“À LA RODRIGO”: UMA ARMAÇÃO QUASE ILIMITADA

À la Rodrigo”: uma armação quase ilimitada

On nomme Guitarres à la Rodrigo, Celles qui sont montees avec douze cordes.

pour les trois premiers rangs deux cordes à l’unisson,

et pour les deux derniers rangs

trois cordes dont il y en a deux à l’unisson et une a L’octave.

“Chamamos de Guitarras à la Rodrigo as que são montadas com doze cordas;

para as três primeiras ordens, duas cordas em uníssono,

e para as duas últimas ordens,

três cordas das quais há duas em uníssono e uma em oitava”.

Michel Correte, método Les dons d’Apollon (1762, p. 140-141)

Viola, Saúde e Paz!

Capítulo bastante importante sobre a origem das violas dedilhadas vem de uma fase de transição que estimamos entre meados do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX. Conforme explicamos no livro “A Chave do Baú”, neste período se observam grandes modificações nos cordofones, que impactam os instrumentos ocidentais hoje consolidados. Não teria sido por coincidência que este período também compreende as fases da Revolução Industrial: toda a sociedade ocidental foi bastante afetada pelas novas visões de lucro, de produção em série – e os instrumentos musicais costumam reagir às grandes mudanças sociais históricas.

Entre as maiores mudanças ocorridas, as guitarras espanholas (que armavam com 10 cordas em 5 ordens e que chamaremos “10×5”), ao final do período estariam consolidadas em 6×6 – ou seja, o violão moderno, que se tornou o dedilhado preferido por praticamente toda a Europa. O que tem a ver as violas com as “guitarras-violões”? Muito: as guitarras 10×5 eram chamadas de “violas”, em Portugal e, enquanto as guitarras mudaram de configuração (e depois, até de tamanho), as “violas” se mantiveram como eram, se tornando, assim, por exclusão, instrumentos “de fato”, pois teriam passado a ser diferentes dos demais – até então, eram só um nome diferente. Esta configuração, 10×5, é hoje utilizada em alguns modelos da Família de Violas Portuguesas (Amarantina, Braguesa, Campaniça) e nos modelos Viola Caipira e Viola Machete, da nossa Família das Violas Brasileiras.

Como dito, foi uma “fase de transição”: portanto, houve variações até que chegássemos às consolidações. As primeiras violas portuguesas com alguma coisa diferente de outros cordofones apresentariam, por exemplo, não 10 – mas 12 cordas nas mesmas 5 ordens; ou seja, “12×5”. Teria sido bem no começo da fase de transição e é apontado, por exemplo, em dois métodos: o Liçam Instrumental da Viola Portuguesa, assinado por João Leite da Pita Rocha (1752, p. 1-2) e o Nova Arte de Viola, de Manoel da Paixão Ribeiro (1789, [p.63]). Outra diferença surgida durante a transição teria sido o uso de cordas metálicas, ou “de arame”, pelos portugueses – espanhóis sempre utilizariam cordas de tripa.

[Os números entre parênteses apontados há pouco, após o nome dos autores, significam o ano em que a publicação teria sido feita e a(s) página(s) onde se encontraria a informação; é “linguagem acadêmica”, sim: mas não se sabe de ninguém que já tenha morrido por ler assim e, desta vez, vamos deixar apontado, pois para entender bem o novelo que vamos desembolar é preciso estar atento aos nomes dos “cabras” e as datas em que teriam escrito as coisas, ok?]

Então, voltando à prosa: violas portuguesas 12×5 também têm modelos sobreviventes em Portugal (Toeira, da Terra) e, aqui no Brasil, antigas Violas de Queluz apresentavam12 cravelhas (mesmo que usassem apenas 10 cordas).  

“Doze cordas em cinco ordens” significa que duas ordens tem trios de cordas (as duas “de cima”, ou seja, as mais graves) – e as outras três ordens, tem duplas de cordas. Na convenção mais utilizada se diz: “1ª, 2ª e 3ª ordens: duplas; 4ª e 5ª ordens: triplas”. Esta armação de cordas ficou conhecida como “a la Rodrigo” e nossa reinvestigação apontou que este “apelido” teria surgido sem origem determinada – embora vários estudiosos teriam se enganado ao apontar o “Rodrigo” da história como o português Rodrigo Antônio de Meneses; este gajo teria existido e tocado guitarra, com destaque, mas pouco mais se sabe dele – a não ser que, na verdade, não teria usado a tal armação “a la Rodrigo”…

