27 Jul, 2023

VIOLAS DA REGIÃO AMAZÔNICA

Violas da Região Amazônica

“[…] deste modo fomos belamente até a residência do Caeté, onde o padre Gonçalo de Veras, que também era vigário da vara para os brancos, nos agasalhou com toda a satisfação, não faltando as danças dos moradores que, à boca da noite, vieram com suas violas fazer festa a seu vigário-geral e juntamente a mim que ia em sua companhia”.

[João Felipe Bettendorf, entre 1690 e 1695 – Crônica da Missão do Maranhão

Viola, Saúde e Paz!

Chega de Barcarena, no Pará (a pouco mais de cem quilômetros de Belém), a notícia: ainda hoje, em julho de 2023, não se fala em “violas” por lá – e já há algumas décadas… É nosso amigo e vizinho Maurílio Theodoro – revisor ortográfico do livro A Chave do Baú – quem traz a espécie de “registro etnológico amador”, por assim dizer. Tínhamos pedido a ele que assuntasse o assunto, em suas férias, e ele teria inclusive localizado certo luthier experiente, por nome de Batista, reformador e construtor de instrumentos modernos, que é quem aponta a triste constatação.

De qualquer forma, resolvemos trazer para este Brevis Articulus pelo menos o que já tínhamos pesquisado: evidências de que, como no restante do Brasil, teria havido instrumentos chamados de “viola” na região Norte, tempos atrás, por um período continuado de cerca de pelo menos quatro séculos. A intenção é de alerta. Não tenhamos dados suficientes para atestar porque elas não teriam resistido, mas como bons admiradores de Guimarães Rosa, “sabemos quase nada, mas desconfiamos de muita coisa”…

Já transcritos antes em nossa monografia, vale lembrar os registros que pudemos levantar até agora, pois são levantamentos raros, verdadeiros “tesouros”:    

O mais remoto registro aponta fins do século XVII (entre 1690 e 1695), segundo duas citações na Cronica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Maranhão, do jesuíta nascido em Luxemburgo João Felipe Bettendorf (1625-1698): numa citação, destacada na abertura, moradores da aldeia de Caeté (PA) teriam dançado ao som de “violas” – e noutra o próprio Bettendorf teria cantado com acompanhamento de rabecas e “violas”.

No século seguinte (entre 1783 e 1792) o naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) apontou “violas que tocam os pretos”, vistas e desenhadas em suas viagens descritas em três volumes do livro Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá 1783-1792. Aquelas “violas”, entretanto, teriam sido cordofones bem diferentes, com corpo retangular e sete cordas cada uma com sua própria haste. Aproveita-se mais deste registro que chamava-se “viola” qualquer cordofone, costume também observado em registros portugueses.

Mais um século passado e, em 1828, em Santarém (PA), referindo-se a indígenas chamados Tapuios, o fotógrafo francês Hercule Florence (1804-1879) afirmaria que eles desejariam pouca coisa da vida, entre elas, “uma viola”. O registro vem do livro   Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825-1829) e é um raro caso onde não teriamos conseguido a versão original para checar – neste caso, temos que confiar na tradução do Visconde de Taunay.

Em 1849 o explorador inglês Henry Walter Bates (1825-1892), em viagem pelo Estado do Pará, passando de barco pela região de Cametá, revelou um tocador e cantador de nome João Mendez. No livro The Naturalist on the River Amazonas ainda se observa a curiosa denominação wire guitar or viola (“guitarra de arame ou viola”) que reduz muito qualquer possibilidade de já ter sido um violão.

Em 02/09/1868 saiu o artigo “O Correio Mercantil e o sr. Amaro Bezerra”, no Jornal do Commercio (RJ), replicado sete anos depois no jornal A Provincia de São Paulo. Nele, o apontamento de “violas e guitarras” que teriam sido tocadas na região amazônica, segundo o Dr. José Maria de Albuquerque e Mello (?-?) – “juiz de direito, ex-chefe de policia do Amazonas, ex-deputado geral, etc.”.

Já em 1876, no livro Os Selvagens, que teria sido baseado em viagens feitas pela região amazônica, o folclorista mineiro José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) apontou “violas” como companheiras fiéis dos tapuios em viagens de canoa no Pará. Couto Magalhães indicou serem chamadas guararápeva aquelas “violas”, que armariam com três cordas de tripa. O pesquisador paulista José Ramos Tinhorão (1928-2021), no livro História Social da Música Popular Brasileira, criticou severamente este uso de violas por indígenas. Nós realmente observamos apenas mais um apontamento, feito pelo botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que cerca de 1818 teria visto numa aldeia – onde hoje seria Nova Almeida (ES) – indígenas que fabricariam guitares muito bem feitas, segundo ele com madeira de pés de genipapo e também de outra madeira branca, chamada tajibibuia. O livro é Voyage dans le district des diamans et sur le littoral du Brésil (“Viagem ao território dos diamantes e ao litoral do Brasil”). Também observamos que termo semelhante ao apontado por Couto de Magalhães teria sido apontado antes, em 1867, no livro Glossaria linguarum Brasiliensium, do botânico alemão Carl Martius (1794-1868): “[…] guara-peba: vióla i. e. [id est, ‘isto é’] arco (Uira-para) chato, Guitarre”.

Em 1883, observamos entre “violeiros” (fabricantes e/ou revendedores?) de várias regiões do país citados no Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Imperio do Brazil, do tipógrafo alemão Eduard von Laemmert (1806-1880), constariam os nomes de Francisco Alves dos Santos e Raymundo Ernesto Pereira de Souza, ambos de Belém (PA).

Entre 1973 e 1978, em pesquisas de campo sobre Violas de Cocho publicadas no livro Cocho Mato-Grossense, um alaúde brasileiro, a Dra. Julieta de Andrade registrou, entre outros exemplos de modelos de violas com número diferente de cordas: “a viola do Carimbó de Vigia, Pará, apresenta cinco cordas simples”. Infelizmente a pesquisadora não informou a fonte destas informações e também não foi observado na sua lista de referências nenhuma que indicasse o rastreamento e conferência.

