27 Abr, 2023

BATUQUES, LUNDUS, MODINHAS E VIOLAS PRETAS: MAIS UM OLHAR

Batuques, Lundus, Modinhas e Violas Pretas: mais um olhar.

“A pesquisa (quaerere, em latim) sempre foi e sempre será (re)questionar, (re)perguntar, ‘reduvidar’: olhar para o passado requer extremo cuidado e revisões ad infinitum, pois a influência do presente é forte e traicoeira!”   

(João Araújo)

Considerados por nós equívocos não pouco graves, o que mais observamos em pesquisas são tentativas de ver o passado utilizando conceitos do presente. A fim de minimizar o problema de que somos seres humanos, mortais e falíveis, tentamos aplicar atentamente conceitos científicos como: observar o máximo de “fenômenos circundantes” ao objeto de estudo (dica atribuída ao grego Platão); com a ampliação de tipos de fontes e de ciências, aplicar também bases estatísticas; e procurar não afirmar quase nada – ou, no máximo, dizer “é o que se pode afirmar com base nos registros estudados até o momento” – pois entendemos que a ciência séria e honesta sempre tenderá a “requestionar”, a reanalisar dados, a repensar e confrontar teorias.

Na busca por equilibrar a musicologia com a história, sociologia e outras ciências, em fontes e estudos pelo menos das línguas europeias mais conhecidas, aplicamos (atrevidamente) esta metodologia inclusive em nomes de instrumentos e conceitos que os circundam, pelos séculos. No caso da língua portuguesa, desde raízes em grego (quando conseguimos traduções confiáveis, posto que sequer conseguimos ler fluentemente no idioma), passando pelo latim, occitano, catalão e influências e paralelos históricos com/de outras línguas europeias (dependendo sempre da época de registros atestados).

            Dito isso, recentemente tivemos uma agradável e renovadora troca científica pelas redes sociais virtuais (sim, existe vida inteligente nas redes!): por já termos dissecado o excelente trabalho de doutoramento (cujas precisas fontes relacionadas a violas pudemos todas rastrear, e por isso recomendamos a leitura), nos atrevemos a “questionar” (ou “requestionar”) publicamente uma postagem do professor Rubens Russomanno Ricciardi, da USP – e, confessamos, sem esperança de ter dele muita atenção, pois somos nada, senão um curioso tarado por leitura e reflexão – inclusive, e sobretudo, academicamente, somos nada.

Foi-nos, entretanto, gratíssima surpresa a generosidade deste grandíssimo pesquisador em trocar várias ideias e informações conosco. É fato notório que vários assim considerados “grandes pesquisadores” ligados às violas dedilhadas (muito mais comprometidos afetivamente ao caipirismo, entretanto) vem ignorando nossas descobertas e “requestionamentos” (se não existia, agora pedimos licença em inventarmos este termo, “requestionar” – está a nos perseguir neste texto!). O que não é inventado, nem novo, é que a afetividade pelo entendimento coletivo chamado “caipirismo” (ou outras motivações, talvez?) vem há cerca de um século a tornar alguns olhares científicos “bastante seletivos” (por assim dizer, para não ser deselegante com pesquisadores aos quais admiramos e com os quais não podemos negar que sempre aprerdemos muito). O requestionar, sobretudo por chatos embasados em citações de referências de época e metodologias científicas como nós, é reprimido sistematicamete via bloqueios ou simplesmente ignorado.

            Não foi o caso, de forma alguma, do professor Ricciardi: dele, a paciência (benevolência, magnitude, etc.) só podemos entender ser fruto de um altíssimo compromisso com a ciência, possivelmente aliado a uma grande experiência no trato com alunos chatos, atrevidos, “que se acham” – mesmo assim, superlativa, pois sequer estamos à altura de sermos aluno dele. O que interessa é que ele nos motivou a dar mais uma olhada – um pequeno profundamento a mais nos estudos e dados sobre as modinhas, “lunduns” (como gosta de grafar o professor), batuques e similares; aprofundamento que é dos principais objetivos desta coluna, a partir das citações, como é o caso, em nosso livro “A Chave do Baú”.

            Outra confissão precisamos fazer: é grande a nossa preguiça em reavaliar estudos sobre as modinhas… Há dezenas de publicações, porém a maioria feita por pessoas que, embora sérias e dedicadas, cometem equívocos básicos, como tratar como cavaquinho ou violão o instrumento do grande e indubitavelmente VIOLEIRO Domingos Caldas Barbosa (ca.1738-1800). Quem comete tais tipos de equívocos, lamentamos dizer, não parece se preocupar nem um pouco em pensar o final do século XVIII como diferente do que só se constata possível bem depois – e são, como dissemos, dezenas deles. Já passamos por este martírio algumas vezes…

Constatamos, entretanto, que não é nem de longe este o caso do professor Ricciardi: extremamente muito mais motivador, entendemos tratar-se de um dos mais sérios e aprofundados estudiosos sobre este e outros assuntos musicológicos. Além da generosidade e compromisso com a ciência, aceitando sem problemas requestionamentos públicos, destacamos uma característica que consideramos importantíssima (e, infelizmente, muito rara entre estudiosos): é nítido que o professor Ricciardi não se ancora para sempre em descobertas já feitas. A partir do seu citado doutoramento, do ano 2000 – Manuel Dias de Oliveira: um compositor brasileiro dos tempos coloniais – partituras e documentos -,vem fazendo aprimoramentos e aprofundamentos, compartilhados em várias publicações, das quais destacamos (como referência mínima de leitura) seu livro Música Popular Brasileira Antiga, volumes I e II, de 2015 (disponível gratuitamente pela internet): é uma seleção de estudos feitos até aquela época, mas o (realmente) grande pesquisador não parou (e parece, nunca vai parar). De fato, torcemos que não pare, pois é sem dúvida “dos imprescindíveis”, como diria Bertolt Brecht.

Embora acreditemos que pesquisadores são como goleiros – só podemos elogiar após o apito final – ainda precisamos apontar mais uma qualidade importantíssima, que destaca o professor Ricciardi da maioria: é instrumentista, maestro e arranjador orquestral. Ah… como são desprezadas estas qualidades em análises de estudos musicológicos… e quanta diferença de visão somada elas fazem!

Mas… (e, naturalmente, este “mas” já era esperado), precisamos a este ponto vestir o personagem memento mori (saudação de antigos padres) ou hominem te memento, atribuído a antigos escravos romanos – ambas as expressões que servem para lembrar que, apesar de tudo, continuavam (e continuamos, todos) sendo humanos, mortais. Naturalmente, não nos atrevemos a desmentir o (agora) ídolo nosso, que esperamos que continue a ser paciente conosco após esta publicação – mas nos atrevemos, sim, a questionar algumas de suas colocações.

Não cabe aqui, nem estamos a fim de ir muito a fundo: tivéssemos onde publicar artigos científicos a serem antes revisados por cientistas, até poderíamos tentar fazê-lo. Abordaremos apenas alguns detalhes, especificamente quanto ao capítulo “Grande Lundum editado por Edward Laemmert no Rio de Janeiro – o gênero popular brasileiro entre o batuque e o samba”, do citado livro do professor Ricciardi, de 2015. Neste capítulo há desenvolvimento muito bem detalhado e embasado sobre diferenças entre batuque, lundum e modinha – ao qual, entretanto, observamos alguns requestionamentos (já agora não mais conseguimos evitar este nosso termo inventado).

