30 Mar, 2023

A ORIGEM CIENTÍFICO-HISTÓRICA DAS MODAS-DE-VIOLA

A origem científico-histórica das modas-de-viola

fidicinem praevium habens, et praecentorem, cantilenae notulis alternatim in fidicula respondentem.

“Havendo execução de cordofones e instrução prévia, as notas cantadas alternam em correspondência com as da fidicula [cordofone]”].

[Giraldi Cambrensis (ca.1146-ca.1223), in Descriptio Kambriae, tradução nossa *1].

Viola, Saúde e Paz!

Dos maiores desafios a quem pesquisa a sério e a fundo a musicologia – com olhar muito atento às variações de nomes e conceitos desde a antiguidade – é pegar o “joio” (os entendimentos populares de termos que passam de boca em boca) e separar do “trigo” (que seria o que se pode afirmar com base em registros de época, pesquisa e reflexão).

Atentos, então, ao nome “viola” para instrumentos musicais e seus ancestrais desde os mais remotos registros em latim (século II aC.) até os dias atuais, deparamo-nos com a curiosa e crescente incidência do termo “moda-de-viola”, em centenas de fontes pesquisadas, a partir do início do século XX, no Brasil – que  creditamos à dedicação do genial empresário cultural paulista Cornélio Pires (1884-1958), conforme citamos no nosso livro “A Chave do Baú”.

É importante frisar: Cornélio Pires teria batizado de “moda-de-viola” uma maneira específica de tocar viola e cantar em duetos simultâneos – duetos que, nas músicas que ele observou e até hoje, seriam principalmente duetos terçados paralelos (ou seja, cada nota musical da melodia, tanto da viola quanto do canto, é acompanhada de um par, que seriam outras notas em intervalos de terça maior ou menor com relação as primeiras).

Embora o empresário tenha sido capaz de observar e possivelmente terá criado um interessante nome para o fenômeno (ou “técnica”), no entendimento popular (normalmente superficial), até os dias atuais utiliza-se o termo moda-de-viola sem muito critério, muitas vezes para qualquer tipo de execução de viola dedilhada. Em nossa observação, possivelmente única até agora, esta generalização se daria por curiosa coincidência de “legado” dos dois termos originais escolhidos: “moda”, pelo menos desde o século XVIII, seria utilizada por portugueses como genérico para qualquer tipo de canção – assim como “viola”, pelo menos do século XIV ao XIX, foi muito utilizado como genérico para qualquer tipo de cordofone portátil, como alaúdes, guitarras e vihuelas.

É curioso… mas são fatos apontáveis por registros, e contextualizáveis por alguma lógica histórico-social (chamar pelo genérico “moda” simplesmente “qualquer música” tocada por “violas”, ou seja, “qualquer cordofone portátil” faz sentido). A junção de dois genéricos, por Pires, teria gerado um terceiro termo que, parecendo sina ou castigo, depois viria a se tornar também um genérico na boca do povo. Isso aponta como são passíveis de serem “joios” os entendimentos que não se baseiam em registros, os famosos “boca a boca” – estes que parecem ser “só nas bocas, mesmo”, sem passar pelas mentes… naturalmente, este comentário incluimos só de brincadeira, para provocar, contando e pedindo que ninguém nos leve a mal.

A existência comprovada daquele determinado tipo de execução (ou técnica) de “voz e canto duetados simultâneos”, e mesmo a criação de um nome específico, não comprovam, entretanto, que a técnica tenha sido inventada naquela determinada época e local – como vários caipiristas agradam de acreditar e até defendem. No máximo, do nome há comprovação de que teria surgido na época de Cornélio Pires – mas só o nome. E para desmentir o enganoso entendimento, basta apontar existência anterior da técnica.

A quem estudar pelo menos um pouco de História da Música Tonal (ocidental) não é difícil constatar que as modas-de-viola refletem um período bem mais antigo, entre as estudadas fases evolutivas chamadas MONOFONIA e POLIFONIA: a monofonia (“um som”, a partir do grego), teria ocorrido em tempos de predominância de cantos em uníssono, como os chamados Cantos Gregorianos – e a polifonia (“vários sons”), a última fase evolutiva observada, que é praticada até hoje, quando variações de melodias (ainda chamadas de “vozes”, mesmo quando executadas por instrumentos musicais) se intercalam e se completam em acordes, contracantos e outros artifícios, por exemplo, nas execuções orquestrais.

Este desenvolvimento tem origem nos estudos dos intervalos musicais, cujo laboratório e inspiração teriam sido de/em execuções de canto, depois tendo passado a ser aplicados também em instrumentos musicais. Estudos estes que teriam sido iniciados na Europa pelo monge italiano Guido D’Arezzo (992-1050), autor de livros como o Micrologus, publicado em 1026. Já execuções de solos de instrumento de corda + canto, em paralelo, já com aplicação de intervalos musicais (duetos), como as modas-de-viola, apontam características típicas do auge do Trovadorismo (séculos XII e XIII), antecessor dos primeiros indícios conhecidos de execuções que depois caminhariam para a polifonia como a utilização de acordes como uma base para cantos. Com isso podemos localizar práticas como as modas-de-viola aproximadamente entre os séculos XI (quando já se utilizariam intervalos de quarta e de quinta) e o século XII, quando já localizamos estudos sobre acordes, por exemplo, no tratado Quӕstiones in musica, atribuído ao padre francês Rudolf of St. Trond (1070-1138). É bom lembrar que a música original dos menestréis mouros, invasores da Península Ibérica, não aponta o uso de acordes, sendo chamada de “atonal”.    

Esta reflexão teórico-histórico-social já seria, talvez, suficiente – mas o bom mesmo é encontrar registros de época para sustentar, concorda? Pois recentemente encontramos talvez o mais remoto registro – e foi por pura sorte, enquando estávamos “a dar mais uma olhada” em fontes de nossas pesquisas pelos termos fides e fidula. Estes dois termos, em coincidência já um pouco assustadora, teriam sido utilizados exatamente como genéricos (!) pelos romanos, para designar cordofones e, até hoje, são erroneamente entendidos como “lira”, “cithara” ou outros instrumentos – mas é pura superficialidade, puro “joio”. Só se pode afirmar, com base nos registros, que teriam sido “cordofones”, ou seja, instrumentos musicais de corda – e não liras ou citaras, nomes já existentes e utilizados em textos romanos.

Não podemos deixar de dar crédito ao musicólogo estadunidense William Smythe Babcock Mathews – “W.S.B. Matheus” (1837-1912), que na página 46 de publicação de 1891 de seu livro A Popular History of the Art of Music (Uma História Popular da Arte da Música) nos chamou a atenção pelo uso do termo fidicula – embora ali com grafia incorreta, “fidiculare” e com apontamento de data também equivocado, eleventh century (“século XI”).

Os pequenos equívocos (sejam gráficos ou do autor) não fariam diferença, pois nossa metodogia aponta para a checagem aos originais – e foi assim que chegamos ao texto original, destacado no início, que teria sido escrito pelo religioso e historiador britânico Giraldi Cambrensis – citado às vezes como “Geraldus Cambrensi”, “Gerald Barry”, “Gerald of Wales” – e que, conforme também já destacamos, teria vivido no século XII e não no XI.