Finalmente, entre 2011 e 2013, a equipe que cuidava da identificação do Carimbó como bem cultural candidato ao Registro nos Livro de Patrimônio Imaterial, em dossiê IPHAN a respeito, teria feito a triste constatação de que violas (e rabecas e pandeiros) “[…] já não mais seriam observados nas formações” ([IPHAN], 2013, p. 39).

Mesmo com a fama que o modelo Viola Caipira desenvolveu aproximadamente nos últimos 50 anos, em nossos monitoramentos percebemos pouquíssimos registros de violas e/ou violeiros na Região Norte. Uns três, se tanto, é o que podemos dizer – mesmo assim, que não estariam muito presentes nas redes sociais virtuais.

O ponto é que algum modelo de viola teria existido por lá por séculos, e teria desaparecido – ao contrário do resto do país.

Não temos como atestar ainda as possíveis motivações do fenômeno, pelos registros levantados – que são verdadeiras raridades em pesquisas sobre as violas brasileiras. Naturalmente, há a distância física e contextos histórico-sociais que apontam alguns outros aspectos culturais específicos da Região Norte do país – mas não podemos deixar de observar que as pesquisas sobre violas dedilhadas têm, na histórica maioria das vezes, o foco no modelo Viola Caipira.

Violas teriam existido pelo Norte – mesmo que, a princípio, apenas “instrumentos chamados de viola”; mas é também o que teria acontecido em Portugal e no restante do país, nos primeiros séculos: a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas (origem que só nós temos divulgado, por termos pesquisado com muito afinco), teria sido exatamente a partir e um nome forte – “viola” – mas “genérico”, que depois teria sido adotado para instrumentos de verdade, distinguíveis, únicos (hoje consolidados). É o que postulamos e contextualizamos cientificamente por nossos estudos ainda pouco conhecidos e quase nada apoiados.

A motivação comercial e a preferência às vezes até afetiva em torno do modelo Viola Caipira não são ilegais – longe disso, como sempre destacamos: mas a falta de conhecimento, citações e apoios aos demais modelos claramente prejudicam a sobrevivência deles e do que representam). Este sempre foi, inclusive, o principal argumento para nossa defesa solitária do Reconhecimento oficial das violas como Patrimônio Imaterial do Brasil, desde 2015.  Nossa ação, ao descobrir e divulgar a contextualização científica de toda uma Família das Violas Brasileiras é no sentido de alertar que alguns modelos (verdadeiros tesouros culturais brasileiros) correm o risco de simplesmente desaparecer com os anos, como parece ter acontecido com as violas da região Norte. 

Muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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20 Jul, 2023

MACHETE: ORIGEM DO NOME DA VIOLA DOS PRETOS

MACHETE: origem do nome da viola dos pretos

Seguindo nos aprofundamentos das pesquisas apresentadas no livro A Chave do Baú, neste Brevis Articulus apresentamos recentes descobertas, que temos várias razões para acreditar que seriam inéditas, sobre as “machetes” (pronuncia-se “machêtes”, como se tivesse acento): cordofones pequenos, cinturados, de fundo plano, origens do atual modelo Viola Machete: as violas que teriam os registros mais antigos, numerosos e mais desprezados da Família das Violas Brasileiras. Sempre lembrando, porque já começam a utilizar sem citar nosso nome, uma “Família” que é contextualização científica pioneira e atrevida nossa, nessa ainda terra ainda tão tupiniquim onde até bem pouco tempo praticamente só se conhecia o modelo Viola Caipira.

Nossa primeira motivação foram algumas “achâncias” no sentido que “machete” teria algo a ver com “maRchetaria”… Para ser honesto, à primeira instância, uma quase “desmotivação”: pessoas que não percebem um “R” a menos numa palavra se aventurarem a tentar apontar origens, como dito, na base da “achância”. Melhor seria, que ficassem caladas do que dar atestado de que não estão nem um pouco acostumadas a pesquisar… Neste ponto, compartilhamos uma mesma dor com linguistas, pelos “achistas criativos”, um verdadeiro cancer.

Duas outras constatações felizmente nos levaram a querer transformar este verdadeiro e muito azedo “limão” numa doce “limonada”: primeiro, que “machete” e “marchetaria”, juntos, nos lembraram o grande luthier baiano Rodrigo Veras, mestrando, um dos mais importantes nomes das Violas Machetes atuais e que sempre nos socorre com fontes e informações – a ele, inclusive, dedicamos este Brevis Articulus e as novas descobertas.

Em segundo lugar, porque entendemos que ainda não teria sido apontado, de forma séria e embasada, as mais prováveis origens do termo “machete” enquanto nome de instrumento musical. Não é difícil de entender: estudiosos de Portugal – onde “machete” e “machinho” já seriam utilizados pelo menos desde 1712 (ver BLUTEAU, nas referências ao final)-, raramente citam as nossas machetes brasileiras (ver Vieira, 1899; Veiga de Oliveira, 1964; Morais, 2011) – com menção honrosa a umas poucas, citadas num contexto de estudos sobre o cavaquinho (Nuno Cristo, 2019 – vai que ele um dia resolve ler aqui, né?).

Já os poucos estudos sobre nossas machetes, curiosamente teriam focado nas atuais Violas Machetes baianas, a partir do início do século XX (ver Wadley, 1980; IPHAN, 2006; Souza Lima, 2008; Pinto & Graef, 2012). Estes últimos, até citam vez ou outra as machetes portuguesas e alguns outros registros que não seriam exclusivamente na Bahia (Camara Cascudo e Maynard Araújo, [1954]) – mas observa-se nas referências apontadas em todos estes estudos que não teriam sequer lido um significativo número de citações por várias partes do Brasil, principalmente no século XIX. Veja, por exemplo, citações que envolveriam pequenos cordofones em batuques, que levantamos em nossa monografia: Lindley (1806, p. 191); Freyreiss ([1815], p. 542); Koster (1816, p. 241); Tollenare ([1817], p.137); Pohl ([1819], p. 608); Spix & Martius (1823, p.294); Neuwied (1825, p.33: p.91); Walsh (1830, v2, p.137); Debret (1839, v2, p. 128); Rugendas (1835, p.25); Mattos, 1836, p. 37; Gardner (1846, p.49); Saint-Hilaire (1848, v2, p. 60); ([Gonzaga], 1863, p. 185); Wells (1874, p.198).

