CONHECE AS VIOLAS PRETAS?

Conhece as Violas Pretas?

São só antecessoras do SAMBA, das MODINHAS e do CHORO.

Teria “dado um branco” nas pessoas?

“[…] a viola, sendo um excelente instrumento, bastava agora que negros e patifes sabiam tocá-lo, que homens honrados não queriam mais tê-lo em seus braços”

(Francisco Manuel de Mello (1608-1666), Carta de guia de casados)

Viola, Saúde e Paz!

Os termos “batuque” e “lundu” remetem historicamente às manifestações musicais com registros mais remotos e mais numerosos na história da música brasileira dos tempos Coloniais e Imperiais. Estes registros tem despertado algum interesse de pesquisadores há algumas décadas, com muita literatura produzida. A motivação para fazer mais uma análise sobre o assunto vem das recentes descobertas e novas visões a respeito da Família das Violas Brasileiras, relatadas no livro “A Chave do Baú”, sobre instrumentos presentes nestas manifestações e algumas vezes não observados corretamente, sendo citados muitas vezes “cavaquinhos” e/ou “violões”.

Quer seja por equívocos de traduções e contextualizações histórico-sociais ou pelo pequeno número de estudos sobre violas dedilhadas existente – a maioria focando apenas no modelo Viola Caipira, do qual não se tem evidência nem de ter existido antes de 1900 – o fato é que nossos estudos são os primeiros a primeira a contextualizar historicamente todos os modelos de viola dedilhada consolidados no Brasil, com cruzamento considerável de fontes e aplicação exaustiva de Metodologia Científica (que é a tal da “chave” que abre “baús de tesouros”).

Uma das novas revelações sobre as violas é que, pelo cruzamento de vários estudos e dados, até aproximadamente a década de 1840 os instrumentos de acompanhamento mais utilizados no Brasil seriam os chamados genericamente de “viola” pelos portugueses. Estes teriam descrições similares desde “poesias” atribuídas ao baiano Gregório de Mattos (1636-1696) e as “Cartas Chilenas” creditadas a Tomáz Antônio Gonzaga (1744-1810) – quando ainda não eram citados os termos “lundu” nem “batuque”, mas que pelas descrições é possível identificar as similaridades.

Já no século XIX, os termos aparecem em várias descrições, por várias partes do Brasil, feitas por exploradores como o francês Saint-Hilarie e os bávaros Spix & Martius. Os instrumentos musicais de harmonia seriam as chamadas “violas”: pequenas guitarras de 4 ordens, chamadas de “machêtes”, “machinhos” ou similar, tanto em Portugal quanto no Brasil – além, naturalmente, de instrumentos de percussão, característicos da música africana, de onde hoje se entende, equivocadamente, que “batuque” refira-se apenas a tambores e similares.

Mas “batuque”, na verdade, teria sido o nome de uma dança, de movimentos sensuais, com ritmos de origem africana como o lundu, tocado nas violas e acompanhadas de percussões, palmas, canto, etc. Em todas as narrativas, os mais citados instrumentos (analisando as descrições os contextos) eram as pequenas violas. Por adesão, com o passar do tempo, a reunião de pessoas para cantar e dançar também passou a ser chamada de “batuque”, assim como o “pagode” – este último nome que ainda resiste, bravamente, em algumas poucas regiões pelo país como em Minas Gerais, embora hoje também seja utilizado para “sambas populares” e para um ritmo de viola.

Embora “lundus” fossem tão citados quanto “modinhas” em 1798 por Domingos Barbosa (ca. 1740-1800), no livro “Viola de Lereno” (para ele, um livro de “cantigas”, segundo o subtítulo), vários estudiosos indicam que as modinhas, seja em Portugal ou Brasil, fossem tocadas em violões – instrumento que alcançaria inegável hegemonia mas que só se consolidaria no Brasil a partir da década de 1840 (bem depois de Domingos Caldas ter morrido), segundo levantamentos de vários tipos de estudos e dados que cruzamos em nossa pesquisa. Importante apontar que entre os relatos do início do século XIX há descrições de canções dolentes tocadas à viola – as tais cantigas – normalmente antes do início das sensuais danças dos batuques.

Estudiosos também indicam (corretamente) a origem do samba a partir dos lundus, porém  com cavaquinho: instrumento cujo apontamento mais remoto (e único, por décadas) seria de 1820, em Lisboa, pelo italiano Adrien Balbi (1782-1848). Este criativo estrangeiro em terras lusitanas nunca teria vindo à Colônia e possivelmente nem saberia a diferença entre uma viola machête e um cavaquinho (até porque cavaquinhos parecem nem ter existido ainda, não se encontrando outros registros, como dissemos, até cerca de duas décadas depois).