Foi então que observamos mais alguns equívocos de transcrição (como o termo “tibicinem” e não o correto, fidicinem, no início do trecho) e, principalmente, um importante equívoco de interpretação do texto: para Mathews, segundo a narrativa de Cambrensi, o Rei Richard de Clare, em deslocamento entre a Inglaterra e o País de Gales, “[…] dispensou seus assistentes e perseguiu sua jornada indefeso, precedido por um menestrel e um cantor, um acompanhando o outro com um fiddle” (tradução nossa *2); fiddle, no caso, é um genérico (!) muito usado em textos em inglês para cordofones friccionados por arco – em alemão usa-se fidel, em textos em espanhol e português, fidula. Estes termos são outros exemplos de “interpretações superficiais populares”, desta vez mais prejudiciais por serem utilizados até por musicólogos: ao tempo das fidiculas ainda não haveria utilização de arcos na Europa, observando-se claramente que teriam sido instrumentos dedilhados. Cada vez mais assombroso, portanto, se mostra o uso de nomes sem fundamentação correta se pensar nas fidiculas como possíveis “tataravós” das atuais violas, que séculos mais tarde sofreriam o mesmo problema de confusão de nomens equivocados por poderem ser tocadas de duas maneiras diferentes (dedilhadas ou friccionadas), o que acabou por se consolidar no nome bivalente atual, em português.

Voltando a Mathews, este teria se enganado na tradução/interpretação porque, na verdade, pelo contexto do texto em latim, se observa que Cambrensis teria utilizado uma figura de linguagem, não tendo se referido a presença física de músicos. Todo o trecho descreveu a insensatez do monarca ao entrar numa floresta com poucos homens, desarmados: estes homens teriam seguido o lider deles “como as notas do cordofone seguiam as do canto” (conforme já destacado e traduzido). Cambrensis seguiu narrando e contextualizando a derrota nec mora (que traduzimos como “sem demora”), citada logo em seguida ao trecho em destaque (a tal figura de linguagem).

Esta descoberta já seria, em si, bastante interessante – porém mais se descobriu nos relatos do religioso Cambresis, que teria viajado bastante pelo então território europeu da época e, para nossa sorte, teria bom conhecimento musical e atenção a detalhes. No capítulo “Canções Sinfônicas e Cantilenis Organicis” (este último, que traduzimos como “Cantorias Populares”), descreveu que entre povos ancestrais aos que hoje fazem parte do Reino Unido haveria cantos coletivos bem diferentes de outros lugares, por não serem em uníssono, mas com muita vocum varia (“variação de vozes”). E ainda destacou que mais ao Norte, “além da Humbria, nos limites de York”, haveria um tipo de canto harmonizado similar, mas com uma particularidade: “A duas vozes, diferentes apenas pelos tons e modulações variadas: uma abaixo, mais murmurante, e outra, acima, ambas ao mesmo tempo emocionantes e deliciantes” (tradução nossa, *3) – que observamos a partir de transcrições de vários manuscritos que teriam sido feitas por um também clérigo e historiador, o inglês James F. Dirok (1810-1876) – livro Giraldi Cambrensis Opera da compilação Chronicles And Memorials of Great Britain and Ireland during the Middle Ages (“Crônicas e Memórias da Grã Bretanha e Irlanda durante a Idade Média”), publicada em 1868.

Cambrensis ainda teria acrescentado, sobre aquele curioso tipo de canto, que praticamente todos, inclusive as crianças, pela prática por longa data não cantavam em uníssono ou múltiplas vozes, mas só saltem dupliciter (“em duetos”); e que, por ser apenas das populações mais ao Norte, poderia ter sido herdado de dinamarqueses e/ou noruegueses, que teriam tido mais influência naquela região.

Dos registros de Cambrensis – portanto, do século XII – temos notas musicais emitidas por cordofones em correspondência com notas cantadas e cantos em duas vozes, não tendo sido infelizmente apontado quais os intervalos utilizados, apenas que uma das “vozes” (entenda-se “linha melódica”) era bem mais grave e com menos volume que a outra, o seu par – exatamente o que ainda acontece nas modas-de-viola e outros duetos terçados, onde se costuma usar as denominações “terça abaixo” e “terça acima” (mesmo quando alguns outros intervalos são utilizados).

Para situar como aquele costume pode ter chegado a Portugal (onde a partir do século XVIII observamos modinhas cantadas em dueto terçado) e, de lá, para as modas-de-viola brasileiras, acrescentamos que a língua e a cultura celta (de povos e regiões depois chamados “Galia” pelos romanos), ter-se-ia espalhado por grande parte do território europeu, incluindo a “Ibéria” (ou “Península Hyspanica”). Outro fator de expansão do tipo de cantoria, já citado, teriam sido os Trovadores, que com poesias cantadas ao som de cordofones teriam surgido a partir do século VIII pela chamada Invasão Moura da mesma península (que inclui a região da Lusitânia, hoje, Portugal), atingindo auge também por praticamente toda a Europa da época nos séculos XII e XIII.

Trovadores teriam influenciado muita coisa nas línguas então em evolução, não sendo coincidência que exato no citado auge do Trovadorismo se tem registro do surgimento do termo “viola” em latim, occitano e catalão – e mais de uma dezena de variações deste em outras línguas em evolução à época – mas isso já é outra prosa…    

Vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

*1 – fidicen (na flexão fidicinem) é habitualmente traduzido como “tocador de cordofone”, porém, como em outras fontes observadas desde Cicero (ca.106-ca. 46 aC.), entende-se que neste caso o autor não teria se referido ao tocador, mas ao toque de cordas – possivelmente, pela sequência do texto, até ao “tocar fides (cordas) acompanhado de canto (cano, na flexão cine)”. Já sobre praecentorem, palavra hoje não apontada em dicionários, entende-se como relativa a praeceptor (“instrutor, professor”).

*2: no original: he dismissed his attendants and pursued his journey undefended, preceded by a minstrel and a singer, the one accompanying the other on the fiddle.

*3: […] binis tamen solummodo tonorum differentiis, et vocum modulando varietatibus; una inferius submurmurante, altera vero superne demuleente pariter et delectante

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JOÃO ARAUJO

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22 Mar, 2023

BEAUREPAIRE-ROHAN E A DISTORÇÃO DO SIGNIFICADO DE “CAIPIRA”

Beaurepaire-Rohan e a distorção do significado de “caipira”

On doit s’honorer des critiques, mepriser la satire, profiter de ses fautes et faire mieuax.

(“Devemos ficar honrados pelas críticas, desprezar as sátiras, aproveitar nossas faltas e fazer melhor”).

(creditado ao poeta francês Jean-Baptiste-Louis Gresset (1709-1777) por Beaurepaire-Rohan, no prefácio de seu Diccionario de Vocabulos Brazileiros, publicado em 1889).

Viola, Saúde e Paz!

Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire-Rohan (1812-1894) foi um militar carioca que começou sua carreira muito jovem e atingiu o alto posto de Marechal do Exército. Descendente da nobreza francesa e filho de mãe anglo-portuguesa, teria se formado em Física e Matemática, chegou a presidente de algumas províncias brasileiras e teve vários títulos de honra.

Apesar de seu contato com várias línguas, visto sua filiação, o que não encontramos é porque o militar e político – então já “Tenente-General” e com o título de “Visconde Beaurepaire-Rohan” – entendeu que estaria apto a escrever um Diccionario (transcrevemos grafias observada nas fontes); e, principalmente, porque teria se achado apto a criticar estudos “etimológicos” (segundo entendimento dele). Talvez sua justificativa estivesse na afirmação feita no prefácio: “Parece incrivel que a lingua portugueza não tenha ainda um diccionario officiaI, que nos sirva de auctoridade” – onde o sem dúvida grande leitor-pesquisador (pelo menos pelas fontes listadas) parece não ter considerado o trabalho de décadas feito em Lisboa pelo lexicógrafo londrino Rafael Bluteau (1638-1734) – ou, talvez, se referisse apenas à língua “portuguesa” falada no Brasil.

O Visconde apontou um estudo interessante sobre grafia de termos “da língua Tupi” (que, na verdade, seriam do tupi-guarani), mas, no todo, observam-se muitos equívocos e imprecisões em seu trabalho – aliás, como sempre foi comum em dicionários: há grande quantidade de termos apontados e pouco aprofundamento sobre cada um deles. É preciso sempre ler dicionários com atenção e refletir bastante. Sobretudo, neste caso, onde o autor não teria sido especialista em linguística, sequer em língua portuguesa – foi um nobre, militar, político e formado em Exatas.

