QUEM FOI O MAIOR: TIÃO, RENATO OU BAMBICO?

QUEM FOI O MAIOR: TIÃO, RENATO OU BAMBICO?

Viola, Saúde e Paz!

É bem comum na cultura brasileira surgirem listas sobre “o melhor de todos os tempos”, “o rei” disso ou daquilo. Não seria diferente no “mundo da viola”. O que muitos não percebem é que estas listas muitas vezes são fomentadas com o intuito de angariar atenção, visualizações, likes, audiência – pois, dependendo do critério utilizado, são apenas polêmicas que, na prática, acabando servindo só para dividir opiniões de quem, a melhor princípio, deveria somar forças e não dividí-las.

Falar de competição em artes é muito diferente do que em esportes, por exemplo, onde é normal serem medidos números, conquistas, estatísticas. Nas artes, o principal critério de “seleção” acaba sendo o de “gosto pessoal” que, na verdade, não significa quase nada – cada um gosta do que gosta por suas razões e escolhas próprias, muitas vezes mascaradas pelo que o mercado aponta querer que se consuma. O mais conhecido (por aparecer mais em divulgações) será sempre considerado “o melhor” por este critério – logo, quem tem algum interesse comercial pode lucrar algum com a criação e divulgação de listas polêmicas, a princípio “inocentes” e “divertidas”.

Fazendo um pequeno exercício, conforme o método descrito no livro “A Chave do Baú”, é curiosa a utilização do termo “rei” nestas circunstâncias de comparação, num país ancestralmente ligado à “devoção” onde se observa ser comum o apontamento e “endeusamento” de ídolos. “Rei” é uma figura que remete, por exemplo, à Idade Média, onde eram considerados “ungidos ou escolhidos por Deus”, talvez porque Jesus Cristo teria afirmado (claramente numa figura de linguagem não muito bem entendida) que teria um “reino nos céus, não na terra”. Ou, talvez, ocorra no Brasil porque nunca tivemos (de fato) um rei – o último que por aqui passou foi quando éramos ainda uma Colônia. De qualquer forma, o termo “rei” remete a tempos antigos, dos quais para se saber de fato é preciso ler e refletir – que não é, de forma alguma, a intenção de quem cria, divulga e defende listas polêmicas de comparação… mas é curioso observar.

Votar (ou simplesmente pensar) em quem teria sido “o maior violeiro” depende, no mínimo, de conhecimento sobre os violeiros que já existiram. Neste ponto, podemos ajudar, fornecendo algumas informações.         

Entre os mais citados, o mineiro Tião Carreiro – José Dias Nunes (1934-1993) – é o mais conhecido da chamada “música caipira”. Genial, teria criado e, com a estrutura de uma grande gravadora, a partir de 1959 difundiu o hoje famoso ritmo “pagode de viola” (alcunha sugerida por Teddy Vieira). No livro “A Chave do Baú” apontamos, de acordo com centenas de dados levantados, que também após a mesma citada gravadora começar a utilizar em discos de Tião o nome “viola caipira” (em 1976, LP “É disso que o povo Gosta”) cresceram muito as citações a este nome, que acabou vindo a se consolidar como o do modelo mais famoso da Família das Violas Brasileiras. Também apontamos, cientificamente, que embora o caipirismo tenha sido inventado no início do século XX, com sugestão de que sempre teria existido no Brasil, o pagode e o nome “viola caipira” são novidades surgidas bem depois, ligadas a ações comerciais, não sendo, portanto,  nenhuma “tradição” (embora muitos defendam isso).

Já Renato Andrade (1932-2005), contemporâneo e conterrâneo de Tião, não cantava, só solava (fazia instrumentais). Bem menos lembrado pelos defensores do caipirismo, mas muito referenciado pelos que são capazes de avaliar música por conhecimento técnico, dá a impressão que poderia tocar o que quisesse na viola (no caso, para quem o viu tocar ao vivo mas também pelos seus vídeos da internet). Com auxílio do Itamaraty, Renato teria viajado por cerca de 36 países estrangeiros se apresentando em salas de concerto e mostrando toques de viola brasileira em vários de nossos ritmos e também em peças eruditas conhecidas mundialmente. Não me lembro de tê-lo visto tocando pagode de viola, mas penso que se quisesse, tocaria com grande maestria, como tudo o mais que fazia na viola. Renato também pesquisava e até aprimorava às vezes ritmos e toques antigos pouco conhecidos, colaborando com seus registros para que não sejam totalmente perdidos, esquecidos na História.

