VIOLAS HOJE: 21º FESTIVAL DO PINHÃO DE CUNHA (SP).

VIOLAS HOJE: 21º Festival do Pinhão de Cunha (SP).

É fato: à medida que nos envolvemos com um assunto, mais perigoso se torna nos corrompermos pelo foco (e pela paixão), perdendo noção de fatos circundantes (ou seja, “que acontecem em volta” daquilo). Sabedores deste perigo, o procedimento científico que aplicamos é pesquisar com honestidade FATOS comprováveis por registros que possam checados depois, pelos tempos a vir.  

Dito isso, mal acabamos de chegar da nossa participação no 21º Festival do Pinhão – “Viola e Prosa na Praça” -, da cidade de Cunha (SP), e já sentimos o chamamento de registrar alguns fatos que a nós apontam que “as violas estão a mudar” (como diriam os patrícios, ora pois). Não os instrumentos, em si, mas os entendimentos gerais sobre nossas violas apontam estarem a evoluir aos poucos – só é preciso observar com atenção e muita honestidade. Mais ou menos como intui a sabedoria popular, “um sapo mergulhado em uma panela com água que vai sendo aquecida aos poucos não percebe o perigo até que esteja quente demais para que pule fora dela”. Antes tarde do que nunca, é muito bom estar vivo para poder, além de pesquisar e delatar sobre a História já passada, também atestar verdadeiros inícios / indícios de mudanças contemporâneas das violas: mais ou menos como um velho sapo que nunca quis entrar em nenhuma panela, mas que consegue perceber de fora, pelas evidências, que a água esteja ficando mais quente…

Para a cidade de Cunha, no interior do Estado de São Paulo (próxima a Aparecida e a Parati, esta última no litoral do Estado do Rio de Janeiro), não bastou já ter promovido nada menos que sete festivais de competição, anuais, exclusivos de músicas acompanhadas por violas dedilhadas: tivemos a satisfação e a alegria de testemunhar um evento que talvez possa ser o maior do Brasil até agora, em termos de número de apresentações onde violas foram obrigatórias em cena (vinte e cinco shows completos, por quatro semanas consecutivas). Se não o maior, pelo menos pela concepção artística e critérios de escolha das atrações, acreditamos poder ser um verdadeiro marco na História da Família das Violas Brasileiras! O crédito não podemos deixar de car ao coordenador musical Lenir Boldrin, ao Secretário de Turismo e Cultura Marivaldo Rodrigues e ao Prefeito José Éder Galdino da Costa, e suas competentes, agradáveis e simpáticas equipes.

É preciso lembrar que acontecem, já há décadas, excelentes e expressivos encontros (ou “festivais de amostragem”), além de eventos específicos só para apresentação de composições inéditas (“festivais de concorrência”), em várias cidades do Brasil (inclusive os citados, da própria Cunha). Estes, entretanto, normalmente acontecem dentro do ultrapassado entendimento coletivo de que apenas músicas e executantes comprometidos com o caipirismo devem se apresentar. Também há alguns outros eventos, bem menores em número de edições e atrações, que introduzem “outras vertentes” e/ou músicas instrumentais em algumas categorias. E ainda há violeiros que concorrem por iniciativa própria em festivais de “MPB” (os festivais mais comuns no Brasil), além de participações em festivais de música erudita, instrumental, rock, jazz, blues e outros estilos. Não, não estamos a desprezar essas ocorrências todas – mas, embora sejam também motivo de orgulho para a História das violas (por ajudar o público em geral a repensar sobre violas ligadas apenas ao caipirismo), elas infelizmente aparecerem apenas como pontuais em nosso atento monitoramento e pesquisa sobre as últimas décadas das violas no Brasil.