Para tentar ser mais polidos, sempre que possível tentaremos evitar o termo “equívocos”, principalmente quanto a este respeitável senhor – que, inclusive, confessou ter publicado um pouco às pressas o trabalho, por já estar “em avançada idade” – e até pediu indulgências e colaborações para o melhorar. Afirmamos, outrossim, que “entendimentos peculiares” são bastante observados em seu dicionário…

Qual o problema disso?

O problema nunca é de trabalhos terem falhas, pois são publicados por seres humanos: o problema sempre está em outros seres humanos que, a partir de citações “peculiares”, não as conferem, repetindo-as em cadeia, perpetuando assim conceitos difusos – seja talvez por simples erro humano, preguiça ou por quererem se aproveitar de uma “peculiaridade” conveniente a algum propósito particular.

A nós, parece muito clara a mensagem destacada no início: “aproveite suas falhas para fazer melhor”: disso, entendemos que tentar “fazer melhor” seja reanalisar um texto com olhar bem atento, as fontes que teriam sido utilizadas e acrescentar algo ao já feito antes – muito distante, portanto, do que simplesmente citar o que foi escrito, mesmo que seja agradável. É, portanto, o que fazemos aqui – a começar com a leitura atenta do prefácio da obra, que sempre revela muito.

Conforme já citamos no livro “A Chave do Baú”, o dicionário de Beaurepaire-Rohan entra na cronologia de estudos como o primeiro registro conhecido de distorção do termo “caipira”, que, junto a “caipora”, teria sido utilizado em Portugal e no Brasil desde antes de 1822 como apelido político; daí, a partir da década de 1830, “caipira” seguiria como o único apelido, vez que “caipora” já apareceria em dicionários com o significado atual, relacionado a lendas de seres fantásticos. Só a partir da década de 1840 teria passado a também ser utilizado para ridicularizar a classe proletária. Este tipo de pejorativo teve registros em várias partes do Brasil, como em São Paulo, onde, durante o chamado “Ciclo do Café”, o proletariado tinha grande representatividade na atividade rural – mas não foi utilizado só em São Paulo e nem só contra os “rurais” (que neste acaso abrangeriam escravizados, estrangeiros e outros trabalhadores).

O “entendimento coletivo” atual, de uma suposta “cultura caipira”, só tem registros a partir de 1910, pelos empenhos do empresário paulista Cornélio Pires (1884-1958), fortalecido, entre outras publicações, por um Dialeto Caipira – publicado em 1920 pelo folclorista Amadeu Amaral (1875-1929); este último, também paulista e primo de Cornélio.

O que tem a ver o “u” com a “alça”?

Tem a ver que Amadeu Amaral, em seu citado Dialeto, repete claramente procedimentos não científicos e opiniões apontadas por Beaurepaire-Rohan – a saber, críticas a “etimologistas”, sem citá-los nominalmente e, principalmente, sem citar nos verbetes os trabalhos criticados, as fontes para conferência de suas críticas. Dizemos “não científicos” para não sermos rudes com adjetivos como “covarde”, “amador” ou similar – cada um analise os fatos como achar melhor.

Beaurepaire-Rohan, no já citado prefácio, até chegou a fazer crítica aberta ao trabalho Glossaria Linguarum Brasiliensium, do botânico alemão Carl Martius (1794-1868) – mas em seu verbete sobre o termo “caipira” não citou o alemão, nem ao também botânico, mas francês, Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853). Sem citar os nomes e trabalhos, entretanto, destacou as origens “etimológicas” apontadas pelos botânicos para “caipora” e “caipira” – que teriam sido os termos indígenas caapora e curupira. Sempre chamando os cientistas de “etimologistas”, de Martius o militar-dicionarista teria desconsiderado que o citado Glossaria é uma publicação com citações em três línguas (alemão, latim e português), além das diversas línguas estudadas e citadas por Saint-Hilaire. O principal: o dicionarista desprezou que os estrangeiros apontaram registros de seus vastos contatos com indígenas, de onde teriam recolhido os termos, entre os anos de 1817 e 1822. No caso de Saint-Hilaire, este teria chegado a levar consigo dois indígenas para a França, ainda citados em seus relatos pelo menos na década de 1830 – sendo, portanto, um período bastante considerável de contato direto com uma língua indígena, por um professor universitário versado em várias delas.  

Não, não teriam sido estudos “etimológicos” propriamente ditos: entende-se que Beaurepaire-Rohan (e depois Amadeu Amaral) assim os apelidaram como tentativa de ridicularizar os estrangeiros, que notadamente não teriam sido especialistas na área. Teriam sido, entretanto, observações e recolhas de cientistas experientes em diversas línguas, em seus contatos diretos com indígenas. Ao invés de considerar a legitimidade destes tipos de fontes, a escolha dos brasileiros foi (e ainda é, às vezes) por conceitos fantasiosos, apontados em dicionários por também não-etimólogos, cheios de opiniões e teorias “agradáveis de contar em acampamentos” mas sem indicação precisa de fontes nem desenvolvimentos.

Deu para entender? Por algum motivo, foi desprezado o que foi possível desprezar dos estudos dos estrangeiros, não lhes citando os nomes e trabalhos nos verbetes, tirando sarro de suas capacidades, etc. Isto é fato. Os motivos destes tipos de ações, repetidas ainda nos dias atuais, não podemos provar; talvez, por “ciúme” dos estrangeiros terem pesquisado mais a sério uma língua nativa brasileira? Talvez por outras descobertas e opiniões “desagradáveis” encontradas nos textos deles? Talvez por não atenderem a objetivos específicos de quem fazia os verbetes ou pesquisas? Vai saber… 

O visconde-militar-dicionarista iniciou seu verbete com a frase: “Caipira: s. m. [substantivo masculino] (S. Paulo) nome com que se designa o habitante do campo”. O jesuíta português João Daniel (1722-1776), assim como Saint-Hilaire (em citação ao próprio João Daniel) e ainda Martius teriam utilizado expressão semelhante: “habitador de matos” – porém, referindo-se à caapora e à “caipora”; mas o mais importante é que todos os registros antigos referiram-se a indígenas: a ligação de “caipira” a “qualquer tipo de ser humano habitante de qualquer tipo de campo” já foi um “entendimento peculiar” que, mais tarde, parece ter sido agradável a Amadeus Amaral, que o “traduziu”, por assim dizer, como “habitante da roça” em seu Dialeto Caipira; podia ser conveniente para Amadeu Amaral, mas o fato é que seguiu distorcendo os significados, e o que é pior, arbitrariamente: o “mato mais denso”, original dos indígenas, teria se tornado sinônimo de “campo” e, enfim, “roça” de homem branco paulista – tudo isso sem explicação ou justificativa apontada. E também, sem ser observado em outros registros de época, só nos destes intrépidos críticos de etimologistas (e de quem os teriam seguido, até hoje).

