SERIA O CAIPIRISMO “FAKE NEWS”?

SERIA O CAIPIRISMO “FAKE NEWS”?

 

 “[…] Uma sociedade que não estuda história não consegue entender a si própria porque desconhece suas raízes e as razões que a trouxeram até aqui” (Laurentino Gomes, no livro “1808”).

 

Viola, Saúde e Paz!

Quem pesquisa, descobre e divulga dados históricos, como fizemos no livro “A Chave do Baú”, normalmente enfrenta grandes desafios – sobretudo quando estes dados comprovam realidades diferentes das que a sociedade está acostumada a acreditar por “ouvir dizer”, às vezes, por décadas.

No caso do caipirismo – interpretação defendida com muita dedicação e competência pelo empresário cultural paulista Cornélio Pires entre 1910 e 1945 – a resistência vem de vários fatores, por sermos um povo: muito ligado à religião (onde há várias vezes a visão de que não se deve questionar muito e “a voz do povo é a voz de Deus”); muito criativo e admirador de histórias agradáveis, que fazem sentido, com apelos sentimentais; que não tem muito hábito de leitura, menos ainda de buscar confirmações (dados e fatos) sobre o que se “ouve falar”; onde valorizar mais a “sabedoria popular” faz parte de um tipo nobre de “inclusão social”, em que se alcança importância sem precisar ler e refletir muito; até, finalmente, por sermos um país capitalista, onde são permitidas propagandas para vender (de produtos a serviços como aulas e palestras), não sendo exigido que as divulgações se refiram a verdades comprováveis.

  Todos estes fatores estão perfeitamente “dentro da lei” e Cornélio Pires, inteligentemente, já teria percebido – tão inteligente que chegou a registrar, em um dos seus livros, que o que escrevia eram “casos e mentiras”, o que nos faz lembrar que seus textos eram artísticos: ele sequer se colocava como “pesquisador” ou “fornecedor de dados científicos, históricos, comprováveis”. Sem dúvida, Pires era genial.

Haveria de fato uma “divisão” social entre pessoas ligadas ao interior e as pessoas “da cidade”? Haveria algum preconceito envolvido, contra o qual Pires se arvorou a ser o “defensor”? Muito provavelmente, tanto no início do século XX e até hoje, sim; mas…  a “pegadinha histórica” é isto não teria existido sempre assim. Repetimos: é genial implantar esta visão, pois (como se percebe até os dias atuais), promove um “entendimento coletivo” da existência de uma “cultura ancestral” que precisa ser defendida. Assim, não apenas os que sofrem preconceito, mas vários membros da sociedade se sentem na posição de também defender a tal “cultura”, pois sem dúvida toda luta contra o preconceito é nobre, louvável, digna. Sem dúvida, também, por outro lado, faz quem luta se sentir importante. Somam-se a estes altruístas e “simpáticos à causa”, aqueles que defendem também o mercado de consumo relacionado – conforme já dissemos, tudo totalmente permitido pelas leis brasileiras.

Outra “pegadinha histórica” é que o termo forte, muito bem escolhido por Cornélio Pires para dar nome a esta possível cultura – “caipira”, já existia há cerca de 100 anos antes (localizamos registros desde 1822) e nunca teria sido utilizado da forma que Pires colocou. As primeiras décadas apontam “caipira” principalmente como um apelido político – por exemplo, como hoje se chama de “tucanos” (os do PSDB); não se observava preconceito ou pejorativismo pois as pessoas o utilizavam para si mesmas (como hoje, nas divulgações do citado partido, o pássaro tucano costuma ser representado).

Já a divisão social onde se constata o preconceito só faz sentido a partir da consolidação das fases da Revolução Industrial – exatamente a que deu origem ao atual capitalismo, visão de criação e venda de produtos em série, alto comércio. Há claros registros a partir da década de 1850, por exemplo, de pessoas serem chamadas de “caipiras” por serem proletários, “trabalhadores de base” – não apenas os ligados à atividade rural, muito menos só às pequenas propriedades, mas também estrangeiros, negros e outros; se era uma “cultura”, portanto, era uma cultura de proletários.

Outra ideia genial é querer ligar o termo “caipira” como originário da língua tupi-guarani – assim sugerindo ligação desde o início do Brasil (ou até antes, talvez?). São várias as inconsistências históricas e todas elas poderiam ter sido fundamentadas já na época de Cornélio, mas… as obras dele não eram científicas, lembra? Não há nada de errado dele fazer ligações e interpretações pessoais em ações artísticas. E se estava a vender bem, que mal tem, não é mesmo? Além disso, à época, Cornélio contava com colaborações de seu primo Amadeu Amaral, considerado um estudioso importante, que chegou a publicar um “Dialeto Caipira”, baseado em uma pesquisa de campo e literária que teria feito em uma pequena região do interior paulista. O mais curioso, entretanto, é que Amadeu Amaral não apontou sequer possíveis origens do principal termo de seu trabalho – “caipira” – nem as inconsistências observadas pelos registros que citamos, desde 1822. Amadeu Amaral não teve contato (ou não quis apontar), por exemplo, recolhas de época feitas junto a indígenas pelos padres José de Anchieta e João Daniel, e de estudiosos como Saint-Hilaire e Carl Martius.  