Sim: nós não brincamos quando o assunto é levantar referências… Observe que foram pessoas de línguas, culturas e formações científicas diferentes que, por várias regiões do país, durante várias décadas, teriam feito descrições muito semelhantes. Talvez por não tiverem sido feitas boas traduções antes, estas informações tenham se perdido no tempo – ou, talvez, pela maior manifestação musical dos primeiros séculos no país (como já foi dito por outros) ter vindo dos pretos – será que ainda existe preconceito? Também faz diferença se for considerado apenas um ou outro registro, separadamente (que é muito observado que teria sido feito).  

Nós retraduzimos tudo que conseguimos a partir dos originais (em inglês, alemão, francês) e contextualizamos com olhar musicológico e outras coerências. Os instrumentos são citados, a maioria das vezes, com variações próximas a “guitarra” (dependendo da língua), mas há quem tenha descrito como “bandolim” ou “banjo”, por exemplo, que seriam instrumentos de tamanho menor conhecidos pelos estrangeiros, mas sem registro de terem existido por aqui, à época. Alguns chegaram mesmo a grafar “viola” (que era como os portugueses chamavam), assim como “machete” ou “machette”. A melhor que achamos foi guitarre de poche (“guitarra de bolso”, em francês). Antes, estes instrumentos teriam sido traduzidos como “cavaquinho” ou “violão” – instrumentos que nem existiriam antes de 1820… Sobre isso, assim como “maRchetaria”, nem vamos comentar.

O que interessa é que todas as descrições eram de atividades des pretos em grupos onde se tocava, cantava e dançava – e onde termos próximos a “batuque” e “lundu” apareceram várias vezes, além de “fandango” (que era o que alguns entenderam que seria parecido, na Europa). Alguns estrangeiros interpretaram equivocadamente que seriam danças distintas, com base em algum pequeno número de amostras (e de conhecimento) que tiveram. Mais importante, além de considerar o nível de conhecimento musical que cada narrador teria, é analisar um bom conjunto de registros, por vários contextos históricos.

As machetes (ou “machinhos”, ou “machetinhos”) não poderiam ter surgido (pelo menos) desde o século XVIII em Portugal para depois reaparecerem milagrosamente no século XX no Brasil. Não é assim que funciona com cordofones populares – pelo menos, não é o que temos visto desde os textos em latim mais antigos que conseguimos traduzir, de dois séculos antes de Cristo.

Na verdade, ao analisarmos pelo espectro mais amplo (de regiões e datas), percebemos que pequenos cordofones cinturados, de fundo plano e com poucas cordas, chamados guitarras, teriam surgido na península hispânica, pelo menos desde o século XVI (ver Bermudo e Amat) como concorrência a pequenos cordofones árabes (“pequenos alaúdes”), que eram periformes, com fundos abaulados; estes últimos eram chamados mandurras (que remete ao árabe pan-tur) e/ou bandurrias (uma espanholização). Árabes (ou “mouros”) foram invasores que desde o século VIII teriam levado seus cordofones para o território europeu – este é o contexto histórico-social que justifica porque, com o tempo, surgiram instrumentos similares, mas com caixas diferentes (cinturadas), que ganharam a preferência dos europeus.

Um contexto histórico-social também explica porque, em 1822 um italiano (e só ele), em Lisboa (e sem nunca ter vindo à Colônia), citou que um preto brasileiro (Joaquim Manoel) teria tocado (e até inventado!) um “cavaquinho” – este que teria sido uma petite viole française (“pequena viola francesa”). Outros, que efetivamente teriam visto Joaquim tocar (e muito bem) chamaram o instrumento de guitarre (em francês), bandurra ou viola.

Ora… “viola francesa” (ou “violão”) são nomes utilizados pelos portugueses que não tem qualquer fundamento quanto à procedência das guitarras: estas seriam espanholas, e na época já teriam feito grande sucesso com 5 ordens de cordas (as chamadas “guitarras barrocas”) e depois evoluído ao modelo com 6 cordas simples, de mais sucesso ainda (como é até hoje, pelo mundo).

Não é que os portugueses não soubessem disso: é que eles não queriam “dar palco” a nomes de culturas árabes, nem espanholas: “viola” (já utilizado na península itálica) foi o nome que escolheram, se agarrando só a ele para todos os cordofones portáteis com braço – a solução que satisfez o (em nossa opinião) até bonito nacionalismo (ou patriotismo) português.

Em outro caso similar, “cavaquinho” também teria agradado mais ao patriotismo pois, à época, “machete” remeteria também a um instrumento típico dos pretos (segundo diversos anúncios de jornal, de várias regiões do Brasil, no século XIX – disponíveis para consulta pela Biblioteca Nacional Digital). Não: portugueses não “dariam palco” a um nome então “mais brasileiro”, e pior ainda, instrumento de pretos… E assim surgiu o cavaquinho, puramente a partir de um nome: curiosamente com seis cordas, no início (como a “viola francesa”), depois passando também por cinco cordas (Regimento dos Ofícios de Guimarães, 1719) e que hoje se consolidou, tanto por lá quanto por cá, em 4 cordas. Os portugueses não abandonariam completamente o nome “machete”, que também sobrevive, junto com “braguinha”, “rajão” e outros – todos, instrumentos muito similares e é aí que ocorreu o equívoco de estudiosos, por pensarem que aqui no Brasil também seriam equivalentes “cavaquinho” e “machete”. Não seriam e não são.

É também pelo contexto histórico-social diferente que nossas machetes teriam se desenvolvido, muito provavelmente a partir da mesma época (início do XIX), com 10 cordas em 05 duplas – a armação mais famosa entre violas (mas originária das guitarras espanholas, chamadas “viola” pelos portugueses) e bem diferentes do cavaquinho e até das machetes mais antigas. Diferente também das guitarras, das bandurrias…  Nossas machetes são particulares – e talvez só os charangos, famosos por toda a América Latina, usem a mesma armação em instrumentos pequenos (não pesquisamos isso ainda).