Na sequência, após ter indicado “S. Paulo” no início, o militar-dicionarista listou: “[…] Equivale a Labrego, Aldeão e Camponez em Portugal; Roceiro no R. de Jan., Mat. Gros. e Pará; Tapiocâno, Babaquára e Muxuango em Campos dos Goytacazes; Mattuto em Minas-Geraes, Pern., Par de N., R. Gr. do N. e Alagoas; Casaca e Bahiano no Piauhy; Guasca no R. Gr. do S.; Curau em Sergipe; e finalmente Tabaréo na Bahia, Sergipe, Maranhão e Pará”. É bastante peculiar a lista apresentada, que poderíamos também chamar de “apelidos”, algumas vezes mais de um por Estado, possivelmente tendo todos eles em comum apenas que seriam relacionados a interioranos. Entre os estudos sobre palavras antigas que conferimos, desde São Isidoro de Sevilha, do século VI, este talvez seja o mais criativo – a diferença é que Isidoro apontou muitas fontes, checáveis até os dias atuais. Nosso amigo Visconde, por outro lado e dizendo bem no popular, “viajou nas batatas”…  

Entende-se que,  pela interpretação “peculiar” de Beaurepaire-Rohan, “caipira” só poderia ter tido origem no Brasil e, a partir daqui, ter chegado a Portugal. Ele não teria imaginado o caminho inverso seria tanto possível quanto o de contextualização mais provável (portugueses inventarem apelidos pejorativos contra brasileiros, a partir de nomes indígenas sobre lendas, seres fantásticos, etc.). Ele não teria tido acesso, por exemplo, ao Jornal O Constitucional, de 03 de julho de 1822, onde em resenha da página 37 há a evidência de que “caipora” já teria sido um apelido político utilizado contra os brasileiros desde antes daquela data – assim como “caipira” também apareceu como apelido político, por exemplo, no Jornal O Tamoyo de 02 de setembro de 1823, à página 06.

Seguindo na somatória de interpretações infelizes, se fosse “um termo brasileiro” e entendendo que o que foi utilizado pelos indígenas serviria automaticamente para todos – ou seja, o “mato fechado” deles seria a mesma coisa que “o campo” – o criativo dicionarista chegaria à conclusão de que apelidos dados a interioranos, por todo o país e até em Portugal, seriam, todos, equivalentes a “caipira”. O militar-dicionarista sequer lembrou-se de citar o uso de “caipira” como apelido político, que àquela altura (1889) já era apontado em vários dicionários, além dos jornais, visto que teria registros até a Guerra dos Irmãos em Portugal (1832-1834).

Parece, a princípio, que pudesse ter escapado ao esforçado “colecionador de termos”, entre outros detalhes, que “caipira” teve registro em jornais de várias regiões do Brasil além de São Paulo, como Pará, Pernambuco, Mato Grosso, Paraná, Maranhão e, com grande incidência, no Rio de Janeiro – Estado natal e de maior atividade de Beaurepaire-Rohan. Entretanto, não se concebe que o dicionarista não tivesse pesquisado em jornais, portanto, sua lista só pode significar que os locais relacionados seriam “os de maior incidência dos termos”, mas não que seriam de uso exclusivo daquelas regiões. O apontamento de apelidos iguais utilizados em regiões diferentes aponta isso também. Além de tudo isso, “caipira” não era aplicado somente a pessoas do meio rural, mas… para Amadeu Amaral (e tantos outros que o seguem até hoje), parece ter sido (e ser) agradável e conveniente não considerar nenhuma destas reflexões óbvias, embasadas em mais leituras e apontar(em) que existiria uma “cultura caipira paulista”, inclusive com um “dialeto” próprio.

Muito curioso é que se o dialeto de Amadeu Amaral era “caipira”, então “caipira” teria sido o termo mais importante, certo? Pois exatamente deste termo ele não apontou a origem, chamando-o de “[…] palavra de aspecto indígena, real ou aparente” e, conforme já dito, zombou da “imaginação dos etimologistas”. Quais etimologistas? Se Amadeu Amaral os verificou, não os quis apontar – mas, curiosamente também, não teve dúvida em apontar que “caipora” derivaria de caapora (“mais de acordo com a etimologia”, segundo ele) e nomes de demônios dos “caipiras paulistas”: “o caipora, o currupira, o saci, o bitatá”. Para Amadeu Amaral, “caipora” vir de caapora era normal – mas “caipira” vir de curupira seria “imaginação dos etimologistas”, separando bem os dois termos de acordo com significados colhidos em dicionários (!). Amadeu Amaral parece ter insistido em grafar erroneamente “currupira” e “bitatá” (este, ao invés de “boitatá”), mas pode ter sido erro gráfico ou de revisão da edição checada.  

Podemos dizer que se Amadeu Amaral fosse um etimologista (o que nunca defendeu ter sido e aos quais tanto criticou), teria sido, por sua vez, um etimologista bem seletivo e despreocupado em apontar fontes e desenvolvimentos científicos… mas que se julgou capar de organizar um léxico, apontando significados de diversas palavras antigas – tudo para tentar justificar uma “cultura”. Sim: destaca-se que os dicionaristas criticaram “falsos etimologistas”, mas de fato eles também não teriam formação (nem competência, comprovadamente) para tentar fazer o que fizeram.   

Não se pode provar por que, mas, no mínimo, imaginamos que seria difícil explicar como um termo que significava “indígena do mato mais profundo”, depois corrompido para pejorativo político, poderia ter mudado para “habitante da roça paulista”… A esta “mudança mágica”, porém, temos que apontar crédito a Amadeu Amaral e a Cornélio Pires, pois, graças ao empenho deles, a partir de 1910 realmente se tornou o significado popular mais visto em dicionários (!) – diferente dos demais significados mitológicos e fantásticos, aqueles que Amadeu Amaral tinha feito questão de separar de “caipira”. É fato: a citada “cultura” teria “passado a existir” depois deles – e muitos os seguem, sem contestação, até os dias atuais.

Mas isso tem algum problema?

Bom… Amadeu Amaral era um ser humano e, apesar de se esforçar, não pode ser considerado um bom cientista – pois não apontava os raciocínios que teria feito para justificar suas afirmações e, sobretudo, as fontes de época nas quais teria se embasado. Sequer os dados de sua “pesquisa de campo” teriam sido apresentados, demonstrados, usados em justificativas. Cornélio Pires, muito menos – suas publicações eram artísticas: foi um empresário – genial, visionário e obstinado, mas um empresário cultural, jamais um cientista, um estudioso. Talvez algum problema esteja em quem entendeu (e ainda entende) as colocações destes distintos senhores como científicas – o que teria começado com o respeitado Dr. Antonio Candido, que entre as décadas de 1950 e 1960 teria aplicado em uma tese de doutoramento e depois em um livro que a “cultura caipira” seria dado científico válido. Ainda pior: ao “peculiarmente” também entender que o “caipira” seria de origem paulista, indicou associação da dita “cultura” a uma grande região chamada “paulistânia” (outro “entendimento peculiar”). Tudo isso, Candido fez apenas por citações simples, sem apresentar comprovações científicas básicas, como por exemplo, uma pesquisa de campo em todo o país para apontar as diferenças e semelhanças entre a “cultura” da região alegada e o restante.

Toda “interpretação ou entendimento peculiar” só causa problema se, por acaso, alguém resolve depois utilizá-la como argumento ou embasamento de novas colocações. O bom mesmo, independentemente de quem tenha escrito alguma coisa, é sempre checar fontes, desenvolvimentos, a verdade histórica por vários ângulos e, se for utilizar, apresentar todo este desenvolvimento, mesmo que não tenha sido apresentado antes. Se não, o risco de dar seguimento a equívocos é bastante grande.

É claro que o Brasil tem liberdade de Credo: cada um pode acreditar no que quiser, independentemente de comprovações. Também é o Brasil um país capitalista, onde se aceitam vários tipos de ações de venda (marketing) igualmente sem a obrigação de serem cientificamente comprováveis: “compra” quem quiser, sejam as ideias ou os produtos ofertados. E de forma alguma é crime gostar de histórias agradáveis, convenientes, que fazem tão bem a egos e bolsos.

Está tudo certo – então, vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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16 Mar, 2023

VIOLAS DEDILHADAS E O ERUDITISMO

Violas dedilhadas e o eruditismo

Viola, Saúde e Paz!

O lançamento do livro de partituras J. S Bach – Viola Brasileira, do violeiro Vinícius Muniz (brasileiro radicado em Barcelona), vem trazer à memória uma interessante conexão histórica das violas dedilhadas brasileiras. O músico, que aponta que estava a aprimorar a técnica de escrita específica há cerca de 10 anos, realmente já havia lançado um primoroso disco, com mesmo nome, em 2017.