O que acontece no 21º Festival do Pinhão de Cunha, pela primeira vez – e no evento anual mais característico da cidade, pelo seu destaque na produção de pinhão – é bastante diferente. Não apenas pela já citada presença predominante de violas dedilhadas em todos os shows: para esta edição não foram selecionadas atrações cujo repertório fosse o considerado “mais popular” ou “que o público gosta mais”: um conceito aplicado largamente pelo Brasil afora, e que nos lembra também a história do sapo na panela com água quente… Neste caso, a “água” seria claramente aquecida por fortes iniciativas comerciais, de quem está disposto a comprar tudo que puder para lucrar (da mídia em geral a contratantes corruptos). Esta prática, que músicos e produtores sabem acontecer de longa data, mas preferem se calar para não correr o risco de perder também suas migalhas do bolo (ou “gotinhas de água quente”, talvez?), recentemente tem sido denunciada, por exemplo, via divulgação de cachês às vezes maiores que verbas anuais para cultura de municípios contratantes. Não: de forma alguma é pesquisado e comprovado que “o povo só gosta” do comercial: a ideia parece ser (usando mais uma vez a metáfora) de “aquecer a água aos poucos” (por décadas, no caso), e assim o “sapo” (o povo) vai se sentindo confortável até não conseguir mais se mexer para fugir da “morte” (no caso, a “morte cultural”, da capacidade de avaliar, refletir e escolher o que gosta ou não).  

 Felizmente, há prefeituras e prefeituras: para o Festival do Pinhão não foram selecionadas atrações que praticassem, exclusiva e contundentemente, músicas ligadas ao caipirismo – assim como da chamada “música sertaneja universitária”. Estes dois estilos comerciais representam o forjado estereótipo habitual de repertório relacionado às violas. Muito mais visionário, democrático e didático, no “Viola e Prosa na Praça”, os artistas não foram cerceados de seu direito de escolher seus próprios repertórios: como dissemos, tivemos a honra de ser um destes convidados e atestamos isso também. Tocamos o que quisemos e que achamos adequado de ser mostrado segundo a temática do evento, que percebemos ao pesquisar (ler) sobre as atrações convidadas (aliás, como todo verdadeiro artista deveria sempre fazer, independente do quanto vai ganhar). Sim: entendemos ser responsabilidade também dos artistas a defesa da verdadeira cultura brasileira, assim como da ética, da elegância e da honestidade junto ao público.

Eventual e pontualmente, músicas ligadas ao caipirismo, ao universo sertanejo universitário, a ritmos das diversas regiões brasileiras, bregas, reggaes, rocks e qualquer outro estilo podiam (e foram) executadas. Puderam ser tocadas, sem censura, desde que, naturalmente, a viola aparecesse em destaque na performance musical e que não ficasse predominante nenhum estilo comercial, em nenhum show. A temática, inédita e corajosa, foi bem clara – só quem não gosta de ler nada pode não ter percebido.

Brilhante!

Houve, naturalmente (e entendemos que seja “a princípio”), uma preferência geral um pouco maior por músicas de um estilo, ainda não designado popularmente assim mas que nós chamamos de “MPB Regional”: repertórios de Rolando Boldrin, Pena Branca & Xavantinho, Renato Teixeira, Almir Sater e semelhantes – em diversos tipos de reinterpretações, a gosto e escolha de cada atração convidada. Entendemos que seja “a princípio” porque, nas próximas edições (e torcemos que a partir de agora sigam realizando-se no mínimo uma vez por ano), a tendência é dos próprios artistas se sentirem mais livres (“tomarem coragem”, talvez?) em utilizar a viola em qualquer estilo ou ritmo que acharem que ela caiba. Nós provamos, via demonstrações pelas redes sociais virtuais, também há décadas, que é possível utilizar violas dedilhadas em praticamente qualquer estilo ou ritmo existente no mundo – além de tentarmos abrir espaços para alguns outros artistas da viola que também o fazem, pontualmente (inclusive com execuções melhores que as nossas amostras didáticas).