A questão geral nos foi apresentada por Júnior da Violla, grande violeiro, professor de viola e pesquisador de São Paulo (SP) – e não havia como não atender, vez que Junior simplesmente nos ensinou a tratar as fontes de forma “chata” (leia-se “atenta, detalhista, rigorosa, quase pragmática”). É graças ao talento dele que hoje todos (que lêem) sabem da existência de Violas de 12 Cordas (12×6), também surgidas na mesma citada fase de transição, que também tiveram modelo português (que depois cairia em desuso) e que, no Brasil, tem registros desde a década de 1930 (instrumento remanescente, inclusive), sendo que na década de 1950 chegou a ser fabricada em série pela fábrica Gianinni. Nunca ouviu falar? Mesmo agora sabendo que há registros que comprovem, ainda duvida? Então precisa ler mais… Júnior da Violla é dos pesquisadores mais atentos e precisos que, felizmente, temos – e está aí à disposição, vivo, acessível até pelas redes sociais, defendendo as violas dia-a-dia.

Melhor que apenas obedecer a uma ordem de um mestre foi poder colocar em prática nossa metodologia. Embora a descoberta possa ser considerada pequena (para tanto trabalho), importante é o exercício e a comprovação da eficácia da visão, do método. Por ter sido trabalhoso, por favor, fique atento: mergulhamos atrás do que escreveram dois estadunidenses em 2002, que citaram o que escreveu um português em 1995, este citando texto de outro português (de 1870), este último que citou o que transcreveu um alemão em 1790 sobre o que outro alemão tinha apontado em 1776…

Confuso? Sim, um pouco… mas para encontrar tesouros que tanta gente boa não teria encontrado, não se pode esperar que seja fácil. A principal diferença de nosso método é que, enquanto estudiosos citam esta ou aquela fonte, às vezes de línguas diferentes da que dominam, nós mergulhamos em cada citação, vamos até cada fonte mais antiga possível, na língua original e tentamos descobrir e analisar TODAS, individualmente e em conjunto, organizando tudo em ordem cronológica. Isso faz muita diferença. Isto é, em resumo, “A Chave do Baú”.

Ah, sim: é importante citar que o livro The Guitar and its Music, dos citados estadunidenses (Tyler & Parks), é um excelente estudo, assim como outros trabalhos de ambos. Uma pequena conjectura, a partir de línguas não nativas deles (francês e português) não desmerece nada – pesquisadores são seres humanos. Especiais, sem dúvida – mas ainda humanos. E eles também citaram o mais remoto registro que se tem notícia sobre a armação “à la Rodrigo” (destacado na abertura), onde observamos que não teria havido detalhes sobre o tal “Rodrigo”. O difícil acesso a esta fonte (o método de Correte) devemos à gentileza do doutorando Felipe Barão, um brasileiro “já agora meio português”, estudioso principalmente das violas Toeiras portuguesas, a quem agradecemos muito pelas também “aulas” e ajudas.

Entendemos que a maior probabilidade é que mais um nome teria “surgido na boca do povo”, cuja origem teria se perdido no tempo, pela oralidade… Infelizmente, não é raro (e acontece há séculos), de estudiosos tentarem adivinhar origens de nomes assim, por semelhanças, coincidências ou teorias criativas – mas sem base sólida em registros. Por isso é importante levantamentos como este que agora apresentamos, mesmo que complexos, trabalhosos e que não mudam muito a História: servem para pegarmos as “manhas” (e as manhãs também, diria Renato Teixeira em Tocando em Frente?) – e para nos alertar a sempre ficarmos espertos quanto a textos e os respectivos dados de época.

Desfazendo o novelo, temos Tyler & Sparks citando: “Correte não dá a origem do nome popular francês, mas PODE BEM ter tido alguma conexão com o guitarrista português Rodrigo Antônio de Meneses, conhecido por ter feito tournée européia como concertista na década de 1760 e depois feito sucesso na Alemanha, especialmente na cidade de Leipzig, em 1766” (Tyler & Sparks, 2002, p.204, tradução nossa [*1]). É muito importante observar a condicional que apontamos com maiúsculas e numa tradução bem “abrasileirada”: não é uma afirmação! Nestes casos, entende-se que poderia ter sido uma conclusão deles a partir de alguma fonte lida – que no caso foi apontada: o livro História da Música Portuguesa, de João de Freitas Branco; fomos, então, conferir – e, realmente, Branco deu notícia sobre o citado guitarrista, mas sem citar nada sobre a armação “à la Rodrigo”; além de, na verdade, não ter “dito por si”, mas segundo o que teria lido em outra fonte (BRANCO, 1995, p.198).