A primeira e mais importante questão vem de nossas principais descobertas e defesas: questionamos apontamentos de alguma possível “viola caipira” antes da década de 1970, como se fosse a única – e até a predecessora de todos os demais modelos atuais da Família das Violas Brasileiras (postulação inédita nossa, baseada em centenas de fontes que apresentamos em nossa monografia). Não entendemos que possam ser consideradas nem citadas como “violas caipiras” as “violas” registradas nos primeiros séculos por aqui. Entendemos ser este, possivelmente, um equívoco: olhar o modelo mais famoso e conhecido modernamente como se já existisse na antiguidade – principalmente antes do caipirismo proposto só a partir do século XX, sendo que o termo “caipira” já existiria desde o início do século XIX, sem nunca antes ter significado, nem de longe, uma “cultura”. Este é o entendimento coletivo hoje replicado, por influência principalmente de teorias sociológicas que não tem comprovação por registros de época.

Sobre a utilização de “guitarras” (chamadas de “violas” por portugueses e brasileiros) em batuques, pelo menos no início do século XIX pudemos observar (sempre em tradução nossa), entre outros registros:

– em 1806, o comerciante inglês Thomas Lindley (ca. 1772-?), à página 127 de seu Narrative of a Voyage to Brasil descreveu guitars na Bahia, em uma dança com movimentos sensuais a qual chamou negro dance e que seria, para ele, […] a mixture of the dances of Africa, and the fandangoes of Spain and Portugal (“uma mistura de danças africanas e fandangos espanhois e portugueses”);

– entre 1809 e 1815, o português Henry Koster – “Henrique da Costa” (1793-1820), à página 241 de seu livro Travels in Brazil (edição em inglês que conseguimos acesso), detalhes de uma dança de “escravos de cor”, no nordeste do Brasil, com lascivious attitudes (atitudes lascivas) e cantos que conteriam indecent allusions (“alusões indecentes”), conduzidos por um guitar player (“guitarrista”);

– entre 1814 e 1815, o naturalista alemão Georg Wilhelm Freyreiss (1789-1825), à página 542 de seu Reisen in Brasilien (“Viagem ao Brasil”) citou Guitarre (em alemão) para instrumentos usados na dança que chamou de Batuca, em Minas Gerais;

– entre 1815 e 1817, o etnólogo alemão Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied (1782-1867), à página 91 de seu livro Travels in Brazil (novamente, só conseguimos a edição em inglês), chegou a registrar literalmente o termo “viola” ao lado de guitar, em duas descrições de baduccas, reuniões presenciadas no Rio de Janeiro;

– em 1819, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), à página 60 do segundo volume de seu Voyage aux sources du Rio de S. Francisco et dans la province de Goyaz também registrou o nome “viola” ao lado de guitare (em francês), que teriam sido vistas em Minas Gerais – além da interessante narrativa de uso do mesmo tipo de instrumento para a complainte (“lamentosa”) modinha e em seguida para o obscene batuque (os dois últimos termos sublinhados, grafados em bom português);

– em 1823, o militar português Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839), à página 37 de seu Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas províncias de Minas Gerais e Goiaz, apontaria excelente noção sobre instrumentos tocados por vadios em batuques em Minas Gerais, ao chamar os instrumentos de “[…] machete, bandurra ou viola”.

Como se observa pela pequena amostragem acima (há muitas mais em nossa monografia), pessoas de diversas nacionalidades narraram, com detalhes bastante similares, fatos observados em diversas regiões do Brasil. A nós se torna difícil entender, portanto, que nos batuques houvesse apenas kalimbas (sequer citadas nestas e várias outras fontes) – pelo menos, naquele período, do qual há bom número de registros.

Sobre instrumentos utilizados por pretos à época, já destacamos antes aqui, em outro brevis articulus, a narrativa do pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848), às páginas 128 e 129 do segundo volume de seu livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil: marimba (hoje conhecida também como kalimba); viole d’Angola, espèce de lyre à quatre cordes (“Viola de Angola, espécie de lira de quatro cordas”); violon (“violino” de uma corda, cujo corpo seria um côco atravessado por uma vara, tocado por um pequeno arco) e oricongo (que pelas descrições e imagens seria o berimbau). Os instrumentos, citados também por outros exploradores estrangeiros à época, infelizmente não teriam sido todos registrados em pinturas / desenhos, que apontam mais kalimbas / marimbas – talvez daí o equívoco em pensar que estes instrumentos (e não as violas) predominassem nos batuques.

Aos dados muito bem apontados pelo maestro Ricciardi, consideramos importante acrescentar que os mais remotos registros que encontramos de “modinhas” transcritas em pauta, no Brasil, foram:

– em 1806, o médico e naturalista alemão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852), Cônsul da Rússia, durante expedição pela Vila de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina, fez o registro em pauta musical de uma Brasiliaansche Aria (“ária brasileira”, em holandês), à página 54 do livro Reis rondom de Wereld, in de Jaren 1803 tot 1807 (“Viagem ao Redor do Mundo de 1803 a 1807”). O viajante grafou em português, no alto da partitura, a palavra “modinha”, assim como a letra completa da música – mas sem apontar autor. Em 6/8, no tom de Fá maior ou Ré menor (clave de sol com um bemol), a pauta aponta, abaixo da parte da linha melódica do canto, uma parte de acompanhamento simples que poderia ser para piano (claves de Sol e de Dó). Em termos de descrição, encontramos apenas a afirmação “[…] Talvez uma ária brasileira seja mais agradável aos meus leitores do que uma simples descrição: portanto, não hesito em acrescentar uma aqui” (tradução nossa, *1) e a informação “[…] Os instrumentos musicais mais usados são a guitarra e o dulcimer” (também em tradução nossa, *2). É possível que o Langsdorff tenha identificado ao “dulcimer” (uma espécie de saltério cujas cordas sriam tocadas via golpes de palhetas) as tais kalimbas. Esta informação, entretanto, vem logo após apontamento de que os instrumentos eram utilizados em reuniões onde também se dançava e se contavam anedotas, que vem ao encontro de outras citações de uso dos mesmos instrumentos nos chamados batuques (que neste caso o alemão não citou nem descreveu em detalhes).

– entre 1820 e 1822, coleção de vinte peças que teriam sido compostas pelo VIOLEIRO Joaquim Manoel Gago da Câmara (ca.1771-ca.1738), transcritas para piano pelo compositor e pianista austríaco Sigismund von Neukomm (1778-1858), trazidas a conhecimento público pelo Dr. Marcelo Fagerlande (segundo seu artigo “Joaquim Manoel, improvisador de modinhas”, de 2005).

Sobre a não utilização dos nomes “batuque” e “lundum” (e/ou similares) antes do século XVIII, extremamente bem pontuada pelo professor Ricciardi, nos chama a atenção porém citações de “embigadas”, em poema sem título atribuído ao VIOLEIRO Gregório de Mattos (1636-1695) – Obras Poéticas, 1992 – numa dança que se chamaria, à época, “cãozinho”. “Cãozinho” seria um dos nomes de danças “à viola” daquela época coincidentes aos do século XVIII, além de “arromba”, “canário” e “guandu” – segundo o dicionarista inglês Rafael Bluteau (1638-1734) – Vocabulario Portuguez e Latino. Ou seja, sem os nomes mais “modernos”, descrições evidenciam similaridade das danças com viola desde o século XVI. Aliás, o que não faltam em poesias atribuídas a Gregório “Boca do Inferno” são narrativas sensuais sobre várias situações, incluindo diversas danças – mas o também sonetista, quando queria ser sério, teria aplicado em cantigas dolentes a sua “viola” (citada nas poesias também como “bandurra” e “guitarrilha”, mas nunca “de cabaça” – é sempre bom lembrar!).

