CHORA, VIOLA…

CHORA, VIOLA…

“[…] Algumas vezes, [Nóbrega] estando em Piratininga com poucos Irmãos, mais afastado de negócios, se metia na sacristia com um devoto amigo, que lhe tangia uma viola às portas fechadas e ele, entretanto, se estava desfazendo em lágrimas com muita serenidade.”

(Padre José de Anchieta, entre 1562 e 1570)

Viola, Saúde e Paz!

Um dos maiores apoiadores de nossas publicações é Richard Konig, de Belo Horizonte – MG. Ele costuma sempre postar, em suas redes sociais virtuais, fotografias de petiscos (“tira-gostos”) maravilhosos que prepara – postagens às quais sempre legenda com a frase: “Chora, cachaça!”…

O bom humor típico das redes certamente advém da frase “Chora, Viola!” – título e frase-refrão (praticamente um “mote”) de música de Lourival dos Santos & Tião Carreiro, lançada por este último e seu parceiro mais destacado, o Pardinho, em 1973. Esta viola, posta a chorar, também estaria relacionada às lendas sobre a afinação que Tião e a maioria dos caipiristas de hoje em dia usa em suas violas, a afinação “Cebolão”: reza a lenda que este nome viria do fato de que, quando os violeiros a utilizam, fazem as moças chorarem…

Outra lenda que também já ouvi, mais ou menos relacionado à viola que chora (ou sofre), vem do compositor maranhense, que apesar disso tinha por alcunha Catulo da Paixão Cearense (1863-1946). Segundo um poema de Catulo, Jesus gostaria de ouvir São Pedro pontear viola numa canoa; e São Pedro dizia que a viola não foi feita da madeira da canoa, mas da Cruz de Cristo: “[…] a viola ainda sofre tudo que sofreu Jesus!”. Esta lenda ouvi tantas vezes, pelas declamações de meu querido e saudoso padrinho Rolando Boldrin (1936-2022), que me atrevi a musicá-la – por solicitação e sugestão de outro ídolo meu, o historiador baiano Dr. José Américo Lisboa Júnior, que escreveu uma excelente biografia de Catulo: “Da modinha ao sertão: vida e obra de Catulo da Paixão Cearense”.   

Lendas à parte, não conseguimos dados precisos de época sobre a afinação Cebolão, mas tudo aponta que seja uma afinação surgida em São Paulo; se não foi por lá que surgiu, pelo menos é onde se consolidou, principalmente após o sucesso comercial do modelo Viola Caipira, a partir da década de 1970. Certo é que nos modelos remanescentes da Família das Violas Portuguesas, só há uma afinação “aberta” como a Cebolão (dizemos “afinação aberta” quando as cordas refletem, soltas, um acorde). Já nas violas da Família das Violas Brasileiras, as afinações abertas aparecem bastante – além da Cebolão, temos também Rio Abaixo, Rio Acima, Paraguaçu e outras.

Nossa melhor aproximação científica: o mais remoto registro da afinação Cebolão que encontramos viria de pesquisas de campo (*1) da década de 1940, realizadas em Goiás, pelo folclorista carioca Luiz Heitor Correia de Azevedo “Luiz Heitor” (1905-1992) – onde curiosamente seria chamada “maxabomba” ou “italiana”, embora houvesse mais duas afinações diferentes, chamadas “paulista” e “paulistinha”; e já na década de 1950, apareceria consolidada com o nome de “Cebolão” segundo outras pesquisas de campo (*2) – do folclorista paulista Alceu Maynard de Araújo (1913-1974). Tempo bom em que folcloristas buscavam registros para contribuir com as pesquisas e não apenas lendas para distrair…

Conseguimos, entretanto e coincidentemente, descobrir que a “viola chorosa” (ou, “que fazia chorar”) estaria no contexto da mais remota citação ao nome do instrumento registrada no Brasil, referente aos últimos anos de vida do jesuíta português Manuel da Nóbrega (1517-1570). O texto destacado no início de nosso artigo aparece no livro “Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1554-1594)”, edição organizada pelo crítico literário e historiador baiano Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947) e, em termos semelhantes, no livro “Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil”, escrito pelo clérigo português Simão de Vasconcellos (1597-1671) – além da citação por alguns importantes musicólogos contemporâneos: o Doutor Paulo Castagna, em sua dissertação de 1991 (“Fontes bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII” e o Doutor Marcos Tadeu Holler, em sua tese de doutoramento “Uma História de Cantares de Sion na terra dos Brasis: a música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759)”.

Esta mais remota citação não é citada assim nas pesquisas sobre viola, mas tivemos a perspicácia de analisar o contexto: Anchieta teria citado Nóbrega adoentado a partir de 1560 – conforme confirmado pelo próprio Nóbrega, no livro “Cartas do Brasil”, de 1931 (outro também organizado por Afrânio Peixoto) – sendo a única carta encontrada que Anchieta tenha citado Nóbrega doente, eles estando juntos: “Ao geral Diogo Lainez, de Piratininga, março de 1562, recebida em Lisboa a 20 de setembro do dito ano”.

A nossa “sorte” de conseguir apontar o mais remoto registro de “viola” no Brasil, quando tantos já teriam lido antes os mesmos registros, vem da metodologia que usamos no livro “A Chave do Baú” – essa tal dessa “chave”, na verdade, é nada mais nada menos que uma metodologia científica, um “método” que consiste em mergulhar atrás dos registros, o máximo que se puder conseguir; para então organizá-los e analisá-los na ordem cronológica, com bastante atenção.

Mas, para ser sincero, nem tínhamos observado que a viola, portanto, estaria “ligada a lágrimas” desde o começo da Colônia… Na verdade, foi outro amigo, o botucatuense Osni Ribeiro quem nos apontou, brincando, a interessante “coincidência”… e que acaba por ser uma história agradável, daquelas de se contar “à beira do fogo”, mas que é verdade, tem lastro histórico em registros – ou seja, não é preciso inventar nenhuma lenda, a viola já tem ótimas histórias, verdadeiras.

Daí, até como estes instrumentos chamados de viola se desenvolveram e outras tantas afinações que já foram catalogadas (3), já é outra prosa…   

E vamos proseando…    

 (João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

(Para uma relação das principais afinações, número de cordas e demais detalhes de todas as violas portuguesas e brasileiras, baixe de graça em PDF – cortesia João Araújo / Viola Urbana Produções:

https://www.facebook.com/groups/ViolaBrasileiraEmPesquisa/permalink/1232039824397441/ ).

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JOÃO ARAUJO

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