Percebe a minúcia? Nós, bem diferentes dos portugueses, não temos o mesmo tipo de nacionalismo (se é que temos algum tipo). Tínhamos muitos pretos (muito mais do que brancos), chamando os instrumentos de “machete” (que eram também “viola”). Quando surgiram “cavaquinhos” portugueses, diferente deles os brasileiros não teriam tanta tendência a usar nomes genéricos – a solução popular surgida aqui então foi separar dois instrumentos diferentes de alguma forma, o que, no caso, foi pela armação de cordas. No fundo, no fundo, todos seriam “pequenas guitarras” (até o ukulelê hawaiano): cordofones cinturados pequenos, com pequenas diferenças de acordo com as culturas e seus respectivos contextos histórico-sociais.

A esta altura, dá pra entender porque se observam em escritos antigos nomes como “guitarrilha”, “bandurra”, “bandurrilha”… certo? Seriam instrumentos pequenos…  E tivessem sido tocados por um preto, brasileiro? Será que poderiam ser considerados “machetes” também? Isso nenhum estudioso até hoje teria apontado. Estes nomes seriam de instrumentos tocados por um “poeta”, segundo textos próprios e/ou alegados a Gregório de Mattos, o “Boca do Inferno” (que viveu aproximadamente entre 1636 e 1696). Ele é considerado “apenas poeta”, segundo a maioria dos atuais estudos sobre a História do Brasil… Não músico, sequer “violeiro”. Realmente, não se conhece registro literal do nome “machete” no tempo em que ele viveu. Outros pretos sensacionais e brilhantes teriam sido Euzébio de Mattos (irmão de Gregório), Padre José Maurício Nunes, Joaquim Manoel – todos, com registros de que teriam utilizado “violas” – teriam sido “machetes”?

A mais remota citação que conseguimos descobrir até agora de “machetes e machinhos” (que seriam “violas pequenas”) aponta para 1712, em Lisboa, por Bluteau (como já dissemos). Em terras brasileiras, “violas ou machinhos” teriam sido observados a partir de 1744 e “machete de tocar”, desde cerca de 1790, em documentos de alfândega (ver Pereira, 2013). Violas, entretanto, já teriam tamanhos variados desde 1572, pelo Regimento dos Violeiros de Portugal (Morais, 1985) – e “violas pequenas” já constariam desde o ano de 1700, segundo os mesmos documentos de alfândega do Rio de Janeiro.

De onde teria vindo este nome “machete”, que Veiga de Oliveira, em 1964, teria citado que “… parece ser uma palavra arcaica, caída em desuso, e subsistente nas Ilhas e no Brasil”? Resolvemos pesquisar…

Começando pelo uso geral: “machete” seria também o nome de um facão ou marreta (como aponta para um diminutivo, preferimos dizer que seria um “machado pequeno”). Teria vindo de “macho”, masculus em latim, segundo a maioria dos etimologistas, que só apontam significado como “instrumento musical” em Português. Nos textos em espanhol de nosso banco de dados, realmente não consta – mas faz sentido, pelo que já dissemos: eles abandonaram as pequenas guitarras (e as vihuelas, maiores) a partir do século XVII, em função do investimento nas “novas guitarras”, de tamanho intermediário e com 5 ordens.  

Acabamos por encontrar algo pouquíssimo estudado em edição do ano de 1788, do livro Allgemeine geschichte der Musik (“História Geral da Música”), do musicólogo alemão Johan Nicoulau Forkel (1749-1818). Forkel é considerado um dos fundadores da musicologia moderna e, por isso, já tínhamos pesquisado antes uma edição deste livro, do ano de 1801 – mas só na edição mais antiga constaria… MACHOL. Forkel teria pesquisado este nome em várias fontes (que não tivemos como checar, pois seriam manuscritos) e não teria chegado uma conclusão – apenas que, sem dúvida, teria sido um instrumento musical e que equivaleria a SCHALISCHIM (mas já foi algo importante e fundamentado). Entre as fontes dele, algumas teriam apontado que equivaleria também a MACHALAH, hebráico (bem mais parecido com MACHOL)… A ligação com língua árabe fez acender, para nós, uma luz – já consegue perceber? Não? Então sigamos…

Fuça daqui, fuça de lá, encontramos alguns poucos entendimentos – e diferentes: Curt Sachs, em 1913, teria entendido que MACHOL […] wird heute nicht mehr als Name eines Instruments (“não é mais considerado nome de instrumento”) e em 1940 nem mais o citaria. Ernesto Vieira, em 1899, tinha entendido ser “uma flauta mencionada no texto hebraico da Bíblia”. Vimos algo a este respeito (de ser bíblico) também pela internet, então fomos conferir a Vulgata online – versão em latim, a chamada Bíblia Constantina. Nos textos, nada – mas em comentários de estudiosos, lá mesmo, encontramos que Maeleth (além de ser nome de uma filha de Ismael), equivaleria ao hebráico MACHALATH, instrumento musical citado em salmos de David. Comentários semelhantes, por autores diferentes (em inglês, francês e italiano), num website sério – e por isso os consideramos consistentes. Mas… se não constava na Bíblia em latim, poderiam os portugueses ter ido de maeleth a machete? Bom, a pronúncia ajudaria um pouco… mas vai pensando aí, enquanto lê…

    Primeiro precisávamos “tirar a prova” do que teria lido Fokel, pois não acreditamos cegamente em ninguém – então fomos procurar livros sobre textos bíblicos em hebraico (não “livros em hebraico”, que não temos competência para ler, mas “sobre textos em hebraico”, em outras línguas). Acabamos por encontrar um excelente, em alemão, de 1777: Einléitung zu dem Neu-Testamentlichen Gebrauch der Psalmen Davids (“Introdução ao uso dos Salmos de Davi no Novo Testamento”), do teólogo alemão Friedrich Christoph Oetinger (1702-1782). Estava lá, tanto para o Salmo 53 quanto para o 88 (as numerações diferem em um número das da Bíblia em latim): […] Meister in der Musik aus Machalath (“mestre em música de Machalath”).  E Otinger ainda detalhou: Machalat ist ohne Zweifel ein musicalisch Instrument zum Trauerspiel, leannot, das ist, ein Schwermuthsinstrument, einen zu demüthigen, einen traurig zu machen (“Machalat é sem dúvida um instrumento musical – dramático, magro, isso é, melancólico, triste”) – no caso, nossa tradução se reforçou por citação em latim sobre possíveis significados de MACHALAT. Cruzamento de alemão com latim dá o quê, “alemin”? “latimão”? Aí não sei… mas sei que foi assim.