O nosso “ponto” final é que, segundo a metodologia que aplicamos, nomes variam de significado com o passar dos anos, por vários fatores (sobretudo em línguas diferentes como as africanas e o português); não estar atento aos contextos históricos deles (tanto nomes quanto significados) pode talvez mascarar entendimentos mais modernos. É muito importante também considerar que a África é um continente, da qual habitantes de várias nações diferentes foram sequestrados (fato considerado, por exemplo, no trecho citado de Debret). Foram, portanto, vários dialetos africanos misturados: é plausível surgirem mais de um nome para as mesmas coisas.

São fenômenos circundantes aos nomes de instrumentos musicais (aos quais já apresentamos desenvolvimentos diversas vezes), os nomes de ritmos, danças e outros. À parte de nomenclaturas como calundu, lundu (ou lundum e similares), festejo, batuque, fandango, cantiga, moda e modinha – entre outras, pelos séculos, que podem ser oriundas de diversas línguas diferentes (nossa pesquisa não foi tão longe para detalhar), evidências são apontadas, num resumo, em atividades musicais típicas de pretos, escravizados presentes por praticamente todo o Brasil e que tocavam cordofones – entre outros instrumentos, mas não apenas “de batucada” (de percussão) para acompanhar cantos e danças. A posterior ligação do termo “batuque” às batucadas, consolidada hoje, também ajuda a entender equivocadamente que os pretos só tocassem instrumentos percussivos nos antigos (e originais) batuques. Debret teria observado muito bem as diversas tendências (bater de palmas, sons com a boca, canto improvisado entre outras), tendo inclusive ensaiado uma possível identificação das nações africanas diferentes representadas, segundo ele, por estas características musicais específicas – mas os escravizados não eram separados por nações, misturavam-se todos.

Há que se considerar que a partir dos registros mais remotos que se tem conhecimento, termos (nomes) hoje consolidados, oriundos de diversas línguas diferentes, teriam passado por fases de amadurecimento – de transição, com mistura entre várias línguas, e muita transmissão oral envolvida – até atingirem os atuais significados a eles atribuídos. É muito provável, por exemplo, que o que se citava como “modinha” em meados do século XVIII não fosse ainda, exatamente, o que veio a se tornar a partir do início do século XIX (quando, inclusive, a sociedade europeia passava por significativas mudanças sociais, por causa da Revolução Industrial).  

Nenhuma teoria é capaz de mudar o fato de que Domingos Caldas Barbosa, em 1798 ou 1799, no seu Viola de Lereno, não usou os termos “modinha” nem “lundum” para suas CANTIGAS (os dois termos são observados apenas na edição póstuma, de 1826) – e que durante todo o mesmo século XVIII, em diversas e abrangentes publicações, o já citado dicionarista Bluteau (considerado um dos mais importantes da época, em Lisboa) não citou “modinha” – apenas “moda”, porém como genérico a “qualquer canção tocada à viola ou ao cravo”. Pela cronologia dos registros, “moda” teria sido usado bem antes de “modinha”: “moda” continua tendo  o mesmo significado genérico popular até hoje – mas “modinha” é aplicado como o nome de um estilo, mais especificamente ligado a canções dolentes, lentas, melancólicas. Nem no passado, nem atualmente os dois termos apontam ter sido / serem “a mesma coisa”. Naturalmente, teorias podem tentar explicar/justificar estes fatos – é lícito e válido.

Entre diversas outras questões, porém, acrescentaríamos: mas afinal, onde raios Domingos Barbosa terá aprendido a tocar viola e a improvisar / criar versos como os de suas cantigas publicadas? Terá um preto nascido no Rio de Janeiro aproximadamente entre 1738 e 1740 visto tais coisas serem feitas? Terá havido outros pretos bons de viola e bons versadores na época dele? Partes desta mesma pergunta múltipla também caberiam sobre Joaquim Manoel Gago da Câmara, sobre Gregório e seu irmão Euzébio, e sobre o Padre Mestre Maurício Nunes (embora dos últimos três haja registros de quem os teriam ensinado viola: “mulatos”). Será coincidência ou amostra estatística terem existido e sobrevivido notícias destes pretos tão bons de viola, de música, de versos?   

Sobre variedade de termos, apontamos como exemplo os atuais entendimentos a respeito do termo “pagode”: sem contar o que significa fora do Brasil (como na Índia e outros países, onde é nome de templos), “pagode” referia-se desde antigamente, em Minas Gerais, a uma reunião para tocar, cantar e dançar (exatamente como os batuques); hoje, é alcunha também de ritmos: um ritmo de viola, criado por Tião Carreiro e, depois, passou a ser usado também como nome do samba mais comercial, do qual se diz ser possível “dançar um pagode” – que seria o mesmo que “sambar”.

Pelas evidências em dezenas de registros, “batuque” e “lundum” (entre outros nomes) também teriam tido entendimentos semelhantes, confundíveis e confundidos pelos tempos: tanto as reuniões (para cantar, dançar, “folguedar”), quanto os ritmos tocados e ainda as respectivas danças. E, apesar da posterior utilização (e desenvolvimento) também pelos brancos, tudo teria se originado (ou “sido criado”, ou “executado antes”) a partir dos afrodescendentes.

Pode-se dizer que não seria “música brasileira popular” porque seria oriunda diretamente da África, se há tantos registros de escravizados (como os chamados “barbeiros”, entre outros) adaptando-se, para tentar sobreviver um pouco melhor, a demandas musicais dos brancos, tanto dentro quanto fora das igrejas? Pode-se alegar (e provar) que o temperamento musical não estaria presente nas “violas” dos batuques do início do século XIX? Pode-se. Tudo pode. Só afirmamos (com as devidas ressalvas) que o assunto parece ainda não estar esgotado, e que ainda poderia haver crédito histórico a ser concedido aos geniais VIOLEIROS pretos brasileiros – que poderiam ser nossa verdadeira raiz musical – que chamamos, atrevida e arbitrariamente, de “violas pretas”.        

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

As principais fontes foram todas citadas durante o próprio texto.

No original:

*1: Misschien zal voor mijne lezers eene Brasiliaansche aria aangenamer zijn, dan eene kale beschrijving: ik aarzel daarom niet, er eene hiernevens te voegen.

*2: De gebruikelijkſte ſpeeltuigen zijn de guitar em het hakkebord.

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JOÃO ARAUJO

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ORGANA: UMA COMPLICADA POSSÍVEL ORIGEM DO FORMATO E DO NOME DAS VIOLAS

ORGANA: uma complicada possível origem do formato e do nome das VIOLAS

Organum vocabulum est generale vasorum omnium musicorum

Organum é um nome geral para todos os instrumentos musicais”

(Santo Isidoro de Sevilha, Etymologiae, século VI)

Viola, Saúde e Paz!

Relutamos, a princípio, em tratar das organas em um brevis articulus, para um público interessado principalmente em violas dedilhadas – assim como apenas citamos o nome en passant em nosso livro A Chave do Baú; entretanto, o formato cinturado das organas e o nome “viola de roda” (em francês, vielle a roue) – ambos constatados a partir do século XI – são evidências de ligações ancestrais com nossas violas, tanto as dedilhadas quanto a friccionadas por arco. 

Sem dúvida não é um assunto simples. Muitos pesquisadores, inclusive, optam por estudar instrumentos musicais só a partir de registros mais seguros, como instrumentos remanescentes, partituras / tablaturas, descrições claras feitas por antigos entendedores em música. Estes olhares, entretanto, revelam visões que consideramos incompletas – como os profundos estudos propagados em escolas de música sobre o organum (singular de organa, tanto em grego quanto em latim). Este sistema, considerado entre os mais remotos estudos sobre harmonia musical, costuma ser visto apenas pela visão do canto harmonizado – enquanto, entre outros, o histórico do termo aponta, além do uso em cantos, registros em instrumentos musicais muito interessantes.