No livro “A Chave do Baú” e em nossas pesquisas listamos várias ações de aproximação histórica das populares violas com a música mais estudada, chamada “erudita”. Teria começado (ao que pudemos apurar) com o Padre Mestre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que tanto teria aprendido quanto ensinado teoria musical com “violas de arame” – passando por citações de “violas” em peças do maestro carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e atingindo um interessante capítulo na década de 1960, quando (apesar de pouco citado e até distorcido por estudos convencionais sobre nossas violas) houve uma clara dúvida pública entre as nomenclaturas “viola caipira”, “viola sertaneja” e “viola brasileira”, terminada na década seguinte, 1970, com a ascensão do atual nome do modelo Viola Caipira.

Foi àquela época – 1971 – e especificamente sobre a obra do grande compositor alemão Johan Sebastian Bach (1985-1750) que já havia sido feito o disco Bach na Viola Brasileira, pelo maestro paulista Theodoro Nogueira (1913-2002). À maneira que pode, Theodoro havia escrito em partitura as peças, que originalmente tinham sido criadas para outros tipos de instrumentos, como violinos. As transcrições foram interpretadas e gravadas pelo violonista Geraldo Ribeiro.

Haveria algum motivo para peças de Bach serem transcritas para um instrumento popular como a viola? Entendemos que sim… pois nas décadas de 1920 e 1930 o guitarrista espanhol Andrés Segovia (1893-1987) tinha encantado o mundo ao traduzir para o violão peças de Bach – colaborando muito para que o “irmão mais novo das violas e guitarras” seja hoje aceito em salas de concerto e, principalmente, em escolas eruditas de música. Não temos dúvida que a intenção de Theodoro Nogueira teria sido atingir algo semelhante para as violas dedilhadas, que então ele estava a descobrir e pesquisar – e que ele sabia não eram sequer bem conhecidas no Brasil, muito menos pela comunidade erudita ocidental.

Este foi o caminho que as violas vinham traçando, naturalmente – até serem engolidas pela ação de mercado, que atrelou às vendas a nomenclatura “caipira” e todo um contexto de caipirismo – um grande entendimento coletivo que tenta cercear o instrumento a determinados estilos e toques.

Por um lado, se o mundo levasse a sério, talvez pudéssemos apresentar como “ineditismo” sermos os únicos no mundo onde se queira atrelar um instrumento musical somente a um determinado estilo – e seu nome, a um entendimento dito “folclórico”, porém com registros apenas 60 anos antes – e antes do nome ser atribuído! Ou seja: seria o primeiro folclore a ter ações retroativas da História Mundial…

Não deixaria de ser ousado querer que o mundo aceite uma descrição desta sobre fatos, pois, pelo menos em nossas profundas pesquisas sobre a história dos cordofones ocidentais, desde o século II aC., não encontramos nada sequer semelhante… Mas, naturalmente, o mundo não cairia facilmente nesta história agradável e conveniente: é preciso que se tenha uma população de DNA religioso, com pouquíssimo hábito de leitura e que aprecia histórias que levantem o moral dos que pouco lêem e que não iriam jamais buscar ler dados históricos para comprovar nada que seja tão agradável aos ouvidos (e também aos bolsos de quem lucra com o entendimento coletivo).

O século XXI, na verdade e felizmente, aponta para um retorno ao que estava em crescimento na década de 1960 e que, graças aos novos estudos, não deverá ser novamente apagado por entendimentos coletivos e ações comerciais sem base em registros. Desde 2005, conforme listamos no livro “A Chave do Baú”, ações espontâneas vêm aproximando cada vez mais as violas dedilhadas do mundo musical normal e suas aplicações múltiplas – em especial, junto a verdadeiras orquestras.

“Verdadeiras” porque faz parte do entendimento coletivo chamar grupos formados por apenas um tipo de instrumento de “orquestras de violas”… O mais preciso seria chamar estes grupos de “naipes” ou ensembles (termo francês), vez que a principal características das orquestras (conhecidas talvez no mundo todo) – seja a multiplicidade de instrumentos, para prover variadas texturas à música executada. Para este entendimento correto, entretanto, seria necessário ter conhecimento mínimo de música de verdade (um mínimo de leitura e pesquisa).

Porém… não é curioso como a nomenclatura erudita convencional “orquestra” chama a atenção, mesmo de quem não está interessado em ler e descobrir significados reais de práticas realizadas pelo mundo afora? Esta curiosa aplicação do nome pode nos deixar curiosos se teria alguma ligação com a aproximação das violas e o eruditismo… mas, certamente, será apenas coincidência. Ou não?

Embora hoje presente nas grades de poucas universidades como instrumento digno de um bacharelado, aos poucos as fundamentações científicas e as práticas vão recuperando o lugar normal de qualquer instrumento musical com a capacidade que as violas têm.

Uma das ações mais diretas quanto a esta recuperação do processo normal seria o Reconhecimento Oficial do instrumento como Forma de Expressão digna de registro junto aos Livros de Patrimônio Imaterial – que pode levar ao reconhecimento mundial pela Unesco. Quando conseguido, todas as escolas, a mídia e a opinião pública vão voltar olhos para as curiosas (e exclusivas) violas dedilhadas brasileiras e portuguesas –  e fundamentações e exemplos não faltarão para atender esta curiosidade. Já tentamos esta ação, pelo Reconhecimento, em 2017 – tendo sido conseguido no âmbito Estadual, em Minas Gerais – mas para o Reconhecimento Nacional, ainda falta conscientização e interesse da classe envolvida (lerem um pouco mais também ajuda), mas o tempo certo há de vir.

Só que isso já é outra prosa! Por hora, parabéns e sucesso ao Vinícius Muniz – e indicamos a aquisição e uso (quem sabe, até como presente?) de seu belo trabalho.     

E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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Franguinho na Panela - Aula de Viola
13 Mar, 2023

AULA DE VIOLA – FRANGUINHO NA PANELA

AULA DE VIOLA – FRANGUINHO NA PANELA

Desde já permita que eu me apresente, Eu sou o Professor Alex Stocco do Site Viola Caipira Descomplicada e hoje você vai aprender nessa aula de viola – Franguinho na Panela.

E antes de tudo, vale lembrar que essa aula é pra você que já possui um conhecimento básico na viola. Caso você esteja começando do zero, eu vou deixar um E-book pra você baixar totalmente GRÁTIS com todo o conteúdo básico e ainda com 10 músicas fáceis e com solos. Para baixar basta clicar na imagem.

Além disso, eu escrevi esse arranjo para a afinação de Cebolão (Mi maior), mas ele vai servir tanto para a afinação em Ré, ou Mi bemol. Se você ainda tem dificuldade em saber sobre a diferença entre essas afinações, leia o artigo, ou assista ao vídeo, onde eu explico tudo sobre isso. Essa aula está aqui no Site Viola Viva, Clique Aqui e Confira.

AULA DE VIOLA – FRANGUINHO NA PANELA- SOLO

Franguinho na Panela - Aula de Viola

Em primeiro lugar vale lembrar que esse solo é de uma versão gravada por Craveiro e Cravinho .

Tendo em vista que a música Franguinho na Panela já foi gravada por diversos artistas. Vamos iniciar a nossa aula de viola – Franguinho na Panela começando pelo solo da introdução.

  • Comece tocando nos primeiros dois pares da viola ao mesmo tempo nas casas quatro e cinco. Depois na cinco e sete, em seguida volte para a quatro e cinco. Posteriormente toque na dois e três e ainda na zero (solta) e dois;
  • Agora, no segundo e terceiro par, toque ao mesmo tempo nas casas um e dois, em seguida na três e três e ainda na cinco e cinco;
  • Em seguida toque apenas no quinto par na casa cinco duas vezes, depois no quarto par na quarta casa uma vez. Agora volte para o quinto par separado e toque mais duas vezes na quinta casa e uma vez no quarto par na casa sete.
  • E finalmente toque no quinto par na quinta casa novamente duas vezes e termine o solo caindo no ritmo. Eu já vou te explicar como fica a batida dessa música também.

