UM JUIZ VIOLEIRO

Um Juiz Violeiro

[…] magistratum esse legem loquentem, legem autem mutum magistratum

“O magistrado é a lei que fala; a lei, o magistrado mudo”

Marco Túlio Cicero, em De Legibus III (106 aC.- 43 aC.)

Viola, Saúde e Paz!

Hoje fazemos homenagem a um jovem senhor que muito admiramos e respeitamos – além de considerarmos um dos maiores entendidos sobre caipirismo no Brasil: trata-se de Romildo Sant’anna, autor do imprescindível livro A Moda é Viola (se ainda não leu, compre já). Doutor Livre Docente pela Unesp, crítico de arte e jornalista, membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura. Só para acrescentar um dado pouco comentado, em 1999 (!) o Dr. Romildo já fazia da banca que aprovou a dissertação de mestrado do hoje Dr. Ivan Vilela – um dos violeiros-pesquisadores mais seguidos e respeitados, grande formador de opiniões, não só no meio da viola, mas em várias outras áreas do Conhecimento (e aí já vão duas homenagens em um texto só).

Não raro, durante nossas pesquisas que culminaram em nosso livro “A Chave do Baú”, encontramos registros que não citam diretamente as violas, ou que não acrescentariam muito às nossas pesquisas, mas que pensamos: “este, o Romildo iria adorar!”; alguns textos, até chegamos a enviar a ele, mas não dá pra ficar abusando da educação e atenção de um ídolo o tempo todo, concordam? Assim, vamos arquivando vários “causos” interessantes, pitorescos, alguns com dados interessantes sobre a história do caipirismo – especialidade do nosso principal homenageado.

É o caso de uma publicação que observamos no acervo público do Jornal A Província de São Paulo – hoje, conhecido como “Estadão” – de 05 de julho de 1878 (Anno IV, nº 1009). A coluna se chamava Sessão Livre, o texto traria como título apenas “Xiririca”. Teria sido uma carta enviada à redação do jornal, de autor que preferiu ficar incógnito (ou “anônimo”). Este autor fizera várias críticas a um certo juiz Bernardo da Gama de Souza Franco, do qual não conseguimos muitas informações; sobre a citada comarca de Xiririca, descobrimos que hoje se chamaria Eldorado, e que ficaria ao sul do Estado de São Paulo.   

O que mais interessa, entretanto, são as curiosas citações feitas sobre a atuação de “Sua Senhoria” (segundo o autor repete constantemente). Trazemos aqui um trecho, do qual adequamos algumas palavras aos atuais formatos da língua portuguesa, mas mantivemos os grifos (destaques em itálico) conforme o original.

Como observação final, entendemos que o texto pode trazer vários tipos de interpretação sobre os costumes da época e região: só acrescentamos é que à época (1878, fins do século XIX) ainda não se observava em registros o aclamado (por muitos) “preconceito contra o caipira”, sendo o texto um raro ataque contra a viola (e detalhes ligados ao instrumento, como ritmos), no caso, que teria sido praticada por um magistrado, não alguém de pouca leitura e conhecimento.

Segue então o que escreveu o às vezes irônico autor, que citou o grande advogado romano Cícero (sem identificar a fonte, mas de texto que por coincidência já conhecíamos) e chegou a definir o texto como amostra do panno (ou seja, um exemplo de como teria sido o juiz, alvo de seu dissabor):

“Pois acha que ficou bonito para S. S. mostrar-se em plena audiência, a 7 de Maio, que é tocador de viola?

Pode ser grande habilidade e apreciável talento o tocar bem uma viola, mas que o juiz possa exibi-los em audiência, executando peças de fandango, eis o que não nos parece digno de aplausos.

Se S.S. em algum batuque se prestasse a dirigir a orchestra, e mesmo a dançar seu rasgadinho, tocando sua viola, provavelmente os circunstantes se deleitariam muito; mas em audiência…

Quereria com isso S. S. tornar sabido que com o direito também faz fandango, como com a viola toca rasgados e modinhas de batuqueiro?

Quereria S.S. fazer como outros que metem a viola no sacco, meter também as leis e a jurisprudência dentro da viola?

Mas tudo isso não é por certo ato de juiz que conhece seus deveres e procura atrair o respeito de seus jurisdicionados.

Se o que fica exposto não basta para atestar o bom senso do juiz de Xiririca, ainda temos a dizer que as audiências são o lugar em que S. S. faz praça de seus bons costumes e sensatez.

Inúmeras vezes S. S. se apresenta em mangas de camisa, assim a modo de rapaz dado a capoeira, e que não sabe dar-se o respeito e respeitar os outros.

A justiça em mangas de camisa e algumas vezes vestida de roupa sem asseio, não pode agradar às autoridades superiores, ao público, aos empregados e partes que a procuram: enfim a justiça em mangas de camisa e tocando viola, ou dentro desta, é um atentado à sociedade e às leis.

[…]

Ora eis aí como procede o Sr. Dr. juiz municipal do infeliz termo de Xiririca!”

[assinado por]

Um que não gosta de fandangos em audiência

E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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JOÃO ARAUJO

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