Nossa metodologia – que inclui seguir variações do histórico das palavras pelos tempos – revela que muitas vezes é possível entender pelo menos o âmago, o mais profundo do desenvolvimento histórico dos instrumentos. Mesmo que só se conheçam poucos registros escritos, de nomes que variam muito e que não se possa saber tudo sobre alguns instrumentos, várias das antigas características sobrevivem aos séculos, tanto nos nomes quanto em detalhes organológicos – e estas características podem ser rastreadas até as mais conhecidas origens dos instrumentos.

Não é fácil – mas se somarmos olhares de múltiplas ciências (História, linguística, musicologia, sociologia, estatística e outras), alguns tesouros ainda podem ser descobertos! E cada tesouro descoberto, em si é uma aula, que pode ajudar a descobrir outros. Há muitas coerências observáveis.

Tentaremos apresentar aqui um resumo coerente – mas a partir deste aprofundamento, talvez tenhamos que nos dedicar à publicação também de um artigo científico, mais amplo, onde a abordagem acadêmica se mostrará mais eficaz para esclarecimento de detalhes; pois não vamos negar: é complexo. Talvez seja o caso de ler mais de uma vez o conteúdo que se segue.

O instrumento é “complicadão” – talvez o mais complexo dos cordofones, a começar do nome ORGANA: vindo do Grego (όργανα, plural de όργανο), significaria apenas “instrumentos musicais” – por isso, quando aparece em alguns textos antigos, só podemos dizer que fosse um “genérico”, porque há detalhes muito diferentes citados aqui e ali… Para complicar, organa (que é plural) surgiu muitas vezes no singular, quando nome de um instrumento musical específico…

Mas preste atenção na curiosa sina que este genérico acabou trilhando!

Um mergulho rápido no histórico do nome, a partir do latim dos romanos, é muito importante para entendermos o novelo – então, não perca o fio: fora dos significados “musicais”, por assim dizer, organum também seria utilizado com o significado de “órgão do corpo humano” – e organon é como ficou conhecido, por convenção, o conjunto de obras sobre lógica do filósofo grego Aristóteles (384-322 aC.).

Já com significados relacionados à música, nos mais badalados estudos antigos, Anisio Boethius (ca.480-ca.525) – considerado grande intérprete de fontes gregas – teria utilizado apenas duas vezes organum (nas flexões organis e organo), como genérico (“instrumentos musicais”), em seu De institutione musica – e no texto de autor desconhecido Musica Enchiriadis (estimado ao ano de 900), aparece o conceito mais conhecido hoje em dia, que seria a chamada “abertura de vozes”: “[…] vozes, distantes umas das outras, reproduzem sinfonias sucessivas, sendo chamadas corretamente de sinfonias, isto é, como as mesmas vozes devem se unir no canto. Pois é isso que chamamos de diaphonia de uma música, ou o que costumamos chamar de organum (tradução nossa, *1).

Nas universidades, estudos atuais baseados em livros como História da Música Ocidental, de Donald Grout e Claude Palisca (na edição traduzida em Lisboa, em 1994, ver páginas 97 a 120) trazem interessante histórico sobre o organum do século IX ao XIII, porém com algumas ressalvas, posto que fixam-se apenas no aspecto do canto. No próprio Musica Enchiriadis já haveria a citação “[…] Para vozes humanas, e em alguns instrumentos musicais, não apenas dois e dois, mas também três e três podem ser misturados dessa maneira” (tradução e grifo nossos *2).

De fato, a ligação do nome a instrumentos musicais pode ter sido bem anterior: o profeta Daniel (que se estima teria vivido no século VII aC.) teria narrado algumas vezes a lista de instrumentos “[…] tuba, fistula, citara, sambuca, saltério e sinfonia” (Daniel, capítulo 3, versículos 5, 7, 10 e 12, segundo a Bíblia Vulgata Online – tradução e grifos nossos *3). Não conseguimos ainda acesso aos termos originais (que teriam sido em hebráico ou grego), mas confiando (com ressalvas) nas traduções de Isidoro de Sevilha (ca.560-ca.636), o estudioso teria analisado a lista em sua Etymologiae, chamando atenção para as modulações entre cantos e “instrumentos musicais” (estes, que ele teria chamado genericamente de organum) – modulações que, como já citamos, constariam depois do Musica Enchiriadis: “[…] Num salmo cantado, após as modulações dos instrumentos é que a voz do cantor segue – quando o canto precede, a arte de modulação dos instrumentos é imitada” (tradução nossa *4). A lista de instrumentos sonum vocis animantur (“animados pela voz”) de Isidoro teria sido um pouco diferente da de Daniel, e os complementos que introduziu, muito interessantes:

“[…] tuba, calamus, fistula, organa, pandoria e instrumentos similares. Organum é um nome geral para todos os instrumentos musicais. Os gregos também usavam outro nome, nos que usavam folles [bolsas], mas chamar de organum é o costume mais popular […] Calamus é o nome de uma árvore [planta] que aquece, como as vozes ao se somarem […] Sambuca na música é uma espécie de sinfonia – é uma madeira quebradiça, da qual são feitos os canos. Pandoria, assim chamado pelo inventor [Pan], que primeiro adaptou as palhetas díspares para a música e as compôs com arte estudiosa” (tradução e grifos nossos, *5).

Como se observa, Isidoro relaciona aos organum (ou “às organas”), em sua lista, só instrumentos de sopro – mas cita sambuca e há ligação deste nome com harpas e saltérios, dedilhados cujas partes seriam feitas do mesmo tipo de planta.

Isidoro, religioso que chegaria a ser canonizado pela Igreja Católica, foi bastante secundado; seu trabalho teria sido o primeiro de carácter “etimológico”, por assim dizer (como indica o título). Embora farto de citações a fontes que teria lido, Isidoro já aplicava teorias próprias sem apresentação de fontes e desenvolvimentos específicos (como alguns linguistas ainda o fazem) e citava mitos antigos misturados às análises. Mas conseguimos atestar organa, por exemplo, antes de Isidoro, em versos do Apotheosis, do poeta romano Aurelius Prudentius (ca.348-ca.413): […] organa, sambucas, citharas calamosque tubasque (onde se veriam cordofones listados junto a sopros) e, no mesmo século VI de Boethius e Isidoro, em verso da Carmina do bispo italiano Venantius Fortunatus (ca. 530-ca.609): […] hinc puer exiguis attemperat organa cannis (“Então o garotinho temperava os tubos da organa”, em tradução nossa). Observamos também mais algumas citações semelhantes no livro De Cantu et Musica Sacra, do musicólogo alemão Martino Gerberto (1720-1793).  

No séc. X, outro religioso e musicólogo – Odo de Clúnia (ca.818-942) – ainda citaria Boethius, Isidoro e outros e, finalmente, só a partir do século XI se conhecem esculturas e desenhos sobre organas – porém, como um cordofone de caixa cinturada (como as atuais violas e guitarras): os mais antigos, grandes (ao colo de duas pessoas assentadas), com uma manivela numa extremidade, para acionamento de uma roda, que friccionava as poucas cordas enquando o outro músico acionaria teclas, para alterar as notas de uma das cordas (as demais soavam em nota única, soltas).

