30 Ago, 2023

REFLEXÃO DE MANO

REFLEXÃO DE MANO

Viola, Saúde e Paz!

Devemos nosso aprofundamento de hoje a prosas sempre muito produtivas que temos com um amigo “mais que irmão”: Jefferson Cária, violeiro mineiro, ganhador de festivais de música caipira, que enquanto não tem seu maior talento dignamente reconhecido vai se divertindo como profissional e professor universitário da área de Engenharia Eletrônica.

O leitor acha que estas prosas são sempre de concordância mútua? Engana-se ledamente, muito longe disso… As prosas mais construtivas são sempre quando colocações são discutidas, discordadas, duvidadas. Está nos relatos Históricos, pode conferir: a Ciência sempre evolui mais quando é questionada, pois é obrigada a se explicar, a se expressar melhor, a se aprofundar em argumentos e dados.

Uma questão surgida foi: “Por que a dupla Cacique & Pajé seria das poucas a se apresentar com duas violas, quando a maioria usaria viola + violão?”

É uma boa pergunta. “Cabe pesquisa”, como costumamos dizer – mas pesquisa leva tempo, investimento. Podemos, entretanto, trazer aqui alguns apontamentos como um resumo ou levantamento “pré-pesquisa” – ou seja, vale pelo menos um Brevis Articulus como este (lembrando que, portanto, este assunto não foi levantado no livro A Chave do Baú, só alguns dos dados que vamos apontar também estão por lá). Um ensaio de resposta ao desafiador Jefferson, a quem agradecemos pela atenção, consideração e apoio, já de anos…

Para começo, utilizamos já na apresentação da questão a expressão “das poucas” ao invés de afirmar que seria a única dupla a fazer assim. Na verdade não conhecemos outra que também o faça, mas sem um amplo levantamento sobre todas as duplas que já passaram por este Brasil, afirmar não seria cientificamente correto (nem honesto).

Uma primeira reflexão lógica, básica, é que não existe nenhuma lei contra fazê-lo, e assim sendo, a arte é livre. Seria uma escolha pessoal, particular da dupla. Somado a isto, há uma noção de mercado bem comum, até intuitiva, de que, para sobressair-se em qualquer ramo é bom investir em alguma característica de diferenciação. Isso, pensando que a opção foi tomada desde o início da dupla, que hoje não precisa mais de subterfúgios, pois é das mais longevas ainda em atividade. Não esquecemos o impacto causado por se apresentarem com grandes cocares na cabeça e outras caracterizações indígenas, coerentes com o nome escolhido para a dupla: sem dúvida, são únicos, diferenciados. Desde que tivemos a honra de selecioná-los, em 2010, quando coordenávamos o Prêmio de Excelência da Viola, já percebemos que ali havia uma noção de marketing artístico, mesmo que talvez seja visceral, intuitiva. O fato de serem realmente descendentes de indígenas é irrelevante: a questão é que optam por explicitar isso, de utilizar como diferenciador no mercado.

Naturalmente, por atuarem no estilo chamado “caipira”, há de aparecer alguém com alguma história sobre a origem da opção de uso de duas violas nas performances. Alguém que vá alegar que conhece a dupla, que sabe a “verdadeira verdade”, que eles teriam confessado em alguma conversa ou entrevista – o que pode ser mesmo verdade, os dois podem ter confessado, ou até interpretado o que os teria levado a fazer tal escolha. Quando relatos assim tem certo jeito de “lenda”, ficam famosos e são amplamente divulgados como verdade (mesmo se não forem), entrando para a grande coleção de relatos semelhantes em que se baseia a chamada “cultura caipira”. Esta que, pela total ausência de comprovações históricas anteriores a 1910, em si não passa de uma grande lenda, surgida de uma interpretação genial de um empresário visionário. Ele percebeu um que embalar bem uma lenda gera bom interesse de público – um tipo de destaque que significa ótimas vendas (de apresentações, palestras, livros, discos, etc.). Como se vê, cientificamente há coerência e jurisprudência da presença de marketing visceral no estilo, desde sua invenção, no início do século XX – só que àquela época já seria habitual o uso de “viola com violão”.