O caso de Amadeu Amaral é um pouco mais sério, por serem trabalhos considerados “científicos” – mas do início do século XX… e todo ser humano (inclusive os estudiosos) podem às vezes se enganar. Os dados apontados por ele já tem mais de 100 anos: bem mais curioso é que centenas de estudos posteriores não tenham questionado e reinvestigado as inconsistências – mas, como já dissemos, as histórias de Cornélio Pires são agradáveis, convenientes, fazem sentido, defendem inclusão social e vendem bem. O que teria tornado estas histórias serem hoje consideradas até como “verdades científicas” foram reinterpretações de outros estudiosos, a partir da década de 1960, onde se destaca o Dr. Antônio Cândido – que citou a “cultura caipira” dos trabalhos artísticos de Pires como se fosse realidade científica de notório conhecimento e, ainda mais, que seria aplicável a toda uma grande região chamada “paulistânia” – outro conceito apenas citado, sem apresentação de comprovações e desenvolvimentos científicos; neste último caso, na época, Candido não citou sequer o nome do autor em que teria se baseado.

Naturalmente, o bandeirantismo é um fato histórico… mas para defender que a possível “cultura” teria surgido em área tão extensa, o mínimo que um estudioso precisaria fazer seriam pesquisas de campo por toda a citada área, coletando e contextualizando dados (sendo que, para alegar que aquela cultura seria diferente do resto do Brasil, a pesquisa de campo teria que ter sido feita por todo o país, apontando e contextualizando as diferenças. Candido teria feito pesquisas apenas em algumas poucas localidades, num único trabalho sobre o tema que teria feito.

Porém… esta é outra história muito bem inventada, concordam? Conveniente, agradável a centenas de corações “saudosos da roça”, ou simpáticos à causa (principalmente paulistas), ou a outros estudiosos, que se ancoram sem questionar na importância acadêmica do nome do Dr. Cândido em outras áreas… Sem contar, naturalmente, que é história ainda melhor para ajudar a “vender” muitas coisas até hoje em dia – ou, no caso do Dr. Candido, a conseguir bons votos para sua campanha a Deputado Estadual, que aconteceria logo em seguida à publicação de seus estudos.

 O caipirismo não seria exatamente uma “fake news”, como as entendemos hoje, pois foi proposto em textos artísticos, sem nenhuma intenção de ser verdade histórica – portanto, “acredita quem quiser” (e é bom lembrar, vivemos num país com Liberdade de Credo e Liberdade de Expressão). O fato, porém, de ser apontado depois em estudos “científicos” não o comprova, visto que não há registros de época anteriores a 1910 – e vários contextos históricos que o desabonam, além do “entendimento coletivo” ser bastante conveniente e rentável, podendo por isso não ter sido antes contextualizado com todas as evidências de inconsistências históricas que representa.

Após duzentos anos de uso do termo “caipira” no Brasil e em Portugal, nos colocamos a reinvestigá-lo apenas por causa da sua utilização no modelo que se tornou o mais famoso da Família das Violas Brasileiras – também pouco aprofundadas em estudos anteriores porque o modelo Viola Caipira acompanha, pelo nome, o citado “entendimento coletivo” e seus atrativos. Naturalmente, este modelo tornou-se o mais rentável, comercialmente – e os demais foram mais deixados de lado.

O atrativo comercial implantado por Cornélio Pires, somado a um impreciso “aval científico” de vários estudiosos importantes, a partir da década de 1960, chamou a atenção de empresas que investiram na expansão do mercado “caipira” para uma versão que romperia os preconceitos, pelo uso de novas roupagens, atrelada ao termo “sertanejo”, “música sertaneja” – hoje, “sertanejo universitário”. “Cultura sertaneja”, poderia alguém citar em textos artísticos? Sim… mas uma “cultura de mercado”, não uma cultura ancestral brasileira.

Outra curiosa “pegadinha histórica” – entre tantas incoerências que observamos ao comparar a História dos cordofones e a História Ocidental desde o século II aC. – é que o termo Viola Caipira, ao contrário de outros como “cultura caipira”, não “caiu no gosto popular” desde 1901 (mais remoto registro que observamos), sendo que o próprio Cornélio Pires não o utilizava: só a partir da década de 1970, após surgir em discos de Tião Carreiro e em contexto de concorrência com o estilo sertanejo então em ascensão… mas aí já é outra prosa…

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna Viola Brasileira em Pesquisa às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).      

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JOÃO ARAUJO

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