FRANGUINHO NA PANELA – ACORDES USADOS

Franguinho na Panela - Aula de Viola

Agora vamos aos acordes da música. Nesse sentido vale lembrar que a música está na tonalidade de Lá maior. Ao passo que vamos ter de acordo com a imagem acima os seguintes acordes:

Lá maior, Mi maior, Ré maior, Lá com Sétima e Si menor. Talvez o acorde de Si menor possa te dar um pouquinho mais de trabalho no início. Mas vale a pena gastar um tempo em cima dele porque você irá usá-lo certamente em diversas outras músicas.

FRANGUINHO NA PANELA – RITMO

E nessa aula de viola da música Franguinho na Panela, vamos utilizar o ritmo da Querumana.

 

Franguinho na Panela - Aula de Viola

Conforme a imagem acima, você deverá tocar uma vez para baixo, uma vez para cima e duas vezes para baixo. Depois disso abafe as cordas da viola.

CONCLUSÃO

Nessa aula de viola você aprendeu a música Franguinho na Panela. O solo de viola da introdução da música, o ritmo e os acordes.

Ao passo que essa aula de viola foi desenvolvida especificamente para a música Franguinho na Panela. Se você deseja se aperfeiçoar ainda mais nesse mágico instrumento ou até mesmo começar totalmente do zero, conheça o meu curso online de viola caipira.

Nele além de você encontrar um repertório com músicas muito famosas desenvolvido passo a passo pensando na sua evolução, você vai também vai encontrar uma série de técnicas super quentes para aplicar na viola. Clique e conheça.

No final desse artigo eu também deixei a vídeo aula e a cifra completa da música Franguinho na Panela – Aula de viola. Um abraço.

 

 

BAIXE A CIFRA AQUI 👉 Franguinho na Panela

 

CLIQUE AQUI👉 E BAIXE O PLAYBACK DO SOLO

 

 

FRANGUINHO NA PANELA - VÍDEO AULA

8 Mar, 2023

“À LA RODRIGO”: UMA ARMAÇÃO QUASE ILIMITADA

À la Rodrigo”: uma armação quase ilimitada

On nomme Guitarres à la Rodrigo, Celles qui sont montees avec douze cordes.

pour les trois premiers rangs deux cordes à l’unisson,

et pour les deux derniers rangs

trois cordes dont il y en a deux à l’unisson et une a L’octave.

“Chamamos de Guitarras à la Rodrigo as que são montadas com doze cordas;

para as três primeiras ordens, duas cordas em uníssono,

e para as duas últimas ordens,

três cordas das quais há duas em uníssono e uma em oitava”.

Michel Correte, método Les dons d’Apollon (1762, p. 140-141)

Viola, Saúde e Paz!

Capítulo bastante importante sobre a origem das violas dedilhadas vem de uma fase de transição que estimamos entre meados do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX. Conforme explicamos no livro “A Chave do Baú”, neste período se observam grandes modificações nos cordofones, que impactam os instrumentos ocidentais hoje consolidados. Não teria sido por coincidência que este período também compreende as fases da Revolução Industrial: toda a sociedade ocidental foi bastante afetada pelas novas visões de lucro, de produção em série – e os instrumentos musicais costumam reagir às grandes mudanças sociais históricas.

Entre as maiores mudanças ocorridas, as guitarras espanholas (que armavam com 10 cordas em 5 ordens e que chamaremos “10×5”), ao final do período estariam consolidadas em 6×6 – ou seja, o violão moderno, que se tornou o dedilhado preferido por praticamente toda a Europa. O que tem a ver as violas com as “guitarras-violões”? Muito: as guitarras 10×5 eram chamadas de “violas”, em Portugal e, enquanto as guitarras mudaram de configuração (e depois, até de tamanho), as “violas” se mantiveram como eram, se tornando, assim, por exclusão, instrumentos “de fato”, pois teriam passado a ser diferentes dos demais – até então, eram só um nome diferente. Esta configuração, 10×5, é hoje utilizada em alguns modelos da Família de Violas Portuguesas (Amarantina, Braguesa, Campaniça) e nos modelos Viola Caipira e Viola Machete, da nossa Família das Violas Brasileiras.

Como dito, foi uma “fase de transição”: portanto, houve variações até que chegássemos às consolidações. As primeiras violas portuguesas com alguma coisa diferente de outros cordofones apresentariam, por exemplo, não 10 – mas 12 cordas nas mesmas 5 ordens; ou seja, “12×5”. Teria sido bem no começo da fase de transição e é apontado, por exemplo, em dois métodos: o Liçam Instrumental da Viola Portuguesa, assinado por João Leite da Pita Rocha (1752, p. 1-2) e o Nova Arte de Viola, de Manoel da Paixão Ribeiro (1789, [p.63]). Outra diferença surgida durante a transição teria sido o uso de cordas metálicas, ou “de arame”, pelos portugueses – espanhóis sempre utilizariam cordas de tripa.

[Os números entre parênteses apontados há pouco, após o nome dos autores, significam o ano em que a publicação teria sido feita e a(s) página(s) onde se encontraria a informação; é “linguagem acadêmica”, sim: mas não se sabe de ninguém que já tenha morrido por ler assim e, desta vez, vamos deixar apontado, pois para entender bem o novelo que vamos desembolar é preciso estar atento aos nomes dos “cabras” e as datas em que teriam escrito as coisas, ok?]

Então, voltando à prosa: violas portuguesas 12×5 também têm modelos sobreviventes em Portugal (Toeira, da Terra) e, aqui no Brasil, antigas Violas de Queluz apresentavam12 cravelhas (mesmo que usassem apenas 10 cordas).  

“Doze cordas em cinco ordens” significa que duas ordens tem trios de cordas (as duas “de cima”, ou seja, as mais graves) – e as outras três ordens, tem duplas de cordas. Na convenção mais utilizada se diz: “1ª, 2ª e 3ª ordens: duplas; 4ª e 5ª ordens: triplas”. Esta armação de cordas ficou conhecida como “a la Rodrigo” e nossa reinvestigação apontou que este “apelido” teria surgido sem origem determinada – embora vários estudiosos teriam se enganado ao apontar o “Rodrigo” da história como o português Rodrigo Antônio de Meneses; este gajo teria existido e tocado guitarra, com destaque, mas pouco mais se sabe dele – a não ser que, na verdade, não teria usado a tal armação “a la Rodrigo”…

A questão geral nos foi apresentada por Júnior da Violla, grande violeiro, professor de viola e pesquisador de São Paulo (SP) – e não havia como não atender, vez que Junior simplesmente nos ensinou a tratar as fontes de forma “chata” (leia-se “atenta, detalhista, rigorosa, quase pragmática”). É graças ao talento dele que hoje todos (que lêem) sabem da existência de Violas de 12 Cordas (12×6), também surgidas na mesma citada fase de transição, que também tiveram modelo português (que depois cairia em desuso) e que, no Brasil, tem registros desde a década de 1930 (instrumento remanescente, inclusive), sendo que na década de 1950 chegou a ser fabricada em série pela fábrica Gianinni. Nunca ouviu falar? Mesmo agora sabendo que há registros que comprovem, ainda duvida? Então precisa ler mais… Júnior da Violla é dos pesquisadores mais atentos e precisos que, felizmente, temos – e está aí à disposição, vivo, acessível até pelas redes sociais, defendendo as violas dia-a-dia.