Estava lá também, dos Salmos 45 e 69, sobre SCHALISCHIM, que seria o mesmo que SCHOSCHANNIM […] welches ein Instrument von 3 Saiten Tönen oder Ecken bedeutet, so auch das weibIitche Geschlecht tractiren konnte (“instrumento de 3 cordas, tons ou cantos, ligado ao gênero feminino”) – feminino, porque shoschannim seria também o nome de uma flor, um tipo de lírio. Conferimos, e realmente ainda significaria até hoje “uma flor” e vários teriam entendido apenas assim, desprezando o significado de instrumento musical – inclusive na Vulgata online, em latim. Só que nessa mesmo, de novo, dois estudiosos (Vigouroux e Haydock) alertariam em notas que poderia ter sido instrumento musical e não uma flor…

Para nós, uma interessante coincidência, pois já havíamos percebido, há tempos, que “viola” teria sido primeiro nome de flor – um tipo de “violeta” – em latim (sec. VI), só surgindo como nome de instrumento a partir do século XII – e os dois significados ainda convivem. Um cordofone com nome de flor, pra nós, tá tranquilo…

Nosso problema, principalmente, eram posições contrárias de Sachs – tanto para MACHALAT (do qual não apontou conclusão, mas desaconselhou traduzir como instrumento) quanto para SCHALISCHIM (do qual foi categórico em afirmar que não seria instrumento musical). Respeitamos demais (como grande parte do mundo respeita) as pesquisas de Sachs: talvez seja, de longe, o musicólogo mais completo da História, tendo mergulhado em línguas que outros nem teriam pesquisado, como grego, hebraico, etc. Como já citamos, consultamos ótimos levantamentos dele desde 1913 a 1940 – é muito tempo pesquisando, descobrindo, publicando!

Mas… era um ser humano, e já tínhamos encontrado brechas de análises dele a partir de originais em línguas latinas (ele era alemão). Checando a análise dele sobre schalischim, ele afirmou que o termo só teria aparecido uma vez na Bíblia hebraica (em 1 Samuel 18, v. 6), com a grafia salisim (que ele, entrentanto, confirmou que teria a ver com o número “três”). Uma vez mais confrontando com a Vulgata em latim, salisim teria sido traduzido como sistri (“cistro”) e esse já é nosso conhecido: embora alguns o confundam com um instrumento de percussão egípcio antigo (inclusive Sachs), não há dúvidas, por grande número de registros analisados, que tenha se ressignificado depois para nome de cordofone – e seria uma das muitas variações em latim a partir de kithara (grego) – cithara, cedra, cetra, cistro, sistro… Sim, dessas teria sido gerada a atual família dos cistres, de caixa arredondada (bandolins, guitarra portuguesa, etc.).

Sachs aponta ter visto SCHOSCHANNIM (na grafia sosanim) nos Salmos 45 e 69 e nem se deteve em maiores análises, indicando equivocadamente que significaria liles (“lírios”) – mas teria sido sem dúvida um instrumento musical. Neste raro caso, nos parece sem dúvida mais consistente o apontamento de Oetinger – que até não poderia saber tanto sobre instrumentos musicais como Sachs (quem saberia?), mas teria sido professor de hebraico e especialista em Salmos. E nós sabemos que as machetes sobrevivem até hoje, e que o nome, como instrumento musical, não teria vindo do latim, nem espanhol, italiano, etc.

Entre os vários aspectos que analisamos até apontar que o diminuitivo MACHETE teria evoluído a partir de MACHOL e MACHALAT (hebraico) vem o fato que a lusitânia (assim como toda a península hispânica) sofreu invação muçulmana por cerca de sete séculos – e até Bíblias teriam sido traduzidas para árabe / hebraico.       

Então, foi assim. Muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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6 Jul, 2023

VIOLAS DEDILHADAS: ANOMALIAS HISTÓRICAS

VIOLAS DEDILHADAS: ANOMALIAS HISTÓRICAS

La bihuela [vihuela, vyyuela] de péndola [peñola] con aquestos y sota [verso 1203]

La vihuela de arco fas dulçes de bayladas [verso 1205]

(“A vihuela dedilhada com aqueles, e abaixo – a vihuela de arco com suaves baladas”)

[Juan Ruiz, Harcipreste de Hita (ca.1283-ca.1350), em Libro de Buen Amor – segundo variações de três códices (Gayoso, Toledo e Salamanca), transcritos pela Dra. Rosário Martinez  na tese Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media, 1981, p. 1220-1223 – tradução nossa]

Uma das várias “novidades” que apresentamos no livro A Chave do Baú são descobertas a respeito do uso de um mesmo nome para instrumentos diferentes – diferentes, por serem tocados de forma “dedilhada” ou “friccionada por arco”. O atento leitor já deve ter percebido, né? Temos no Brasil “violas” dedilhadas e “violas” de arco – é um fato… Até onde pesquisamos, a origem deste curioso fato não teria sido explicada (sequer, provocada) antes. É mesmo um pouco complicado de entender essa anomalia que só acontece nestes instrumentos, e só na língua portuguesa – mas, se fosse fácil, centenas de estudiosos, por vários séculos, já teriam descoberto antes, concorda? Por ser complexo é que nos aprofundamos aqui, nos Brevis Articulus semanais. Sorte vossa, por ter acesso a estes textos – e grande sorte e alegria nossa, se alguém tiver com interesse: muito obrigado, é por você que teimamos em praticar ciência.