O detalhe de execução de notas alteradas em uma corda, enquanto as demais soariam soltas, com notas constantes, é importante para entendermos outros instrumentos com execução semelhante, cujos nomes manteriam ligação com as organas – porém, remetendo aos antigos instrumentos de sopro. É o caso, entre os séculos XI e XII, da mais remota citação a um instrumento nomidado de musa pelo musicólogo Johannes Afflighemensis – “John Cotton” (ca.1053-ca.1121), em De Musica cun Tonario : “[…] é soprado pela respiração humana como a tibia, regulado pela mão como a phiala e animado por um folle [bolsa] como a organa (tradução e grifos nossos *6). Alegando que in musa multimoda conveniunt instrumenta (“na musa muitos instrumentos se misturam”), John Cotton teria descrito algo bem próximo às atuais gaitas-de-fole, dando destaque que o folle viria das organas, segundo os gregos – exatamente como Santo Isidoro teria citado, no século VI. Nas gaitas-de-fole, um som é variado e outros, constantes em uma mesma nota.

Parada para respirar e refletir: é complexo, não? Mais nomes vão se juntando e parece ser tudo aleatório – inclusive, é assim que a maioria dos estudiosos parecem entender, pois não encontramos estudo similar. Entretanto, há um esqueleto lógico ligando tantas variações de nomes, que vamos abordar melhor um pouco à frente…  

A mais antiga escultura de uma organa teria sido observada na Igreja de Saint Georges de Bocherville, na França – segundo o livro Mémoire sur Hucbald et sur ses Traités de Musique (edição de 1841, ver páginas 168-169), do musicólogo e etnólogo francês Edmond de Coussemaker (1805-1876). À época daquele livro, ainda se acreditava que o musicólogo francês Hucbald (ca.840-ca.930) teria sido o autor do Musica Enchiriadis e Coussemaker apontou um vasto desenvolvimento de que o instrumento da escultura representaria a técnica descrita como organum ou diaphonia – mas não apenas ele: entre vários outros estudiosos, a pesquisadora espanhola Rosário Martinez, em seu doutoramento, apresentou um banco de dados bastante vasto de esculturas, desenhos e até várias versões diferentes de manuscritos onde há citações das mesmas organas (cinfonias, em espanhol) e suas peculiaridades.

Os nomes latinos mais observados foram organa, symphonia e sambuca rotata:

– “sinfonia”, assim como hoje, já remeteria a mais de uma nota musical emitida ao mesmo tempo, sons variados; isso gera confusão, às vezes, por poder ser às vezes a organa (instrumento) e outras, ser um conjunto tocando – ambos, afinal, podem ser entendidos como tipos de “sinfonias”;

sambucus (e calamus) se referem a árvores ou plantas das quais se fabricavam partes de harpas e saltérios (cordofones), mas também alguns tipos de “flautas” (chamadas em latim cannis, fistula, tibia e outros nomes);

rotata (ou “de roda”), porque as cordas eram fricionadas por uma roda, que era tocada via uma manivela.

Neste ponto, os nomes já dizem muito, concorda? E desenhos e esculturas vieram a ajudar, depois. Após os primeiros instrumentos (que precisavam de duas pessoas para serem tocados), o tamanho foi diminuindo até próximo ao dos cordofones portáteis atuais – mas as organas acabariam por influenciar mais que só os cordofones…

A principal característica da organa é ter tido vários nomes bem diferentes – e características que, assim como os nomes antigos, às vezes sobreviveriam em outros instrumentos, por séculos. É muito curioso, além de complicado – mas é uma grande aula, que serve para entender um pouco a história de vários instrumentos musicais.

Os antigos nomes latinos teriam sido substituídos pelos séculos – segundo vários estudiosos, em várias línguas – por uma série de nomes que parecem aleatórios, mas, agora que vimos as origens mais remotas, podem fazer algum sentido: 

viola de roda, sanfonia – em catalão;

syphonie, cyfonie, chifonie, vielle à roue – em francês;

simfonia, cinfonia, zanfonia, viola de ruedas, zarrabete – em espanhol;

sinfonia, sanfona, zanfoña, zanfonia – em galês (da Galicia);

ghironda, lyra rustica, lira d’orbo, lyra mendicorum, stampella – em italiano;

syphonie e depois hurdy-gurdy (“gaita-de-fole”) – em inglês;

Drehleier (“gaita-de-fole” ou “sanfona”), Radleier (“lira de roda”), Bauernleier (“lira camponesa ou rústica”), Bettlerleier (“lira de mendigo”), Weiber-Leier (“lira de mulheres”), Uroblaufende (?) – em alemão.

Este levantamento de nomes foi apontado pela já citada Dra. Martinez, que checamos e acrescentamos a partir de outros estudos e fontes, de várias outras línguas. No caso, entendemos que a pesquisadora pouco fugiu às citações relacionadas aos cordofones… Percebe-se que as mais antigas “violas” (nomenclatura surgida a partir do século XII), parecem ter tido seu nome influenciado por aquelas primeiras “violas de roda” – cujo corpo já tinha o formato cinturado, além de cordas. Mas é muito mais…

Do sambucus (a tal árvore, que é o sabugueiro), também seriam feitos instrumentos de sopro – cannis, “cano”, “tubo”… daí, várias flautas múltiplas (que, portanto, poderiam fazer “sinfonias”, ou seja, emitir mais de uma nota ao mesmo tempo) como o sheng chinês, a suégala ou swegilbeine alemã e a launedda italiana /sarda – esta última, chamada também bidula, vidula ou zampgone, em dialetos antigos, confundiu até alguns linguistas experientes, que chegaram a listá-la equivocadamente junto a outros nomes ligados a ancestralidade de “viola”. Como repetimos sempre, é confuso – até para estudiosos de línguas!

E “gaita”? Da gaita-de-foles, cornomusa antiga (por causa de musa, lembra?), percebemos alghaita, em árabe, que remete à “palheta” – assim como paleo, em latim, que seria “palha”, remetendo aos caules secos das plantas utilizadas para construção dos instrumentos. As palhetas, que conhecemos bem dos cordofones dedilhados, são conhecidas de maneira geral como plectros – e estão presentes também nos instrumentos de sopro (pequenas peças que alteram a sonoridade, às vezes móveis, às vezes fixas). Interessante é que as gaitas-de-boca também são conhecidas por “harmônicas” – que remete ao conceito antigo de “sinfonia”, já que também emitem mais de uma nota ao mesmo tempo e que seria o mesmo conceito que teria levado de simphonya a “sanfona” e similares. De organa, organum até “órgão” não é difícil entender o nome dos antigos órgãos, também movidos a ar.

Por isso é preciso ter olhar múltiplo: olha aí nomes diferentes tendo alguma coerência, a partir da ancestralidade: parece “viola”, mas ao mesmo tempo parece sanfona, gaita, flauta… Entretanto, o ponto principal: são sempre instrumentos capazes de emitir mais de uma nota ao mesmo tempo, ou seja, de emitir “sinfonias”!

Percebeu?

Analisando por grupos com remanescências das organas:

– tirando a manivela, a roda e as teclas (que foi o que acabou acontecendo depois), as organas do século XI ainda funcionariam, dedilhando-se suas cordas; e, um pouco depois, as cordas também poderiam ser tocadas por arco – de onde teria surgido a intermediária nickelharpa: tocada por arco, porém ainda com as antigas teclas. E, claro, depois também as atuais violas, que já citamos – tanto dedilhadas quanto friccionadas;

– cordas acionadas por teclas, e/ou via “martelinhos” (também chamados plectros), como teriam sido as antigas cítaras tipo dulcimer, temos hoje cravos e pianos;

– instrumento acionado por manivela, o realengo (ou realejo);

– “órgãos” acionados pelo ar (antigos), eletrônicos (hoje)…

Entendeu a minúcia, os resquícios nos nomes e/ou características físicas (organológicas), rompendo séculos? Se não entendeu, sugerimos dar uma segunda lida – são muitos dados, talvez algo tenha escapado ou não tenhamos sido muito claros.