Curioso, portanto, que Cacique & Pajé não obedeçam à risca a chamada “tradição”… E mais curioso ainda é que não parecem nunca ter sofrido retaliações por isso! Normalmente, só duplas muito famosas parecem ter direito de alterar alguma coisa na considerada “tradição sagrada”, como Pena Branca & Xavantinho, cujas versões de músicas da MPB passaram a ser muito bem aceitas – mas só depois que se tornaram nacionalmente famosos, por meio de uma grande gravadora, pois antes por “trair a tradição”… E Tião Carreiro (maior artista de uma grande gravadora), o único até hoje que teria criado um ritmo novo, mas aceito sem discussão entre outros ritmos que seriam todos de uma “tradição ancestral”, que remeteria aos primórdios brasileiros: a chamada “raiz”…  

No caso de Tião, o entendimento coletivo reza que ele teria sido um super “extra-classe”, um exímio cantor e instrumentista – quase divino, talvez, para alguns? Bom, isto justificaria tudo – e então, pela lógica, Cacique & Pajé estariam entre os “divinos” (pois tão famosos nacionalmente nunca teriam sido). Quanto ao fato de que o ritmo inventado por Tião – o “pagode de viola” – deu e continua dando até hoje muitos dividendos financeiros, é pouco citado no meio – mas aqui e ali se ouvem relatos de “professores de viola” que a grande maioria de seus alunos são atraídos, no começo, pelo pagode de viola (e que muitos só tocariam isso, se pudessem)… Definitivamente, portanto, podemos considerar a presença marcante de ações de marketing no estilo, o que não é ilegal nem incomum em nenhum segmento de mercado – afinal, somos um país capitalista. Está tudo certo.       

Até aqui, o leitor já deve ter percebido que partimos de uma premissa para exemplificar comportamentos de análise e pesquisa mais comuns, corriqueiros, óbvios, que qualquer pessoa pode fazer. Acrescentando, ainda no sentido de pré-pesquisa, alguns dados históricos menos conhecidos, podemos chamar a atenção para curiosos fenômenos que observamos desde os mais remotos registros da História dos cordofones europeus. São muito curiosos, embora não sejam, de forma alguma, lendários, mitológicos (ou seja, não tem o mesmo atrativo comercial).

Ciência não é marketing, não se faz para atrair, distrair ou enganar pessoas com histórias agradáveis e distorcidas para conseguir algum destaque de vendas. Além disso, dá muito mais trabalho pesquisar verdades do que inventar lendas… Ao contrário, uma coisa que afasta as pessoas é se ater apenas ao que seja comprovável – que é a principal diferença entre a Ciência e as lendas, invenções, mitos, interpretações e similares.

O apontamento de verdades comprovadas causa às vezes algum desconforto, principalmente a quem tem foco em vender algo, ou desenvolveu com o tempo afinidade quase religiosa por um assunto, e vê suas lendas mais queridas serem questionadas, desmentidas, “descomprovadas”… Mas entendemos ser apenas uma má impressão inicial, a Ciência historicamente não costuma atrapalhar vendas. Senão, por exemplo, como continuaríamos a ter a época de Natal como a mais lucrativa do ano, se nunca foi comprovado cientificamente qual o dia de nascimento do Cristo? Na verdade, o próprio Aniversariante se torna secundário no processo, e o que se planta é o curioso (e lucrativo) costume de se presentear todo mundo, exatamente na data de aniversário de Um que pregava, entre outras coisas, o desapego aos bens materiais…

Assim é o marketing capitalista, historicamente, e assim tende a continuar. E ele pode se adaptar, ou seja: com o tempo, a tendência é que até dados históricos corretos possam entrar no contexto (assim esperamos), e até ajudar a alavancar mais vendas. Num meio de tanto marketing visceral e intuitivo, estima-se que espertamente, logo alguns observarão que a verdade pode vender melhor, e talvez até mais do que o costumeiro embasamento em lendas criativas, agradáveis, mas sem registros.