O que descobrimos, na verdade, não teria sido novidade na História europeia dos cordofones: nela, arcos só apontam ter sido mais utilizados a partir do século X, segundo cruzamento de vários tipos de registros (esculturas, desenhos, textos), analisados por diversos pesquisadores, de diversas regiões e épocas. Os mesmos instrumentos, antes apenas dedilhados, teriam passado então a ser tocados também por arcos, por uma natural e longa fase de transição. Seriam chamados pelos mesmos nomes que tinham antes dos arcos terem chegado (variações próximas dos termos rota, giga e rabeca) e seriam, no começo, tanto dedilhados quanto friccionados por arco, só depois tendo passado a ser conhecidos como “os primeiros friccionados com registros no território europeu”. Observa-se que apenas o rabab (“rabeca”) já teria chegado ao território europeu como sendo tocado por arco, mas teria sido antes, por lá, também dedilhado – segundo pesquisadores como Paul Garnault (artigo “Les Violes”, Encyclopédie de la Musique, 1925).

O que teria acontecido com rotas, gigas e rabecas seria o mesmo que acontece hoje com nossas violas brasileiras e portuguesas:  um mesmo nome para instrumentos tocados de duas formas. Só que, além do nome “viola” apontar não ter nada a ver com aqueles outros três, haveria uma lacuna de cerca de 3 séculos até o surgimento de mais evidências conclusivas. Não atesta cientificamente, portanto, mas aponta o fato (que comprovamos por várias outras observações) que algumas características de cordofones podem romper séculos – e, em vários outros casos, até resquícios nos nomes são observáveis. Desculpem a empolgação, mas não podemos deixar de citar que este aspecto é muito bacana…  Pense bem: os instrumentos a revelarem, silenciosamente, a História (a deles e a das pessoas)…

Mas voltando à prosa: a relação mais direta só viria a partir das vihuelas espanholas, que no século XIV teriam sido também tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco, como teria intuído, entre outros, o padre-poeta castelhano Juan Ruiz (em seu Libro de Buen Amor, conforme destacado na abertura). A semelhança dos nomes não deixa dúvidas, até porque atestamos a evolução de vários nomes similares a partir do século XII em latim, occitano e catalão – línguas comprovadamente influenciadoras do espanhol e do português (entre outras línguas chamadas “latinas”).

Aquelas vihuelas de nome bivalente já teriam sido bem estudadas antes de nós pelos britânicos Thurston Dart (artigo “La viole da Gamba”, da Revista Storia degli strumenti musicali, 1961) e Ian Woodfield (livro La viola da gamba dalle origine al Rinascimento, 1999) e, também, mas com citação de contextos histórico-sociais e demonstrações em bem mais litogravuras, pelo australiano John Griffiths (artigo Las vihuelas em la epoca de Isabel, 2010).

Sim: é curioso observar que estes “gringos” tenham escrito livros e artigos em italiano e espanhol… Não encontramos os mesmos trabalhos em inglês, mas não faz falta: é até louvável o esforço deles em usar línguas latinas e são todos bons textos, muito bem embasados. Apesar disso, teria escapado àqueles grandes estudiosos o caminho que as vihuelas teriam traçado até chegarem às nossas violas, portuguesas e brasileiras. A língua portuguesa, não por coincidência, seria a única a ainda preservar, até os dias atuais, um nome igual, tanto para violas dedilhadas quanto para friccionadas por arco – por isso, é legítimo e coerente que caiba a um brasileirinho atrevido (e não a outros estudiosos pelo mundo) que “desembole este novelo” a partir desta “ponta solta”.

As nossas “violas” teriam os mais remotos registros conhecidos em três escritos portugueses, dos anos de 1455, 1459 e 1477 – segundo apontamentos também de Veiga de Oliveira (Instrumentos Populares Portugueses, 1964) e Manuel de Morais (artigo A Viola de Mão em Portugal, 1985). A princípio, aqueles registros não especificariam claramente se teriam sido violas dedilhadas ou friccionadas, mas logo em seguida as evidências se confirmariam e as “violas” dedilhadas se tornariam o principal cordofone em Portugal, com vários registros observados nos séculos XVI e XVII. O que pesquisadores não teriam percebido é que outros cordofones dedilhados, com vários registros em regiões vizinhas a Portugal (como alaúdes e guitarras) praticamente não teriam tido seus nomes citados em textos portugueses, enquanto aquelas “violas” teriam as mesmas descrições… Ou seja: as evidências reais são que “viola” teria sido apenas um nome genérico dado a todos os outros cordofones, não tendo existido, de fato, “violas” diferentes dos demais cordofones largamente utilizados – mas isso, por enquanto, só nós temos a audácia de afirmar mais categoricamente… Conforme já avisamos, somos atrevidos – vai desculpando aí, por favor.

Embora, por exemplo, Manoel de Morais tenha afirmado que “viola é empregado como nome genérico de uma família de instrumentos de corda com braço”, pesquisadores demonstram apego ao nome “viola” e seguem tratando-as como se tivessem existido de fato, nos primeiros séculos. Apontar que elas não existiriam (senão somente o nome) significaria enfrentar um problema bem complexo, pois no tempo presente dos primeiros pesquisadores citados (século XX), e até hoje, as violas existem… Uma possível lacuna teria que ser explicada, contextualizada, “provada”, por assim dizer: é muito mais fácil assumir que elas “sempre teriam existido” – até porque, há registros. Além disso, até agora ninguém teria se atrevido a contestar…

É por isso que, também “por enquanto”, só nós postulamos e contextualizamos que violas dedilhadas, de fato, só podem ser consideradas que existiriam quando for possível atestar detalhes que as diferenciassem das guitarras espanholas e outros cordofones: isto só teria acontecido a partir de meados do século XVIII, quando as guitarras então dominavam a cena dos cordofones na Península Ibérica, praticamente não sendo conhecidos mais registros por lá de alaúdes, vihuelas e guitarras pequenas. O máximo que pesquisadores (no caso, portugueses e brasileiros) apontam, portanto, é um bilinguismo (entre guitarras e violas), que realmente faz sentido entre os séculos XVII e XIX – porém, antes, teria havido um “multilinguismo”, onde o nome “viola” teria sido utilizado para alaúdes, guitarras pequenas de 4 ordens de cordas e vihuelas – multilinguismo no qual não se conhecem registros de “violas” que fossem diferentes daqueles outros cordofones, bastante populares por quase todo o território europeu da época.