Mas se entendeu, parabéns: você pode estudar a história dos instrumentos musicais a partir das mais profundas raízes: os registros escritos de seus nomes! Pelo que percebemos, poucos tem coragem de mergulhar tão fundo.

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

No original:

*1: quod proprie simphoniæ dicuntur et sunt, id est qualiter eaedem voces sese in unum canendo habeant. Haec namque est, quam diaphoniam cantilenam vel assuete organum nuncupamus. 

*2: Possunt enim et humanæ voces et in aliquibus instrumentis musicis non modo binæ et binæ, sed et ternæ ac ternæ hac sibi collatione misceri

*3: tubæ, et fistulæ, et citharæ, sambucæ, et psalterii, et symphoniæ

*4: Nam canticum Psalmi est, cum id quod organum modulatur, vox postea cantantis eloquitur. Psalmus vero cantici, cum quod humana vox praeloquitur, ars organi modulantis imitatur.

*5: quae spiritu reflante conpleta in sonum vocis animantur, ut sunt tubæ, calami, fistulæ, organa, pandoria, et his similia instrumenta. Organum vocabulum est generale vasorum omnium musicorum. Hoc autem, cui folles adhibentur, alio Graeci nomine appellant. Ut autem organum dicatur, magis ea vulgaris est Graecorum consuetudo. […] Calamus nomen est proprium arboris a calendo, id est fundendo voces vocatus […] Sambuca in musicis species est symphoniarum. Est enim genus ligni fragilis, unde tibiæ conponuntur. Pandorius ab inventore vocatus […] qui primus dispares calamos ad cantum aptavit, et studiosa arte conposuit.

*6: humano siquidem inflatur spiritu ut tibia, manu temperatur ut phiala, folle excitatur ut organa.

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12 Abr, 2023

DEBRET E AS VERDADEIRAS RAÍZES DA MÚSICA BRASILEIRA

Debret e as verdadeiras raízes da música brasileira

Mais la chanson finie, le charme cesse; et chacun se sépare froidement, en repensant

au fouet du maître et à achever la commission qu’avait interrompue cet intermède délicieux.

(“Mas quando a música termina, o encanto cessa; e cada um se separa friamente, pensando nas chicotadas do mestre e em completar a missão que esse delicioso interlúdio havia interrompido”).

[Debret, entre 1816 e 1831, tradução nossa].

Viola, Saúde e Paz!

Embora com uma visão particular sobre as diferentes nações africanas representadas nas ruas do Rio de Janeiro, entre 1816 e 1831, são consideráveis registros de época as descrições do pintor francês Jean Baptiste Debret, em três volumes de seu livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil (“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”). Destacamos aqui as páginas 128 e 129 do volume 2, edição de 1835.

É importante frisar: teria sido “música de rua”, ou seja: todos que passavam ouviriam e seriam influenciados, de certa forma; e teria sido na capital do Império, mas há também registros semelhantes por várias outras localidades brasileiras da época.

Segundo Debret, algumas nações africanas, representadas por escravizados que ele via, teriam características diferentes:

Uma nação usaria muito o canto improvisado, apoiado em coro pelo grupo (que ia se formando), principalmente na parte que ele chama em francês de ritournelles (que interpretamos como “refrãos”) e por pantomimes (ou seja, “gestos, movimentos”), além de batidas de objetos que servissem de percussão também improvisada; estes objetos seriam feitos de ferro, concha, caixas, latas, madeiras, etc.

Um outro grupo não seria cantante – só usaria um expressivo bater de palmas sincronizado e rítmico, que ele chamou, talvez por não ter canto agregado, de “mais bárbaros” – mas nos parece que isso seria conjectural, pois o não uso da voz não prova nada, e toda musicalidade africana é bem complexa, ou seja, “só bater palmas” não significaria que seriam pouco evoluídos. 

O francês descreveu aos dois primeiros grupos como ensemble parfait (“conjunto perfeito”); se observarmos bem, uma soma das execuções listadas (a cantoria e as percussões improvisadas, as respostas em coro, o bater de palmas sincronizado, etc.) ainda pode ser observada hoje em dia em rodas de samba, nos pagodes, nos siriris, nos cururus, nos calangos e outras manifestações regionais pelo Brasil.

Outras nações – que Debret apontou como Benguehs et Angolais (“Benguelas e Angolanos”) – seriam os mais musicais, sendo também “notáveis construtores de seus próprios instrumentos”, com destaque a quatro tipos de instrumentos:

marimba (que hoje é conhecido também como kalimba);

viole d’Angola, espèce de lyre à quatre cordes (“Viola de Angola, espécie de lira de quatro cordas”);

violon (“violino” de uma corda, cujo corpo seria um côco atravessado por uma vara, tocado por um pequeno arco);

oricongo (que pelas descrições e imagens seria o berimbau).

Alguns destes quatro tipos de instrumentos também teriam sido vistos pela ilustradora britânica Maria Graham, em 1821 – conforme seu livro Journal of a voyage to Brazil (na publicação de 1824, ver página 199) – e em 1829 pelo padre Robert Walsh, livro Notices of Brazil in 1828 1829 (na publicação de 1830, volume 2, ver página 186) – mas  infelizmente, nestes livros, quando haviam, só foram observadas ilustrações de marimbas e berimbaus. Debret chegou a registrar desenhos de cordofones arredondados e abaulados, mas muito bem acabados, que não seriam jamais os rústicos, dos escravizados (era costume incrementar depois alguns desenhos conforme a cultura europeia).

Curiosamente, um outro explorador francês – identificado apenas como M. de la Flotte – teria visto tanto no Brasil (em 1757) quanto na Índia instrumentos que descreveu como mauvaise guitarre (“guitarra rústica”) ou “uma espécie de guitarra”. Apenas nas narrativas sobre a Ìndia, Flotte descreveu que os instrumentos seriam como “cabaças grandes com cabo [braço] comprido onde se prendem uma, duas ou três cordas” e que acompanhariam cantos. Lá na Índia, outra coincidência seria que os indiens (sem citação sobre cor da pele nem se seriam escravizados) também executariam danças com movimentos lascivos, como nós observamos em descrições de nossos batuques daqui. As descrições de Flotte vimos no livro Essais historiques sur l’ude précédés d’um journal devoyages – na edição de 1769, ver páginas 211 a 216.

Em inglês, traduzimos por “cabaça” os termos gourd e calabash; em francês, o termo foi calebasse. Estas pouquíssimas citações encontradas são as únicas entre uma banza (citada uma vez em um poema de Gregório de Mattos, do século XVII) e as Violas de Cabaça construídas por Levi Ramiro a partir da década de 1980 – sendo que banzas realmente foram instrumentos africanos feitos com cabaças, famosos em Portugal e que teriam influenciado o surgimento do banjo estadunidense (também feito com cabaças, quando surgiu). Consideramos, portanto, o número de citações muito pequeno, indicando que não teriam sido Violas de Cabaça as utilizadas por Gregório de Mattos nem teriam existido nos primeiros séculos – mas o boato (ou equívoco histórico) teria sido forte o suficiente para seu surgimento no Brasil, estando hoje consolidada.