Então, tivemos que seguir a pista informada por Branco, que foi o livro Os Músicos Portugueses, de Joaquim Vasconcelos; lá, realmente, estava o apontamento sobre o sucesso de Rodrigo Meneses, suas apresentações na Alemanha e a cidade de Leipzig, com a data de 1766 (VASCONCELLOS, 1870, p.269). Novamente, nada havia sobre armação “à la Rodrigo” e, mais uma vez, o autor não teria dito por si, apontando onde teria lido. Assim, chegamos ao livro Historisch Biographisches Lexicon (“Léxico Biográfico-Histórico), de Ernst Luwig Gerber – onde, em bom alemão, uma pequena nota confirmava o já dito sobre Rodrigo, também sem citar a armação e apontando mais duas outras fontes: “[…] A descrição do próprio instrumento pode ser encontrada em Hillers Nachr. B. 1. p. 39 e em Walther, no artigo ‘Chitarra’” (GERBER, 1790, v1, p.928, tradução nossa [*2]).

Que raiva! Além de ainda não atender nosso objetivo, o alemão citou duas fontes sem detalhamentos – como se a gente fosse obrigado a conhecer de memória quem seriam estes tais de “Hiller” e “Walther”… Não é à-toa que muito estudiosos desistem: é muito mais fácil criar alguma história do que vascular a verdade em fontes!

Mas somos brasileiros: pesquisa daqui, pesquisa dali, descobrimos: Joahan Gotfried Walther, em seu livro Musicalisches Lexicon (“Léxico Musical”), apenas fez um pequeno verbete sobre a “Chitarra”: nomes equivalentes em várias línguas e, entre mais algumas informações, que teria formato 10×5 – sem nada sobre “à la Rodrigo”, ou qualquer Rodrigo (WALTHER, 1732, p. 159). Finalmente esclarecedor foi a outra fonte apontada: John Adams Hiller, no livro Nachrichten und Anmerkungen (“Notícias e Notas”) – na verdade, um dos volumes de uma série onde ele registrava concertos que teria visto. Pelo sucesso da performance de Rodrigo em Leipzig (que teria sido em 27 de julho de 1766), Hiller resolveu descrever em detalhes o instrumento utilizado: similar ao alaúde, mas com fundo plano, cordas de tripa, a afinação (Lá-Ré-Sol-Si-Mi, segundo ele – o contrário das convenções atuais), etc. Hiller chegou a rascunhar, junto ao texto, um pequeno trecho de partitura, para ilustrar que “[…] Cada ordem tinha duas cordas, exceto a quinta, que é única; os pares mais graves trazem uma corda a uma oitava, o resto está em uníssono” (HILLER, 1766, v1, p.39, tradução nossa [*3]).

Observa-se, amarrando as pontas desta singela pesquisa, que tanto Hiller quanto Correte na verdade registraram as guitarras mais utilizadas como 9×5 – exatamente como o modelo de viola português “da Ilha da Madeira” ainda hoje preserva. Muito interessante, não? Como dissemos, “guitarras” eram “violas” para os portugueses – e de cada modelo de guitarra encontrado na História, costuma-se encontrar uma “viola” correspondente.  

Houve mais uma pequena “raiva de pesquisador”, porque Hiller indicou como fonte o próprio livro de Walther (porém, com mais detalhes) – livro que tínhamos gasto um tempão para descobrir. Ou seja, se tivéssemos, por sorte, encontrado o livro de Hiller antes, menos tempo teria sido perdido – mas “faz parte”… Os dois (Hiller e Walther) citaram o Gabinetto Armonico, de Fillipo Bonani, onde realmente se encontra uma pequena citação e uma ilustração de uma Chitarra Spagnola, porém com armação 10×5 (BONANI, 1722, [figura 97, p.225]). Esse negócio de prestar atenção à armação de cordas nós consideramos muito – embora nunca tenha sido consenso nos estudos da ciência específica, chamada “organologia”.

É isso: quem viu Rodrigo Meneses tocar em Liepzig (e, que por sorte e alegria nossa, entendia muito de música e de musicologia) não o teria visto usando ordens triplas, e apontou dados precisos. Estudiosos portugueses, naturalmente, louvaram em suas publicações o raro sucesso de um concertista patrício – mas sem citar cordas e ordens; já Tyler & Sparks, que teriam encontrado a mais remota citação em um método francês, tentaram fazer uma conexão direta, a partir do nome “Rodrigo”, com o talentoso português, mas… não se comprova. Assim nascem várias lendas – mas é importante lembrar: os estadunidenses não AFIRMARAM nada: repetir o que eles apontaram sem atenção a este detalhe, como se tivesse sido uma “afirmação baseada em fontes” – sobretudo, sem checar estas fontes – é que é um problema. Um problema recorrente e danoso.

