pelo nome guitarra, pouquíssimo utilizado pelos portugueses para dedilhados até o século XIX, mas então escolhido para um instrumento que se tornaria uma “referência cultural portuguesa” – só que totalmente diferente das cinturadas guitarras espanholas e ao mesmo tempo claramente inspirado na English Guitar (nomenclatura inglesa, país com boas relações com Portugal, na época).

Os registros e contextos apontam que até meados do século XVIII não existiriam violas dedilhadas de fato – apenas “instrumentos chamados de viola” e, particularmente, entendemos certa beleza, brio e inteligência na ação que teria surgido naturalmente entre os antigos portugueses. Uma espécie de bom exemplo de amor à Pátria, muito útil a todo o Mundo.

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna Viola Brasileira em Pesquisa às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

PRINCIPAIS FONTES:    

AMAT, Joan Carles. Guitarra española y vandola, de cinco órdenes y de quatro, la qual enseña a templar y tañer rasgado todos los puntos naturales y B mollados, com estilo maravilhoso. Valência: Augustin Laborda, [1596].

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MARTINEZ, Maria do Rosario Alvarez.  Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos. 1981. Tesis (PhD Art History) – Faculdade de Geografia e História, Universidad Complutense de Madrid. 1981.

MILANO, Francesco. Intavolatura de Viola o vero Lauto. Napoli: s/n, 1536

MORAIS, Manuel. A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789). Nassare Revista Aragonesa de Musicología XXII, Zaragoza, v1, nº1, p. 393-492, jan./dec. 1985.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 [1964].

RIBEIRO, Manoel da Paixão. Nova Arte de Viola. Universidade de Coimbra:1789.

ROCHA, João Leite Pita da. Liçam Instrumental da Viola Portuguesa. Lisboa: Oficina de Francisco Silva, 1752.

TINTORIS, Johanes. De inventione et uso musicae. [1486].

WEBER, Francis J. A Popular History of Music from the Earliest Times. London: Simpkin, Marshall, Hamilton, Kent & Co., 1891.

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