Voltando a Debret, em uma ilustração (Planche 41), indicada no próprio texto que citamos aqui, observam-se três escravizados: uma mulher adulta assentada, tocando marimba; um senhor mais idoso, em pé, de olhos fechados, tocando um berimbau; e ainda um jovem, em pé, carregando uma cana de açúcar. Debret a descreveu assim:

“[…] representa a desgraça de um velho escravo negro reduzido à mendicância. A cegueira trouxe sua emancipação: generosidade bárbara muitas vezes repetida no Brasil pela avareza. Seu pequeno guia carrega uma cana de açúcar, esmola destinada à alimentação comum. A musicista toca marimba e, pela atração da harmonia musical, aproxima seu instrumento do companheiro, sobre quem lança um olhar fixo e delirante”.

Debret ainda acrescentou: “A marimba, espèce d’harmonica, é constituída por lâminas de ferro fixadas a uma tábua de madeira, e apoiadas por um cavalete. Cada uma dessas lâminas vibra ao ser pressionada pelos polegares do tocador, que as força à flexão e à produção de um som harmônico, ao se endireitarem. Uma grande parte de uma cabaça, montada como fundo deste instrumento, dá-lhe um som muito mais profundo, e quase como o de uma harpa…”.

Eram curiosos os entendimentos de Debret: quanto ao berimbau, teria citado que a corda seria similar a de um tympanon – instrumento que, embora o termo em latim e em francês se pareça com “tímpano” (caixa de percussão), descobrimos que alguns o utilizariam também para cordonofones sem braço, de caixas trapezoidais – mais conhecidos como “cítara”, mas também como cimbalo (de cymbalum, em latim): outro termo relacionado a instrumentos de percussão, em outras línguas… Sim: quem pesquisa nomes antigos às vezes encontra estas encruzilhadas!

Já o entendimento do francês de que talvez a marimba se pareceria com uma harmonica (que hoje para nós significaria uma gaita de boca, instrumento de sopro), deixa ainda mais “pano para manga”:

Uma possibilidade (apenas por causa do nome) seriam as chamadas “harmônicas de vidro”, já existentes e bem famosas na Europa da época – mas cujo som seria emitido pelo contato das mãos com copos de vidro, sem a emissão de notas “pinicadas”, como nas harpas (que foi a comparação sonora indicada por Debret). Pianolas (pianos automáticos) seriam talvez similares na mecânica de funcionamento, mas não teriam sido inventadas ainda, apenas no final daquele século. Por fim, encontramos um ancestral dos xilofones (classificação popular da família das marimbas), também africano e com ressonância ligada a cabaças, porém pelo nome de balafon.

Sobre a harmonica de Debret, por enquanto, para nós é um mistério – sendo que talvez tenha querido dizer apenas “um instrumento de harmonia”; desconfiamos ainda alguma possível ligação à organa – ancestral de vários tipos de instrumentos, inclusive das nossas violas, que particularmente nos dedicamos a estudar e descobrimos detalhes que poucos teriam observado… mas aí já é outra prosa…

Muito obrigado pela atenção até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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6 Abr, 2023

UMA FAMÍLIA DE VIOLAS DEDILHADAS

Uma Família de Violas dedilhadas

Viola, Saúde e Paz!

Entre as principais novidades que apontamos cientificamente no livro “A Chave do Baú” é que o Brasil está muito longe de ter apenas “uma viola dedilhada” como a maioria entende…

 Atrevemo-nos a contextualizar, muito provavelmente pela primeira vez, a existência e desenvolvimento histórico de uma Família de Violas Brasileiras dedilhadas, consolidada atualmente. No caso, consideramos “consolidados” os modelos que hoje teriam comprovada incidência além de suas regiões/Estados de origem, via praticantes e participações / citações em estudos, eventos, publicações e outras evidências.

Nossa base científica parte da História europeia dos cordofones, à qual o Brasil e todas as Américas devem suas origens. Os modelos de viola consolidados hoje, bastante diferentes entre sí, estariam de acordo com dados histórico-sociais-organológicos comuns e, assim como em Portugal, são ligados pela nomenclatura “viola” – nome cujas evidências indicam ter sido a verdadeira origem dos atuais instrumentos dedilhados, numa ação nacionalista portuguesa contra nomes utilizados por culturas dissidentes como alaúde, vihuela, guitarra e outros. Desenvolvemos cientificamente, em outra postulação inédita e com base em diversos registros e contextos de época, que o nome “viola” para dedilhados teria surgido em Portugal antes do instrumento existir de maneira distinguível, tendo se consolidado a partir de um modelo antecessor das guitarras espanholas. Em uma fase de transição de aproximadamente 70 anos, as guitarras migraram de 10×5 (dez cordas em cinco ordens) para 6×6 – o atual “violão” – e as “violas” (que antes eram apenas um outro nome dado pelos portugueses às mesmas guitarras, assim como antes também o faziam quanto às vihelas, também espanholas) seguiram e depois se consolidaram em 10×5, entre alguns poucos registros de modelos 12×5 e até 12×6, que também teriam começado a ser desenvolvidos durante a citada fase de transição.

Todas estas colocações se comprovam em instrumentos remanescentes, registros de época e contextos históricos sociais como os da disputa histórica entre Espanha e Portugal e as fases da Revolução Industrial (que trouxeram grandes mudanças sociais, exatamente durante o mesmo citado período de transição).

O nome “Viola” sempre foi “a chave”, a origem – por causa da preferência histórica portuguesa – e contextualiza até os dias atuais a classificação mais plausível deste conjunto de cordofones, em coerência com a história de um país cuja principal característica é a diversidade – diferente, portanto, da família das violas portuguesas, que apresentam desenvolvimento relativamente mais padronizado.

Descartando nomenclaturas genéricas e/ ou afetivas como “viola cabocla”, “viola divina” e outras – além de modelos que (ainda?) não se consolidaram totalmente pelo vasto território brasileiro, como as “Violas de Queluz” (mais radicadas em Minas Gerais), formariam hoje a FAMÍLIA DAS VIOLAS BRASILEIRAS – pela ordem cronológica dos resquícios históricos:

VIOLA DE COCHO (Incidência nos estados MT, MS, SP, DF, MG)

Armação de cordas: 5×5, de nylon (substituto das antigas tripas de animais).

Registro mais remoto: [entre 1851 e 1868] – livro de Joaquim Moutinho, Notícia sobre a Província de MT, 1869.

Violas de Cocho remetem diretamente, pela curiosa forma de construção da caixa de ressonância a partir de peça única, aos chamados “alaúdes curtos”, surgidos no século VIII na Península Ibérica. Um desenvolvimento importante foi apresentado por Julieta Andrade, Cocho Mato-grossense: um alaúde brasileiro, em 1981.

VIOLAS NORDESTINAS (sub família: repentistas, machetes, 10×5 e outros).

Armações: 7×5, aço (dinâmicas e comuns); 10×5, aço (principal dos demais modelos).

Registro mais remoto: ca.1580 – numa peça de teatro em Olinda – PE, citada em autos de Heitor Furtado de Mendonça e apresentada por José Antônio Gonsalves de Mello no livro Primeira visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595. Já o registro mais remoto do nome “Violas Nordestinas” foi observado no jornal Diário de Pernambuco, edição de 15/11/1945.

As escalas e narrativas típicas das chamadas “violas repentistas” (que na maioria das vezes portam o modelo chamado “dinâmico”, com cones metálicos nas caixas) remetem à cultura árabe (“moura”), muito difundida durante o Trovadorismo, que teve auge nos séculos XII-XIII; as ordens triplas de cordas remetem a violas portuguesas a partir do sec. XVIII – trios de cordas que teriam sido utilizados em instrumentos dedilhados italianos desde o século XVII, chamados por lá também de “viola” entre os séculos XV (Tinctoris, ca.1486) e XVI (Milano, 1536) mas que, ao contrário do que aconteceu em Portugal, depois migrariam de nome para chitarras (que seria o equivalente de guitarras, em italiano).