Entre as complexidades que outros pesquisadores não teriam enfrentado estão:

– estudos organológicos sequer hoje em dia apontam consenso de que número de cordas e de ordens sejam diferenciadores de instrumentos (“azar o deles”, é o que pensamos);

– estudos linguísticos, até os dias atuais, não apontam consenso sobre origens do termo “viola”, entre outros nomes de instrumentos musicais (“azar o deles também”);

– são raros os estudiosos, até os dias atuais, que apontam trabalhar bem com as diferenças entre “presente e vários passados”, expressas em características organológicas e etimológicas de instrumentos musicais. Ao contrário, o que mais se observa é estudiosos agirem como se um instrumento que eles tem contato, no presente deles, sempre tivesse tido aquele formato e aquele nome da língua que estivessem usando nas suas respectivas publicações.

Não seria, entretanto, um equívoco infantil, tosco – afinal, estamos a falar de inúmeros estudiosos, vários deles muito competentes, dedicados e respeitados (o que seria de nós se tantos outros não tivessem deixado trabalhos bons?). Teriam sido mais como “pequenos deslizes”, desculpáveis possivelmente pela louvável intenção de querer traduzir bem o complexo assunto para quem o fosse ler. A “pegadinha”, no caso, é que se não analisarmos muito bem o passado, perdemos muito do caminho histórico percorrido. Alguns estudiosos até criticam deslizes assim quando cometidos por terceiros, mas, curiosamente, costumam também cair no mesmo tipo de armadilha – a de contexto histórico.

É importante observar que o que desenvolvemos (a partir de vários estudos de terceiros) foi uma prática de olhar multidisciplinar (ou multi-temático) cuja importância e aplicabilidade poucos estudiosos teriam tido antes a perspicácia de perceber e de se aprofundar tanto (isto para não afirmar de novo que somos os primeiros a chegar tão longe, numa brincalhona falsa modéstia… por enquanto, pelas apropriações indébitas e tentativas de descredibilização que já começam a surgir, faz-se mais necessário reforçar o aspecto do ineditismo metodológico e deixar a modéstia para o futuro).

Ajuda-nos a atestar a atrevida afirmação (de que pesquisadores não teriam percebido ou não quiseram apontar que não existiram “violas” de fato, até determinado período histórico) se analisarmos com bastante atenção e profundidade o que teria acontecido quanto a nomes e características de cordofones portáteis pelo território europeu, em especial em regiões próximas a Portugal, nas mesmas épocas. Bora lá:

No restante da península Hispânica, quanto aos dedilhados, guitarras (pequenas, com 4 ordens de cordas) e vihuelas (com 6 ordens) teriam registros pelo menos desde o século XIV e espelhariam instrumentos de procedência árabe – respectivamente manduras e alaúdes ou, em espanhol, “bandurrias” e “vihuelas de Flandres”, segundo, entre outros, Juan Bermudo (Declaración de Instrumentos, 1555). Uma importante diferença é que os instrumentos espanhois seriam cinturados e de fundo plano, e os árabes, periformes e de fundo abaulado.

Aquelas guitarras e vihuelas dedilhadas cairiam em desuso a partir do século XVII. Desta informação tiramos que muito provavelmente por analisarem apenas as fontes em espanhol, pesquisadores não tenham atentado para o que aconteceria na Itália e em Portugal, quando à instrumentos similares às vihuelas espanholas. Quanto às pequenas guitarras,  observa-se a partir daquela época a ascenção de um instrumento que armaria com 5 ordens de cordas e tamanho um pouco maior, mas que manteria em espanhol o nome de guitarra. Este instrumento ficou muito famoso por toda a Europa, como antes teriam sido um pouco as guitarras menores – e muito provavelmente por isso se manteve o nome guitarra, no que chamamos então de “ressignificação” do nome, para passar a representar um instrumento um pouco diferente.

Vários chamam hoje de “barrocas” aquelas então “novas guitarras”, por causa do período histórico apontado em estudos de História da Arte. O moderno termo “barroco”, entretanto e obviamente, não aparece em registros mais antigos, demonstrando um tipo de trato que concluimos não ser o mais adequado com relação a nomes de instrumentos: traduzir e/ou tentar renomear instrumentos só colabora para ficar mais difícil entender o rico histórico do passado deles – histórico que confirmamos, está lá, nos nomes e em algumas características organológicas. Só que, se generalizarmos (principalmente os nomes), fica muito mais difícil ter a atenção chamada para os tais resquícios históricos… Um pequeno equívoco lamentável, secundado por centenas de estudiosos de várias áreas, há séculos – mas que não pode ser imputado como “má fé” ou “incompetência”, vez que só agora estamos a divulgar nossa metodologia recém desenvolvida (ela é a tal que chamamos de “A Chave do Baú”). Não teria havido estudo tão abrangente antes. Apontamos estes equívocos para justificar porque nossa metodologia é capaz de ajudar a descobrir tesouros que tantos outros pesquisadores ocidentais não teriam descoberto: não é questão de ser “melhor” (estamos longe disto), mas questão de ser atrevido, perspicaz, teimoso – no popular, “extremamente chato”, principalmente dados históricos…

Já na península itálica, na mesma época, interessantes registros atestam que “violas” por lá também teriam sido nomes com bivalência quanto à forma de tocar, não por coincidência, exatamente como as vihuelas espanholas. Neste caso, por não ter observado estudo neste sentido, listamos os dados e apontamos o desenvolvimento nós mesmos:

– estimado ao ano de 1350, o poeta Giovani Boccacio (livro Decameron) apontou viuolas que teriam sido utilizadas para acompanhamento de cantos – mais provavelmente, portanto, e àquela época, teriam sido dedilhadas.