O Festival do Pinhão acabou por se caracterizar pelo que há de mais autêntico na cultura nacional, que é a DIVERSIDADE – característica mais marcante do povo brasileiro, desde sua geração combinada a partir de brancos, pretos e indígenas: a verdadeira cultura nacional, em todos os tempos. Entendemos que não cabe mais – e já está passando da hora da população como um todo perceber – que fazer de conta que temos só um modelo de viola e que este deveria se dedicar só a um determinado estilo é apresentar, cinicamente, declaração pública de falta de conhecimento histórico, além de promover a subutilização de um dos nossos maiores tesouros… Tesouro que, também podemos testemunhar, a maior parte do resto do mundo estaria interessada em conhecer e até consumir – já que é uma “novidade” fora do Brasil e de Portugal. Entretanto, parece que os estrangeiros jamais “engoliram essa” de que num país tão extenso e com tanta diversidade cultural, um instrumento musical de total capacidade não seria aplicável a diversos ritmos e estilos, como normalmente o músico brasileiro faz (e bem) com tudo. Prova disso? São vários os violeiros brasileiros, de boa qualidade de performances em variados estilos, inclusive versões com muito eruditismo, que são convidados a se apresentarem no exterior, há décadas…

O que nos traz uma dúvida atrevida (perdão por isso, mas águas estão a nos esquentar e não somos sapo inerte): será que estes mesmos violeiros, de boas experiências fora do Brasil, seguiriam incentivando o uso das violas só no caipirismo (pelos demais violeiros) para garantirem reserva de mercado lá fora? Ah, isso não temos como saber e, naturalmente, não podemos ser levianos em acusar pessoas respeitadíssimas, formadoras de opinião no meio, de indiscutível valor e importância por seus grandes talentos e atuações… Só podemos levantar a questão, afinal, estes não defendem publicamente a diversidade que os ajudou a levar mundo afora suas violas – ao contrário, fazem questão de defender “com unhas e dentes” o conveniente e lucrativo caipirismo, aproveitando muito bem do fato de serem formadores de opinião (sempre lembrando, querer ganhar dinheiro não é ilegal, então deve estar tudo certo…).

E podemos garantir que, de nossa parte, isso não ocorre: nossa defesa pela diversidade nas violas é notória e comprovada por centenas de registros públicos, chatíssimos, desprezados e considerados arrogantes há décadas, pela maioria. Levantar dúvidas e reflexões não ofende… ou, pelo menos, não deveria ofender. Sabemos que vários, como nós, já provaram do interesse dos estrangeiros pelas nossas violas: não sabemos é porque os agraciados famosos não orientam abertamente as centenas de violeiros que os seguem a também tentar fazer o mesmo. Seriam também como sapos na panela, porém cuja própria água foram aquecendo via omissão de fatos históricos e outras adaptações para faturarem com o caipirismo utópico e ao mesmo tempo também faturar com a diversidade nas violas? Ou os sapos seriam, em outra visão, a maioria da classe violeira, que vai repetindo as falas de seus ídolos, sem questionar, sem nunca perceber que a água está a esquentar aos poucos? Não sabemos… E, para ser bem honestos, a “parábola do sapo na água quente” já cansou… 

A diversidade cultural é comprovadamente das nossas maiores qualidades, das nossas mais valiosas e belas características. Ela se expressa na diversidade de modelos da Família das Violas Brasileiras (que detalhamos no nosso livro “A Chave do Baú”) e não faz nenhum sentido que nossa diversidade de ritmos e estilos não seja também refletida nas nossas violas dedilhadas. Nada mais normal do que demonstrarmos nossa criatividade brasileira, tão elogiada pelo mundo afora, em instrumentos que temos “de diferente” para apresentar. O anormal, nos parece, é acreditarmos que só o modelo Viola Caipira sempre teria existido (por causa de uma estratégia comercial de um gênio)… Ou pior, que o atual modelo Viola Caipira pudesse ter sido o ancestral e gerador dos demais modelos (defendido por considerados “grandes pesquisadores” das violas). Estes argumentos, “desconfiamos mas infelizmente não podemos provar”, só nos parecem fazer sentido se for por interesses financeiros / comerciais de alguns.