VIOLA DE BURITI (TO)

Armação: 4×4, nylon.

Registro mais remoto: 1949 – instrumento rústico remanescente, pesquisado por Marcus Bonilla, tese Minha Viola é de Buriti, de 2019.

As Violas de Buriti remetem às vihuelas espanholas, que teriam sido instrumentos tanto de arco quando dedilhados pelo menos desde o sec. XIV (antes das italianas e das portuguesas, portanto). O curioso fato de não ter cintura, mas ter se consolidado popularmente como “viola”, confirma que a nomenclatura é fundamental na classificação destes cordofones, suplantando inclusive princípios organológicos (que teria sido, de certa forma, o mesmo que aconteceu em Portugal, porém com o nome “viola” prevalecendo por questões nacionalistas). Esta visão, entrentanto, não foi ainda levantada por nenhum outro estudo, sendo desenvolvimento inédito nosso.

VIOLA MACHETE (BA)

Armação: 10×5, aço – que substituiu antigas armações em 4 ordens.

Registro mais remoto: 1744, segundo registros alfandegários pesquisados por Mayra Cristina Pereira, A Circulação De Instrumentos Musicais No Rio De Janeiro, 2013.

Violas “Machêtes” (destaque na pronúncia), também chamadas “machinhos”, eram típicas dos batuques, tendo sido as mais citadas por todo o Brasil até início do século XIX. Sem citação ao nome “batuque”, mas com descrições similares (inclusive de umbigadas) já teriam sido referidas desde a época de Gregório de Mattos (sec. XVII), via nomes como guitarrilha e bandurra. Remetem às pequenas guitarras espanholas de 4 ordens, que cairiam em desuso no século XVII) – com o curioso fato que, a partir da consolidação do cavaquinho (no início do sec. XIX), passaram para a armação 10×5 conservando o nome “viola”, diferente de Portugal onde se consolidaram machetes, cavaquinhos, rajões e outros cordofones similares, de 4 ordens.

VIOLA DE CABAÇA (SP, RJ, MG)

Armação:10×5, aço.

Registro mais remoto: ca.1981.

Por alegações infundadas de terem sido como banzas as violas de Gregório de Mattos (séc. XVII), o boato de uso de cabaça como caixa de ressonância rompeu séculos mesmo com pouquíssimas citações em instrumentos até o século XX, quando passou a ser construída pelo luthier paulista Levi Ramiro e hoje se encontra consolidada pelo Brasil. Este é mais um exemplo da força da nomenclatura para a história da Família das Violas Brasileiras.

VIOLAS BRANCAS – [“Caiçara” (SP) e “Viola de Fandango” (PR)]

Armação: (7ou6)x5, aço.

Registro mais remoto: o termo “Viola Caiçara” foi observado no jornal A Tribuna (SP), edição de 01/11/1980, em referência de uso a partir de cerca de 1974. Entretanto, já teriam sido apontadas como “violas do litoral” por Mainard Araújo, na década de 1950, sem contar citações de “violas utilizadas em fandangos” no Rio Grande do Sul, até cerca de 1840.

As Violas Brancas (cujo nome seria referência à madeira chamada “caixeta”) remetem às violas beiroas portuguesas (sec. XIX), sobretudo pelo cravelhal extra, chamado “benjamim” – mas apresentam vários resquícios históricos coincidentes com outros modelos: a armação mista de ordens simples com duplas (ou triplas) coincide com violas repentistas; a fabricação de caixas em peças únicas, remanescente em algumas regiões, coincide com as Violas de Cocho, além da nomenclatura “machete” para suas versões menores, de quatro ordens.

VIOLA 12 CORDAS (incidências nos Estados SP, RJ, MG, NE).

Armação de cordas:12×6, aço.

Registro mais remoto: ca.1929 – instrumento remanescente.

As Violas de 12 Cordas remetem às chamadas “guitarras clássico-românticas”, de registro na Espanha no citado período de transição (entre fins do sec. XVIII e início do século XIX) – mas, naturalmente, também remetem mais remotamente às vihuelas espanholas que dominaram do sec. XV ao XVII, por usarem a mesma armação de cordas daquelas. Um aspecto que teria passado despercebido a muitos, menos ao atento violeiro e pesquisador paulista Júnior da Violla, é que “doze cordas” também teriam tido as já citadas violas portuguesas 12×5, com registros desde o século XVIII – portanto, registros escritos que não tivessem detalhamentos não deixariam clara a existência de Violas 12×6. Outro fator a prejudicar o entendimento deste modelo são violões também com armação 12×6, cuja principal diferença esta apenas nas dimensões (além, naturalmente, da não consolidação do nome como “viola”, que vemos em todos os modelos consolidados que é fundamental).

Apesar de todas as distrações de fontes de pesquisa, fotos como as do citado instrumento (da dupla Mandy & Sorocabinha, uma dupla caipira, portanto equivocadamente presumida por muitos que usariam “violas caipiras 10×5”) e a presença em catálogos Gianinni na década de 1950 (sob o nome de “viola portuguesa”) não deixam dúvida da atestação do modelo, hoje consolidado no Brasil – mas infelizmente ainda negado até por estudiosos. Este tipo de negação, entretanto, vem da preferência (comercial, afetiva, etc.) pelo modelo Viola Caipira e se aplica a todos os demais modelos da Família, que nunca antes teria sido apresentada com contextualização e embasamento científico.  

VIOLA CAIPIRA (praticamente em todo o Brasil)

Armação de cordas:10×5, aço.

Registro mais remoto: a nomenclatura surge algumas vezes a partir de 1901, quando o modelo também começou a se desenvolver, mas só se consolida a partir da década de 1970.

Remete às guitarras espanholas que dominaram a Europa entre os séculos XVII e XVIII, tendo se consolidado como “violas de fato” a partir da migração das guitarras para o novo modelo, 6×6 (o violão moderno), acontecido nas primeiras décadas do sec. XIX. No Brasil, a consolidação do violão como principal cordofone é observada a partir da década de 1840 – exatamente quando surgem registros da variedade de modelos diferentes chamados de viola.

No livro “A Chave do Baú”, toda a História dos cordofones europeus é descrita, até culminar nas violas brasileiras, com fartas listas das referências pesquisadas em diversos idiomas e até quadros organológicos / etnográficos de cada modelo, com ilustrações.

Vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

Principais Referências:

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BONILLA, Marcus Facchin. Minha Viola é de Buriti: uma etnomusicologia aplicada-participativa-engajada sobre a musicalidade do quilombo Mumbuca, no Jalapão (TO). 2019. Tese (Doutorado em Artes) – Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.

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CORRÊA, Roberto. Cinco ordens de cordas dedilhadas: a presença da viola do Brasil. In: SESC – Serviço Social do Comércio. Violas Brasileiras: Circuito 2015 – 2016. Rio de Janeiro: SESC DN, 2015.

CORRÊA, Roberto. Viola Caipira: das práticas populares à escritura da arte. 2014. Tese (Doutorado em Musicologia) – Escola de Comunicação e Artes da USP, 2014.

CORRÊA, Roberto. As Violas do Brasil. In: Partituras Brasileiras on line – brazilian songbook international on line. Brasília (DF), FUNARTE MINC, 2017.

FERRERO, Cíntia Bisconsin. Na Trilha da Viola Branca: aspectos sócio-culturais e técnico-musicais do seu uso no fandango de Iguape e Cananéia SP. 2007. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, 2007.

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