– estimado ao ano de 1486, em Nápolis, o belga Johanes Tinctoris (De inventione et usu musice) apontou que “violas” seriam cordofones de procedência espanhola; seriam tanto sine arculo (“sem arco”, ou seja, dedilhadas), principalmente em cantilenas italianas e espanholas), e cum arculo (“com arco”), utilizadas para acompanhar declamações de poesias;  acrescentou que rebecum (“rebecas”) e liutum (“alaúdes”) seriam em quase tudo similares às violas, a não ser que estas últimas seriam cinturadas (atestando espelhamento como o espanhol quanto aos instrumentos abaulados, de procedência árabe). Tinctoris se declarou tocador de rebecum e de viola e é um dos mais respeitados musicólogos surgidos após o padre italiano Guido D’Arezzo (este, considerado o pioneiro em estudos que depois originariam a atual música tonal ocidental). Observamos ainda que Tinctoris teria tido a rara atenção de optar por escrever em linguam vulgarem (“latim popular”), aproximando-se assim das nomenclaturas originais dos instrumentos, aos quais ainda tentou apontar, segundo o que sabia, as regiões de procedência mais prováveis (como se percebe, não “inventamos a roda”, apenas ficamos muito atentos ao que fizeram os bons, e tentamos ainda melhorar, a partir do que vimos ser feito).

– em 1533, Giovani Lanfranco (Scintille di Musica) não citou “violas”, mas apontou, em sua proposta de sub-classificação para friccionados, os nomes violoni, violone e violono – que seriam todos de Braccio & de Arco. Os violones, entretanto, teriam a mesma afinação de alaúdes, com a diferença que estes teriam cordas geminadas (duplas de cordas). Temos aí uma evidência de espelhamento entre dedilhados e friccionados por arco, assim como antes se observa em instrumentos espanhois de nome bastante similar (a língua italiana, como se sabe, também descende, e diretamente, do latim).

– em 1536, Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto) já apontou desde o título de seu método que as “violas” a que se referia seriam o mesmo que alaúdes, portanto, eram dedilhadas (e não friccionadas por arco).

– estimado ao ano de 1542, Silvestro Ganasi (Regula Rupertina, o método antigo mais referenciado até os dias atuais), já utilizou a nomenclatura viola darcho – mas também citou violone como um instrumento de afinação e armação de cordas iguais aos dos alaúdes, como fizera antes Lanfranco.

            Observa-se, numa somatória, que espanhois teriam nacionalizado (ou tentado descaracterizar) nomes árabes originais dos instrumentos, ao utilizar bandurria e “vihuela de Flandres”. Flandres foi uma cidade portuária de grande comércio do litoral francês à época, mas que não tem qualquer ligação com a procedência real dos alaúdes: consegue perceber a rejeição, nesse tipo de fake news medieval? Principalmente, espanhois apontariam preferência por formatos de caixa diferentes dos abaulados árabes. O formato cinturado não teria sido inventado por eles, vez que já teria registro pelo menos desde o século X em cordofones chamados organa (tanto em grego quanto em latim). Sobre as organas, sugerimos lerem nossos apontamentos a respeito, são reveladores em termos de evolução de nomes e características de instrumentos pelos séculos. Já entre as mais remotas citações sobre a opção espanhola de formato de caixa está o já citado Juan Ruiz (Libro de Buen Amor, estimado ao século XIV), que poeticamente separou guitarras latinas de guitarras moriscas entre outros instrumentos que arabigo non quiere (“árabes não querem”) e que a árabes non convenien (não convém).

Italianos também teriam nacionalizado o nome vihuela para viola, a partir do século XV (embora o nome já teria registros desde o século XII em latim, para cordofones). Também como exemplo do nacionalismo italiano, o termo espanhol guitarra seria vertido para chitarra a partir do século XVI, acompanhando a tendência de preferência europeia da época para aqueles dedilhados espanhois. Desta forma, os italianos teriam começado a separar dedilhados de friccionados pelo uso de dois nomes diferentes – mas, no início os instrumentos teriam sido praticamente iguais às vihuelas espanholas. Só com o passar do tempo os italianos desenvolveriam evoluções hoje consolidadas, como o famoso formato cinturado de caixa (mais “trabalhado na grife”) da hoje chamada “família dos violinos” (família que, na verdade, originou-se das primeiras violas, bem anteriores aos violinos). Italianos teriam evoluido também pelo de cordas metálicas em ordens triplas de cordas, nas citadas chitarras (os espanhois usariam duplas de cordas, feitas a partir de intestinos de animais – “tripas” – depois substituídas por cordas de materiais plásticos, como nylon). Entre os que estudaram bem estas características das chitarras está o pesquisador Darryl Martin (artigo The Early Wire-Strung Guitar, 2006).

Já os portugueses teriam agido de forma bem mais peculiar: evitariam nomes árabes (assim como os espanhois) e adotariam o nome “viola”, como os italianos, tanto para dedilhados quanto para friccionados – porém, sem apontar terem feito modificações em seus instrumentos até séculos depois (muito menos, acompanhar a tendência de chamar os dedilhados de “guitarras” ou similar, separando-os dos friccionados). Nem quando as guitarras espanholas se espalharam por toda a Europa a partir do século XVII, com nomes similares como guitarre (em francês), guitar (em inglês) e Guitare (em alemão). Só quando mais tarde (na virada do século XVIII para o XIX), quando novamente as guitarras espanholas mudariam de armação e tamanho, definitivamente conquistando a preferência observada hoje em praticamente o mundo todo. Os portugueses então chamariam aquelas “ainda mais novas guitarras” de “violão” ou “viola francesa” (este último nome, num procedimento similar à descaracterização sem fundamento adotada por espanhois antes, quanto a Flandres). Ou seja: os portugueses optaram por seguir utilizando, pura e simplesmente, o nome genérico “viola” para todos os cordofones – independente do que acontecia em regiões vizinhas, às quais, sem dúvida teria contato. Mesmo que tácita (posto que não se observe leis ou orientações públicas neste sentido), teria sido uma ação pública, continuada, cujo cunho aponta para um peculiar tipo de expressão do nacionalismo português, que atestamos também em vários outros registros históricos. Outros contextos histórico-sociais apontam resultados semelhantes em praticamente toda a História dos cordofones europeus.  

Até aqui já deve ter dado para perceber porque então surgiu esta anomalia, que são as violas dedilhadas. Ajudará mais ainda um destrinchamento maior sobre a origem das violas, tanto portuguesas quanto brasileiras – mas aí já serão outras prosas…

Por enquanto, muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

(As principais referências foram apontadas durante o desenvolver do próprio texto)

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