De fato, como já demonstramos cientificamente, o modelo Viola Caipira é o mais recente entre todos, tendo este nome “pegado” no gosto popular só a partir de meados da década de 1970, apesar de ter sido começado a ser desenhado e ter a alcunha citada, muito pontualmente, a partir de 1900. Bastante curioso, e que também teria passado “despercebido” (?) pelos pesquisadores famosos, é que a marca “viola caipira” também teria se consolidado só a partir de ações de mercado de grandes gravadoras…

Já passou da hora do entendimento retrógrado (e/ou interesseiro, talvez?) ficar apenas no passado, como uma mancha histórica que nunca deve ser repetida – e temos evidenciado fatos que mostram que a coisa vem mudando, aos poucos. A verdadeira cultura parece estar a virar o jogo, aos poucos, como é historicamente normal que aconteça (e não por iniciativas convenientes criadas para gerar lucros, que rapidamente “pegam” como se fossem verdade). Devagar, mas com a força que a verdade histórica comprovável sempre costuma ter.

O tamanho e o arrojo de critério do 21º Festival do Pinhão de Cunha (SP) se demonstra valioso sobretudo pelo sucesso, até com relativa “surpresa”, da população da cidade ante à qualidade geral do evento, em vários sentidos. Afinal, como poderiam saber que gostam, se nunca tivessem experimentado? Tivemos a curiosidade de assuntar com pessoas comuns, donos de comércios, artistas e outros, durante nossa estada – e a satisfação nos pareceu genuína e majoritária. O interesse de público de outras cidades (atrativo turístico), segundo alguns comerciantes e donos de pousadas, se equiparou (ou talvez até terá superado) o de outras datas festivas, como a Semana Santa e outros grandes eventos anuais da cidade. O custo-benefício financeiro, para a prefeitura, é infinitamente menor do que contratar atrações comercialmente badaladas, suspeitadamente muito caras – mas o custo-benefício cultural, histórico e didático em mostrar as violas aos brasileiros, em sua diversidade, é imensurável de tão grande, visto que tende a levar reflexão às pessoas. Esperamos que vários outros possam se dar conta disso: é comprovadamente possível fazer festas de sucesso com conteúdo realmente cultural, renegando estereótipos financiados por ganâncias.

Entendemos que a tendência é que cada vez mais se torne hábito a realização de projetos com mais presença de violas, de todos os modelos e tocando os mais variados ritmos / estilos. E entendemos também que, no futuro, pesquisadores hão de se lembrar de Lenir Boldrin: este que tem “pedigree” e tem viola no sangue, afinal é filho do saudoso “Formiga” e sobrinho do também saudoso “Boy”, o Rolando (“Boy & Formiga”, era a dupla, da década de 1940). Lenir assinou simplesmente como coordenador musical do programa “Sr. Brasil” (entre outros nomes que o programa teve) durante décadas – e qualquer semelhança com os critérios para convidados dos famosos programas, sucessos de audiência até na grande mídia, será mera coincidência? Não podemos afirmar… Só sabemos que uma piada particular, em que costumávamos brincar de chamar Rolando Boldrin de “o maior violeiro de todos os tempos, em todos os sentidos”, cada vez parece se tornar próxima da realidade… A vida imita a arte que imita a vida? Sabe-se lá… mas para quem não tiver reparado, é sempre bom lembrar que Boldrin virou as costas para a armadilha do interesse puramente comercial e levou seu programa de fundo cultural e educativo, extremamente diverso em tipos de atrações, para canais onde pudesse fazê-lo de acordo com suas convicções. Perdeu dinheiro? Talvez… mas nunca teria feito falta e ele se foi afirmando estar muito feliz com a escolha. Melhor que tudo isso, só se o sobrinho Lenir também tocasse viola! Aí já seria pedir demais, mas se quiser e conseguir arranjar tempo, aulas de graça nós garantimos – desde que também consiga tempo para continuar a fazer História!

E entendemos também, por análises científicas sobre a História das Violas e dos cordofones ocidentais, que pesquisadores do futuro hão de relatar que, muito provavelmente, terá sido na charmosa e agradável cidade paulista de Cunha um dos primeiros eventos (e dos grandes!) a começar a tratar as nossas violas como elas sempre deveriam ser tratadas: brasileiríssimas, posto que diversas, competentes, históricas –  verdadeiros tesouros a serem melhor revelados ao Brasil e ao mundo.

Temos dito – agora, talvez parecendo um pouco menos malucos que há alguns anos atrás… Até porque outros eventos e acontecimentos similares têm surgido pelo Brasil – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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JOÃO ARAUJO

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