Por último, apenas para atender ainda ao mestre Júnior da Viola, o instrumento mais antigo que se tem notícia, que teria usado 12 cordas em 5 ordens, dataria entre 1740 e 1750 (início da citada fase de transição, lembra?) e teria sido atribuído (propriedade ou autoria de confecção) a certo Josef Dörfler, do qual não encontramos informação sobre ligações com música (ou qualquer outra profissão). Em sites de árvores genealógicas, encontramos uma pessoa com este nome, que teria nascido na hoje chamada República Tcheca (vizinha da Alemanha) e que teria tido um filho em 1761- então, há alguma possibilidade de ter sido o tal… mas…

O fato é que encontramos detalhadas descrições sobre este instrumento “12×5 mais antigo que se tem notícia”, tanto no site do Museu Santa Cecília, da Universidade de Edimburgo, quando no artigo The Early wire strung guitar (“As mais antigas guitarras de cordas de arame”), de Darryl Martin. A alegação a Josef Dörfler (não feita por Martin, é importante citar) teria vindo de inscrições gravadas no instrumento, onde se leria “IOZE DOR V” (MARTIN, 2006, p. 130-131) – ou seja, daí até afirmar que significaria “Josef Dörfler” haveria alguma criatividade aplicada. Com dissemos, lendas são criadas facilmente: “… é preciso estar atento e forte” (como diz o Divino Maravilhoso de Caetano Veloso). Em profundas análises feitas (inclusive datação de carbono!), Martin concluiu, sem dúvidas, que o instrumento seria de fabricação ibérica, mais provavelmente portuguesa – nada a ver, portanto, com a Alemanha ou outras regiões.        

E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

*1 – no original: “Correte does not give the origin of the instrument’s popular French name, but it may well have had some connection with the Portuguese guitarist Rodrigo Antônio de Meneses, who is known to have toured Europe as a concert performer during the 1760’s and who subsequently enjoyed great success in Germany, especially in the city of Leipzig in 1766”.

*2 – no original: “Von dem Ins strumente selbstfindet man die Beschrei bung in Hillers Nachr. B. 1. S. 39, und im Walther unter dem Artikel Chitarra”.

*3 – no original: Jedes Chorde hat zwen Saiten, auzer bem sunsten, welches nur einsach ist; die benden tiessten Chore haben die hohere Octave ben sich, die ubrigen sind im Cinflange (Cinslange)”.   

COMPARTILHE
Facebook
Twitter
WhatsApp

LIVRO A CHAVE DO BAÚ

ADQUIRA AGORA

ZAP (31) 99952-1197

JOÃO ARAUJO

Artigos Anteriores

COMO EUROPEUS VEEM AS VIOLAS

COMO EUROPEUS VEEM AS VIOLAS I have chosen this fiddle among the many, because it is a good...

O VIOLÃO: COMO E PORQUE SURGIU

O VIOLÃO: como e porque surgiu   “ Recebendo de Espanha o violão, como a viola vulgarizado pelos...

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS   Quamobrem nec organa aut musicus canendi ritus, missis aut officiis suis...

A HISTÓRIA DAS VIOLAS EM QUATRO PERÍODOS

A HISTÓRIA DAS VIOLAS EM QUATRO PERÍODOS “ chegamos à conclusão de que a guitarra italiana, guitarra...

QUANTO MAIS COMPADRES, MAIS VERDADE?

QUANTO MAIS COMPADRES, MAIS VERDADE? Que responderá a isto o Caipora* Semanario, e a servil recova...

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO?

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO? Viola, Saúde e Paz! Entre as ainda não consensuais considerações da...

COERÊNCIAS HISTÓRICAS EM INSTRUMENTOS MUSICAIS

Coerências históricas em instrumentos musicais “ instrumentos musicais são artefatos mediadores de...

O SEGREDO POR TRÁS DA CHAVE DO BAÚ

O Segredo por trás da Chave do Baú Viola, Saúde e Paz! Por acaso conhece o nome onomatorganologia?...

EXCEÇÕES QUE ATESTAM A REGRA

EXCEÇÕES QUE ATESTAM A REGRA Viola, Saúde e Paz! Temos sempre desenvolvido por aqui nos Brevis...