Estes equívocos são compreensíveis uma vez que estudos sobre as violas brasileiras estão ainda muito pouco aprofundados, a maioria tendo observado apenas o modelo “viola caipira” – que, obvia e comprovadamente, ainda não existia e muito menos teria sido o utilizado pelos escravizados nos primórdios da música no Brasil. Foram violas, machêtes, tocadas por pretos, que antecederam as raízes da música popular brasileira. E não apenas no meio rural: tocadas nas ruas da capital do Império, Rio de Janeiro, teriam precedido tanto o SAMBA, quando o CHORO, quanto as MODINHAS.

Será que a cor da pele destes tocadores e dançarinos tem alguma coisa a ver com o fato de hoje isto não ser muito divulgado?

No início do século XIX, ultrajantes anúncios de venda e fugas de escravizados em jornais, como se fossem animais, fornecem dezenas de registros de tocadores de viola, tocadores de machêtes. Vários outros registros apontam como tocadores de viola (e outros instrumentos), alguns pretos forros, chamados “barbeiros” – que prestavam pequenos serviços como corte de cabelo, aplicação de emplastos para doenças, etc.

Barbeiros teriam tocado nas ruas, à porta (ou “à margem”) de eventos festivos, fantasiados como podiam, com os instrumentos que conseguiam, músicas instrumentais que teriam sido muito mal tocadas (segundo as citações) – daí vários estudiosos apontarem, equivocadamente, que poderiam ter sido os precursores do carnaval – não da música popular brasileira…

Porém, teria fugido (talvez do tom de pele de alguns estudiosos?) que há vários registros também de barbeiros que teriam tocado em eventos religiosos, dentro e fora das igrejas – inclusive nas Folias do Divino – estas, sim, apontadas corretamente por estudiosos como precursoras dos desfiles de rua. Porém, músicas condizentes ao serviço litúrgico também eram tocadas pelos pretos, com formações instrumentais reduzidas e nada barulhentas, onde as violas seriam as protagonistas.

Outra evidência importante são os expoentes históricos: Gregório de Mattos, o “Boca do Inferno”, muito citado como o mais importante poeta do século XVII e seu irmão Euzébio de Matos, também poeta e cantador, mas religioso; Domingos Caldas Barbosa, que fez grande sucesso em Portugal na metade final do século XVIII; Joaquim Manoel Gago da Câmara, também de grande sucesso em Portugal, já no início do século XIX e o Padre José Maurício Nunes Garcia, músico, compositor, arranjador e regente de orquestra, que chegou a Mestre de Capela do Império, também no início do século XIX.

Todos pretos, todos tocadores de viola, que indica que, matematicamente (estatisticamente) se haviam tantos expoentes e tantas violas sendo tocadas, havia grande atividade musical. Todos merecem mais homenagens, pelo menos citações – mas aí já é outra prosa…

E vamos proseando…   

 (João Araújo escreve na coluna Viola Brasileira em Pesquisa às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

PRINCIPAIS FONTES:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. Monografia (Prêmio Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

[Gregório de Mattos], Obra poética, 1992.

Rogério Budasz, A Música no tempo de Gregório de Mattos, 2004; 

Carlos Sandroni, Feitiço Decente, 2001;

Rafael Bluteau, Vocabulário Portugues e Latino. 1712

Manoel de Morais, artigo A viola de Mão, 1985

Ernesto Veiga de Oliveira, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, 2000[1964]

Juan Bermudo, Declaracion de los Instrumentos Musicales, 1555.

John Stow, Annales, or a Generall Chronicle of England, 1631.

Darryl Martin, The early wire-strung guitar, 2006.

Du Bocage, Manuel Maria Barbosa du Bocage, v. 3, 1867.

Inocêncio Francisco da Silva, Diccionário Bibliographico Portuguez, 1859.

Paulo Castagna, artigo Violas Brasileiras, 2017.

Francisco Topa, Edição crítica da obra poética de Gregório de Matos, 1999;

José Ramos Tinhorão, História Social da Música Brasileira, 1998.

Manuel P. Rebello, Obras Poéticas de Gregorio de Mattos, 1882

August de Saint-Hilaire, Voyage dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil, [Tomos 1 e 2], 1833, Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais, [Tomos 1 e 2], 1830 – Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. [Tomos 1 e 2], 1851.

Georg von Langsdorff, Reis rondom de Wereld, in de Jaren 1803 tot 1807, 1819.

Marcelo Fagerlande, Joaquim Manoel Improvisador de Modinhas, 2005;

Louis C. Desaulses de Freycinet, Voyage autour du monde, 1827

Rose de Freycinet, A Woman of Courage, 1817-1820.

– Adrien Balbi, Essai Statistique sur le Royane de Portugal et D’Algarve , 1822.

Henry Bates, The Naturalist on the River Amazonas, 1864.

Spix & Martius, Reise in Brasilien 1817 a 1820,  1823 / Travels in Brazil, 1817-1820, 1824.

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