Melhor que apenas obedecer a uma ordem de um mestre foi poder colocar em prática nossa metodologia. Embora a descoberta possa ser considerada pequena (para tanto trabalho), importante é o exercício e a comprovação da eficácia da visão, do método. Por ter sido trabalhoso, por favor, fique atento: mergulhamos atrás do que escreveram dois estadunidenses em 2002, que citaram o que escreveu um português em 1995, este citando texto de outro português (de 1870), este último que citou o que transcreveu um alemão em 1790 sobre o que outro alemão tinha apontado em 1776…

Confuso? Sim, um pouco… mas para encontrar tesouros que tanta gente boa não teria encontrado, não se pode esperar que seja fácil. A principal diferença de nosso método é que, enquanto estudiosos citam esta ou aquela fonte, às vezes de línguas diferentes da que dominam, nós mergulhamos em cada citação, vamos até cada fonte mais antiga possível, na língua original e tentamos descobrir e analisar TODAS, individualmente e em conjunto, organizando tudo em ordem cronológica. Isso faz muita diferença. Isto é, em resumo, “A Chave do Baú”.

Ah, sim: é importante citar que o livro The Guitar and its Music, dos citados estadunidenses (Tyler & Parks), é um excelente estudo, assim como outros trabalhos de ambos. Uma pequena conjectura, a partir de línguas não nativas deles (francês e português) não desmerece nada – pesquisadores são seres humanos. Especiais, sem dúvida – mas ainda humanos. E eles também citaram o mais remoto registro que se tem notícia sobre a armação “à la Rodrigo” (destacado na abertura), onde observamos que não teria havido detalhes sobre o tal “Rodrigo”. O difícil acesso a esta fonte (o método de Correte) devemos à gentileza do doutorando Felipe Barão, um brasileiro “já agora meio português”, estudioso principalmente das violas Toeiras portuguesas, a quem agradecemos muito pelas também “aulas” e ajudas.

Entendemos que a maior probabilidade é que mais um nome teria “surgido na boca do povo”, cuja origem teria se perdido no tempo, pela oralidade… Infelizmente, não é raro (e acontece há séculos), de estudiosos tentarem adivinhar origens de nomes assim, por semelhanças, coincidências ou teorias criativas – mas sem base sólida em registros. Por isso é importante levantamentos como este que agora apresentamos, mesmo que complexos, trabalhosos e que não mudam muito a História: servem para pegarmos as “manhas” (e as manhãs também, diria Renato Teixeira em Tocando em Frente?) – e para nos alertar a sempre ficarmos espertos quanto a textos e os respectivos dados de época.

Desfazendo o novelo, temos Tyler & Sparks citando: “Correte não dá a origem do nome popular francês, mas PODE BEM ter tido alguma conexão com o guitarrista português Rodrigo Antônio de Meneses, conhecido por ter feito tournée européia como concertista na década de 1760 e depois feito sucesso na Alemanha, especialmente na cidade de Leipzig, em 1766” (Tyler & Sparks, 2002, p.204, tradução nossa [*1]). É muito importante observar a condicional que apontamos com maiúsculas e numa tradução bem “abrasileirada”: não é uma afirmação! Nestes casos, entende-se que poderia ter sido uma conclusão deles a partir de alguma fonte lida – que no caso foi apontada: o livro História da Música Portuguesa, de João de Freitas Branco; fomos, então, conferir – e, realmente, Branco deu notícia sobre o citado guitarrista, mas sem citar nada sobre a armação “à la Rodrigo”; além de, na verdade, não ter “dito por si”, mas segundo o que teria lido em outra fonte (BRANCO, 1995, p.198).

Então, tivemos que seguir a pista informada por Branco, que foi o livro Os Músicos Portugueses, de Joaquim Vasconcelos; lá, realmente, estava o apontamento sobre o sucesso de Rodrigo Meneses, suas apresentações na Alemanha e a cidade de Leipzig, com a data de 1766 (VASCONCELLOS, 1870, p.269). Novamente, nada havia sobre armação “à la Rodrigo” e, mais uma vez, o autor não teria dito por si, apontando onde teria lido. Assim, chegamos ao livro Historisch Biographisches Lexicon (“Léxico Biográfico-Histórico), de Ernst Luwig Gerber – onde, em bom alemão, uma pequena nota confirmava o já dito sobre Rodrigo, também sem citar a armação e apontando mais duas outras fontes: “[…] A descrição do próprio instrumento pode ser encontrada em Hillers Nachr. B. 1. p. 39 e em Walther, no artigo ‘Chitarra’” (GERBER, 1790, v1, p.928, tradução nossa [*2]).

Que raiva! Além de ainda não atender nosso objetivo, o alemão citou duas fontes sem detalhamentos – como se a gente fosse obrigado a conhecer de memória quem seriam estes tais de “Hiller” e “Walther”… Não é à-toa que muito estudiosos desistem: é muito mais fácil criar alguma história do que vascular a verdade em fontes!

Mas somos brasileiros: pesquisa daqui, pesquisa dali, descobrimos: Joahan Gotfried Walther, em seu livro Musicalisches Lexicon (“Léxico Musical”), apenas fez um pequeno verbete sobre a “Chitarra”: nomes equivalentes em várias línguas e, entre mais algumas informações, que teria formato 10×5 – sem nada sobre “à la Rodrigo”, ou qualquer Rodrigo (WALTHER, 1732, p. 159). Finalmente esclarecedor foi a outra fonte apontada: John Adams Hiller, no livro Nachrichten und Anmerkungen (“Notícias e Notas”) – na verdade, um dos volumes de uma série onde ele registrava concertos que teria visto. Pelo sucesso da performance de Rodrigo em Leipzig (que teria sido em 27 de julho de 1766), Hiller resolveu descrever em detalhes o instrumento utilizado: similar ao alaúde, mas com fundo plano, cordas de tripa, a afinação (Lá-Ré-Sol-Si-Mi, segundo ele – o contrário das convenções atuais), etc. Hiller chegou a rascunhar, junto ao texto, um pequeno trecho de partitura, para ilustrar que “[…] Cada ordem tinha duas cordas, exceto a quinta, que é única; os pares mais graves trazem uma corda a uma oitava, o resto está em uníssono” (HILLER, 1766, v1, p.39, tradução nossa [*3]).

Observa-se, amarrando as pontas desta singela pesquisa, que tanto Hiller quanto Correte na verdade registraram as guitarras mais utilizadas como 9×5 – exatamente como o modelo de viola português “da Ilha da Madeira” ainda hoje preserva. Muito interessante, não? Como dissemos, “guitarras” eram “violas” para os portugueses – e de cada modelo de guitarra encontrado na História, costuma-se encontrar uma “viola” correspondente.  

Houve mais uma pequena “raiva de pesquisador”, porque Hiller indicou como fonte o próprio livro de Walther (porém, com mais detalhes) – livro que tínhamos gasto um tempão para descobrir. Ou seja, se tivéssemos, por sorte, encontrado o livro de Hiller antes, menos tempo teria sido perdido – mas “faz parte”… Os dois (Hiller e Walther) citaram o Gabinetto Armonico, de Fillipo Bonani, onde realmente se encontra uma pequena citação e uma ilustração de uma Chitarra Spagnola, porém com armação 10×5 (BONANI, 1722, [figura 97, p.225]). Esse negócio de prestar atenção à armação de cordas nós consideramos muito – embora nunca tenha sido consenso nos estudos da ciência específica, chamada “organologia”.

É isso: quem viu Rodrigo Meneses tocar em Liepzig (e, que por sorte e alegria nossa, entendia muito de música e de musicologia) não o teria visto usando ordens triplas, e apontou dados precisos. Estudiosos portugueses, naturalmente, louvaram em suas publicações o raro sucesso de um concertista patrício – mas sem citar cordas e ordens; já Tyler & Sparks, que teriam encontrado a mais remota citação em um método francês, tentaram fazer uma conexão direta, a partir do nome “Rodrigo”, com o talentoso português, mas… não se comprova. Assim nascem várias lendas – mas é importante lembrar: os estadunidenses não AFIRMARAM nada: repetir o que eles apontaram sem atenção a este detalhe, como se tivesse sido uma “afirmação baseada em fontes” – sobretudo, sem checar estas fontes – é que é um problema. Um problema recorrente e danoso.