Ainda mais ou menos na mesma época de atuação, há um que destaco como um “oásis da aceitação geral” por ser respeitado e referenciado por quase todos (público e crítica): o paulista genial “Bambico” – Domingos Miguel dos Campos (1944-1982). Especialista também em gravações em estúdio, tocava sozinho (instrumentais), tocava e cantava em dupla e também parece que conseguiria tocar o que quisesse na viola – no caso, sendo mais difícil avaliar porque não são conhecidos registros muitos registros de estilos diferentes. Sua peça mais famosa, o “Brincando com a Viola”, a meu ver, tem muito a ver com chorinhos… mas seus registros de atuação junto aos que praticavam o caipirismo lhe resguarda hoje o tipo de lembrança mais constante de seu nome e de suas qualidades musicais.

Quem foi o melhor? Não vejo importância alguma em fazer tal eleição. Entre outros aspectos de suas genialidades, um é importantíssimo para a música de viola de hoje; outro é importantíssimo pela difusão para a viola dentro e mais ainda fora do país; e o outro é importantíssimo, entre outras coisas, para a boa qualidade de gravações deixadas para a posteridade e ainda, a meu ver, para servir como um dos maiores exemplos de genialidade, pela versatilidade.

Isto sem contar Almir, Tavinho, Gedeão, Goiano, Ivan, Roberto… e vários outros novos valores que surgiram nas últimas décadas com altíssimo nível (qualquer lista acaba por ser injusta, de alguma forma). Todos são orgulho para a viola e para o Brasil, na verdade cada executante e defensor da viola tem alguma contribuição válida a acrescentar. Que bom termos os repertórios de Tião, Renato e Bambico e tantos outros para podermos apreciar como ouvintes, para estudarmos e nos aprimorarmos como tocadores, para termos histórias diferentes para contar / escrever e também estudar. Eu só queria que os três primeiros citados estivessem vivos hoje para eu tentar montar um show com os três juntos no palco, tocando, cantando, deliciando a todos (mas aí já é mais a parte de produtor/gestor falando).

Para não ficar “em cima do muro”, tentarei responder: seria possível uma competição mais precisa, mais correta? Tecnicamente, se déssemos a certos tocadores um período igual de tempo para estudar uma determinada peça (sabidamente difícil de executar) para depois executarem a peça o vivo, um após o outro, nas mesmas condições técnicas de apresentação, talvez pudéssemos avaliar qual deles cometeria menos erros ou qual apresentaria performance mais vistosa ou criativa. Para avaliar isso, entretanto, é preciso ter conhecimento teórico musical – e não apenas “achâncias”, “gostâncias”, defesas de interesses comerciais e similares.

Também para não ficar “em cima do muro”, que critérios poderiam ser utilizados para escolher entre Tião, Renato e Bambico – já que os três já viajaram fora do combinado? Eu aplicaria o critério de versatilidade, de diversidade, pois é das principais características da cultura brasileira. Neste aspecto, eu apontaria Bambico, por tocar e também cantar bem, tanto ao vivo quanto em estúdio – mas, no caso, tenho conhecimento e experiência em estúdio e posso afirmar que, tecnicamente, faz diferença. Se Bambico era muito chamado para gravações (como dizem teriam sido também Julião, Goiano e outros), significaria uma expertise a mais, que num critério de seleção por diversidade de saberes faria diferença.  

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna Viola Brasileira em Pesquisa às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

PRINCIPAIS FONTES:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. Monografia (Prêmio Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

CARDOSO, Bruno Aragão. A viola embaixatriz de Renato Andrade: contextualização das turnês patrocinadas pela ditadura militar e ponderações sobre a face caipira do violeiro. 2012. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música da UFMG, Belo Horizonte, 2012.

CASELATO, Fernando. As técnicas usadas por Tião Carreiro no pagode: quais as contribuições deste ritmo na viola caipira atual? 2012. Monografia (bacharelado em Educação Musical) – Universidade Aberta do Brasil / Universidade Federal de São Carlos SP, 2012.

CORRÊA, Roberto. Viola Caipira: das práticas populares à escritura da arte. 2014. Tese (Doutorado em Musicologia) – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2014.

MALAQUIAS, Denis Rilk. O pagode de viola de Tião Carreiro: configurações estilísticas, importância e influências no universo da música violeirística brasileira. 2013. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.

PINTO, João Paulo do Amaral. A viola caipira de Tião Carreiro. 2008. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, SP, 2008.

PEREIRA, Vinícius Muniz. Entre o Sertão e a Sala de Concerto: um estudo da obra de Renato Andrade. 2011. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2011.

SANT’ANNA, Romildo. A moda é viola: ensaio do cantar caipira. 4ª ed. São Paulo: Ed. UNIMAR, 2015.

VILELA, Ivan. Cantando a própria história. 2011. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 2011.

www.tiaocarreiro.com.br

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