QUATRO VIOLEIROS ESQUECIDOS PELA HISTÓRIA
Quatro Violeiros esquecidos pela História
Viola, Saúde e Paz!
Quem já leu sobre a história da música popular brasileira deve ter reparado que as mais remotas citações costumam ser a partir do choro, ali por meados do século XIX – sendo muito citadas, como nossas origens, as modinhas e lundus.
Desta forma, portanto, desprezar-se-iam cerca de 350 anos de nossa História – quando há registros de instrumentos chamados de violas tocados no Brasil desde o início da Colonização. Também são desprezados os múltiplos caminhos que aquelas violas seguiram até os dias atuais; sequer a óbvia (por ser numericamente expressiva) evidência delas no caipirismo. Violas não servem, então, para as estatísticas da “música popular brasileira”? Por que?
É o que citamos em nosso livro “A Chave do Baú”, em capítulo carinhosamente elaborado: raros são os estudos sobre o samba, por exemplo, que contemplam suas raízes nas violas dos escravizados, nos batuques e lundus – dois nomes de “ritmos”, mas que eram também nomes de reuniões para se cantar, dançar e tocar, mas não apenas tocar instrumentos de percussão. Nos batuques – de longe, a manifestação popular mais evidente por todo o país nos primeiros séculos – tocavam-se instrumentos de harmonia, de pelo menos dois tamanhos distintos, tanto para canções dolentes quanto nas animadas danças. “Violas”, eram chamados os instrumentos! Além disso, antes dos mais remotos registros conhecidos sobre o choro, estas mesmas pessoas pretas (escravizados e forros), com estes mesmos instrumentos, tocavam em eventos religiosos, dentro e fora das igrejas (procissões, folias, etc.).
A precariedade de dados e de estudos existentes, sobretudo sobre violas, além de preconceitos diversos, podem ter sido as causas desta desconsideração histórica – e ajudar a suprir esta lacuna é dos principais objetivos de nossas pesquisas (para não dizer “de toda nossa carreira artística”).
Em metódica reinvestigação aos estudos feitos nos últimos 60 anos (e às fontes apontadas por estes, que no conjunto remetem à História dos cordofones de origem ibérica desde sempre), constata-se, por exemplo, que não há evidências de violões no Brasil antes da década 1820, tendo estes vindo a se consolidar só na década de 1840. Já a primeira menção a um possível “cavaquinho” vem do ano de 1820 – tendo demorado alguns anos até se observar que este tenha se consolidado por aqui. Antes de 1820, portanto, é bom considerar com carinho os inúmeros registros de instrumentos chamados de viola por aqui, mesmo com os poucos detalhes narrados.
Esta afirmação se ancora em estudos e registros de respeitáveis portugueses, espanhóis, brasileiros e outros, sobre dados levantados em instrumentos remanescentes, métodos, romances, registros de alfândega, periódicos e contextualizações histórico-sociais.
Destacamos quatro grandes personagens até bastante citados em estudos, mas curiosamente não tão citados como tocadores de viola; estes seriam, possivelmente, os quatro maiores violeiros da nossa História, por terem pilares da nossa música popular (sim, nos atrevemos a afirmar: “música popular” – às vezes tão popular que era executada nas ruas). Dados, há – não entendemos porque tantos não os citam.
GREGÓRIO DE MATTOS GUERRA (1636-1696): soteropolitano muito citado como grande poeta, o “Boca do Inferno” (e seu irmão, Eusébio) tem registros como tocador de viola segundo: Nuno Marques Pereira (1939 [ca.1823]); Manuel Pereira Rebello ([MATTOS], 1882, p. 23); Dr. Paulo Castagna (1995, p.4); Fernando da Rocha Peres (jornal Folha de SP, 20 de outubro de 1996); José Ramos Tinhorão (1998, p.55-76); Dr. Francisco Topa (1999); Dr. Rogério Budasz (2001, p.12) e Dr. Ivan Vilela (2011, p. 123).
DOMINGOS CALDAS BARBOSA (1740-1800): carioca, autodenominado “Lereno Selinuntino”, o padre e poeta árcade famoso até em Portugal foi citado como tocador de viola por: Luís da Câmara Cascudo (2005 [1954], p. 584); Bruno Kiefer (1977); José Ramos Tinhorão (1998, p. 115-125); Adriana de Campos Rennó (1999); Dr. Rogério Budasz (2001, p. 73-76); Dr. Paulo Castagna (2006) e Dr. Ivan Vilela (2011, p. 124-127).
JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA (1767-1830): o “Padre Mestre” carioca – maestro, compositor, arranjador e Mestre de Capella Real de D. João VI – teria aprendido a tocar e depois iniciado aulas que deu durante décadas em violas, segundo: Manoel Araújo Porto Alegre (1856, p. 359); Innocencio Francisco da Silva (1859, p. 203-246); Dr. Manoel Duarte Moreira de Azevedo (1861, p. 295; 1877, p. 323); Dr. Joaquim Manoel de Macedo (1876, p. 481); Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay (1895, [tomo IV], p. 229); Dra. Cleofe Mattos (1996, p. 44) e Dra. Márcia Taborda (2004, p. 14-16).
JOAQUIM MANOEL GAGO DA CÂMARA (ca.1771-ca.1838): também carioca, ligado às mais remotas modinhas brasileiras e que também foi destaque em Portugal, foi citado unicamente por Adrien Balbi (1822, p. 213) como tocador (e até “inventor”!) de um cavaquinho – porém as demais citações da época apontaram que tocasse pequenas “guitares” (que seriam as violas machetes ou machinhos), pelos franceses Louis Claude Desaulses de Freycinet (1827, p. 216) e sua esposa Rose (BUDASZ, 2001, p. 72); ou que tocava “viola”, como citaram os portugueses Manuel du Bocage (1867, v.2, p.243 ), Inocêncio Francisco da Silva e Feliciano de Castilho Barreto e Noronha (DU BOCAGE, 1867, v.2, p. 244-245). A estes citadores estrangeiros, secundaram o entendimento de Joaquim como tocador de viola os brasileiros José Ramos Tinhorão (1998, p. 115); Dr. Rogério Budasz (2001, p. 72); Dra. Márcia Taborda (2004, p. 41); Dr. Marcelo Fagerlande (2005) e Dr. Eric Martins (2005, p.21).
É preciso reconhecer que José Ramos Tinhorão (1928-2021) já defendeu a origem da música popular brasileira a partir das Violas Pretas – porém o jornalista paulista não teria apontado tantos dados e desenvolvimentos metodológico-científicos quanto acrescentamos agora. E é agora que chegamos a algumas questões: terá sido coincidência que tantos pretos tenham apresentado tanta excelência musical que seus registros prevaleçam até hoje, tendo vivido em épocas que as violas eram tão tocadas? E terá sido também por coincidência que suas relações com os instrumentos sejam tão pouco lembradas, a não ser Domingos Caldas (este, mais difícil negar, vez que seus livros trazem nos títulos “Viola” de Lereno)?
Por que será que “dá este branco” na mente de tantos estudiosos e historiadores?
Vamos apresentando dados e perguntas… E vamos proseando…
(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).
REFERÊNCIAS:
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BALBI, Adrien. Essai Statistique sur le Royane de Portugal et D’Algarve. 2ª ed. Paris: Chez Rey et Gravier, 1822.
BUDASZ, Rogério. The Five-Course Guitar (Viola) in Portugal and Brazil in the Late Seventeenth And Early Eighteenth Centuries. 2001. Tese (Doutorado em Filosofia) – Graduate School University of Southern California, Califórnia (EUA), 2001.
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