Por último, apenas para atender ainda ao mestre Júnior da Viola, o instrumento mais antigo que se tem notícia, que teria usado 12 cordas em 5 ordens, dataria entre 1740 e 1750 (início da citada fase de transição, lembra?) e teria sido atribuído (propriedade ou autoria de confecção) a certo Josef Dörfler, do qual não encontramos informação sobre ligações com música (ou qualquer outra profissão). Em sites de árvores genealógicas, encontramos uma pessoa com este nome, que teria nascido na hoje chamada República Tcheca (vizinha da Alemanha) e que teria tido um filho em 1761- então, há alguma possibilidade de ter sido o tal… mas…

O fato é que encontramos detalhadas descrições sobre este instrumento “12×5 mais antigo que se tem notícia”, tanto no site do Museu Santa Cecília, da Universidade de Edimburgo, quando no artigo The Early wire strung guitar (“As mais antigas guitarras de cordas de arame”), de Darryl Martin. A alegação a Josef Dörfler (não feita por Martin, é importante citar) teria vindo de inscrições gravadas no instrumento, onde se leria “IOZE DOR V” (MARTIN, 2006, p. 130-131) – ou seja, daí até afirmar que significaria “Josef Dörfler” haveria alguma criatividade aplicada. Com dissemos, lendas são criadas facilmente: “… é preciso estar atento e forte” (como diz o Divino Maravilhoso de Caetano Veloso). Em profundas análises feitas (inclusive datação de carbono!), Martin concluiu, sem dúvidas, que o instrumento seria de fabricação ibérica, mais provavelmente portuguesa – nada a ver, portanto, com a Alemanha ou outras regiões.        

E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

*1 – no original: “Correte does not give the origin of the instrument’s popular French name, but it may well have had some connection with the Portuguese guitarist Rodrigo Antônio de Meneses, who is known to have toured Europe as a concert performer during the 1760’s and who subsequently enjoyed great success in Germany, especially in the city of Leipzig in 1766”.

*2 – no original: “Von dem Ins strumente selbstfindet man die Beschrei bung in Hillers Nachr. B. 1. S. 39, und im Walther unter dem Artikel Chitarra”.

*3 – no original: Jedes Chorde hat zwen Saiten, auzer bem sunsten, welches nur einsach ist; die benden tiessten Chore haben die hohere Octave ben sich, die ubrigen sind im Cinflange (Cinslange)”.   

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2 Mar, 2023

UM JUIZ VIOLEIRO

Um Juiz Violeiro

[…] magistratum esse legem loquentem, legem autem mutum magistratum

“O magistrado é a lei que fala; a lei, o magistrado mudo”

Marco Túlio Cicero, em De Legibus III (106 aC.- 43 aC.)

Viola, Saúde e Paz!

Hoje fazemos homenagem a um jovem senhor que muito admiramos e respeitamos – além de considerarmos um dos maiores entendidos sobre caipirismo no Brasil: trata-se de Romildo Sant’anna, autor do imprescindível livro A Moda é Viola (se ainda não leu, compre já). Doutor Livre Docente pela Unesp, crítico de arte e jornalista, membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura. Só para acrescentar um dado pouco comentado, em 1999 (!) o Dr. Romildo já fazia da banca que aprovou a dissertação de mestrado do hoje Dr. Ivan Vilela – um dos violeiros-pesquisadores mais seguidos e respeitados, grande formador de opiniões, não só no meio da viola, mas em várias outras áreas do Conhecimento (e aí já vão duas homenagens em um texto só).

Não raro, durante nossas pesquisas que culminaram em nosso livro “A Chave do Baú”, encontramos registros que não citam diretamente as violas, ou que não acrescentariam muito às nossas pesquisas, mas que pensamos: “este, o Romildo iria adorar!”; alguns textos, até chegamos a enviar a ele, mas não dá pra ficar abusando da educação e atenção de um ídolo o tempo todo, concordam? Assim, vamos arquivando vários “causos” interessantes, pitorescos, alguns com dados interessantes sobre a história do caipirismo – especialidade do nosso principal homenageado.

É o caso de uma publicação que observamos no acervo público do Jornal A Província de São Paulo – hoje, conhecido como “Estadão” – de 05 de julho de 1878 (Anno IV, nº 1009). A coluna se chamava Sessão Livre, o texto traria como título apenas “Xiririca”. Teria sido uma carta enviada à redação do jornal, de autor que preferiu ficar incógnito (ou “anônimo”). Este autor fizera várias críticas a um certo juiz Bernardo da Gama de Souza Franco, do qual não conseguimos muitas informações; sobre a citada comarca de Xiririca, descobrimos que hoje se chamaria Eldorado, e que ficaria ao sul do Estado de São Paulo.   

O que mais interessa, entretanto, são as curiosas citações feitas sobre a atuação de “Sua Senhoria” (segundo o autor repete constantemente). Trazemos aqui um trecho, do qual adequamos algumas palavras aos atuais formatos da língua portuguesa, mas mantivemos os grifos (destaques em itálico) conforme o original.

Como observação final, entendemos que o texto pode trazer vários tipos de interpretação sobre os costumes da época e região: só acrescentamos é que à época (1878, fins do século XIX) ainda não se observava em registros o aclamado (por muitos) “preconceito contra o caipira”, sendo o texto um raro ataque contra a viola (e detalhes ligados ao instrumento, como ritmos), no caso, que teria sido praticada por um magistrado, não alguém de pouca leitura e conhecimento.

Segue então o que escreveu o às vezes irônico autor, que citou o grande advogado romano Cícero (sem identificar a fonte, mas de texto que por coincidência já conhecíamos) e chegou a definir o texto como amostra do panno (ou seja, um exemplo de como teria sido o juiz, alvo de seu dissabor):

“Pois acha que ficou bonito para S. S. mostrar-se em plena audiência, a 7 de Maio, que é tocador de viola?

Pode ser grande habilidade e apreciável talento o tocar bem uma viola, mas que o juiz possa exibi-los em audiência, executando peças de fandango, eis o que não nos parece digno de aplausos.

Se S.S. em algum batuque se prestasse a dirigir a orchestra, e mesmo a dançar seu rasgadinho, tocando sua viola, provavelmente os circunstantes se deleitariam muito; mas em audiência…

Quereria com isso S. S. tornar sabido que com o direito também faz fandango, como com a viola toca rasgados e modinhas de batuqueiro?

Quereria S.S. fazer como outros que metem a viola no sacco, meter também as leis e a jurisprudência dentro da viola?

Mas tudo isso não é por certo ato de juiz que conhece seus deveres e procura atrair o respeito de seus jurisdicionados.

Se o que fica exposto não basta para atestar o bom senso do juiz de Xiririca, ainda temos a dizer que as audiências são o lugar em que S. S. faz praça de seus bons costumes e sensatez.

Inúmeras vezes S. S. se apresenta em mangas de camisa, assim a modo de rapaz dado a capoeira, e que não sabe dar-se o respeito e respeitar os outros.

A justiça em mangas de camisa e algumas vezes vestida de roupa sem asseio, não pode agradar às autoridades superiores, ao público, aos empregados e partes que a procuram: enfim a justiça em mangas de camisa e tocando viola, ou dentro desta, é um atentado à sociedade e às leis.

[…]

Ora eis aí como procede o Sr. Dr. juiz municipal do infeliz termo de Xiririca!”

[assinado por]

Um que não gosta de fandangos em audiência

E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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