Voltando aos curiosos fenômenos históricos que observamos, entre eles está a característica dos cordofones populares sempre poderem “contar suas histórias”, contar as fases que já teriam vivido, fomentando a descoberta científica de dúvidas às vezes ainda não respondidas, mas que podem ser (se mergulhamos fundo nos fatos e registros).

As duas violas de Cacique & Pajé, por exemplo, nos despertam que teria havido um período histórico em que o violão ainda não existiria, quando, portanto, seria comum serem utilizadas duas violas (ou “dois instrumentos chamados de viola”, que na verdade era o que mais acontecia). O surgimento do violão no Brasil a partir de 1820 está cientificamente apontado por alguns pesquisadores, tendo se consolidado como cordofone portátil mais utilizado a partir de 1840 (aqui, assim como praticamente em todo o mundo ocidental). As evidências foram apontadas, por exemplo, pelo Dr. Carlos Azevedo & Souza, em pesquisa feita em 2003 sobre anúncios de aulas; pela Dra. Márcia Taborda, em pesquisa de 2004 sobre a história do violão, onde levantou peças remanescentes de museus, literaturas e anúncios de jornal; pelo Dr. Renato Varoni, em artigo publicado em 2015 sobre incidências dos termos “violão” e “viola” em 10 romances do século XIX e até por gaúchos como Cezimbra Jacques, que apontou que a viola desapareceria dos registros por lá a partir de 1840, em função da ascensão da sanfona.

A partir destes e outros apontamentos, atestamos as origens de cada informação e acrescentamos mais algumas centenas, como matérias de periódicos de todo o Brasil, do acervo da Biblioteca Nacional, hoje disponíveis para consulta pela internet. Não temos dúvida, antes de 1820 não haveria ainda violões no Brasil. Somado ao fato de que o cavaquinho também só tem registros a partir de 1820, e que outros tipos de cordofones possíveis, se existiram por aqui antes, não teriam registros conhecidos, podemos apontar que duplas semelhantes, anteriores a esta data, provavelmente só usariam “viola com viola”, como Cacique & Pajé teriam resolvido fazer mais de um século depois.

Será por isso que sempre foram bem aceitos, apesar de diferentes – porque eles valorizariam uma tradição anterior? Não cremos, pois o que apresentamos é uma das postulações científicas contextualizadas pela primeira vez em nossos trabalhos, sequer os pesquisadores listados teriam somado suas informações coincidentes para intentarem checar tudo e ir além no desenvolvimento. Mas que é um embasamento muito melhor do que não citar nenhum, ou alegar alguma “divindade” aos artistas, achamos que é…

E por que ambos tocariam, e por que não uma viola com uma flauta, ou rabeca, por exemplo? Ou até um violão e um saxofone, como a dupla Jararaca & Ratinho, que em 1922 já fazia muito sucesso no Rio de Janeiro, com o mesmo estilo de anedotas, patacoadas e canções rancheiras imortalizado por Cornélio Pires?

Esta reflexão complementar já nos traz vários aspectos históricos bastantes interessantes. Como sempre, funciona mais ou menos assim: “pergunte às violas, que elas são capazes de responder, por são testemunhas da História”…

A começar, nas execuções específicas de modas-de-viola, o comum é apenas um dos instrumentistas tocar, fazendo na viola as dobras melódicas em terças que espelham o canto, tudo sincronizado. Sobre esta técnica, que as lendas rezam (ajoelhadas no milho) que seria invenção brasileira, já discorremos aqui em outro Brevis Articulus que ela já existiria, pelo menos, desde o século XII, ao norte da península britânica, segundo relatos bem detalhados do historiador Giraldi Cambrensis (ca.1146-ca.1223), em seus manuscritos chamados Descriptio Kambriae.

Não seriam apenas modas-de-viola a serem tocadas no repertório, mas sem dúvida era o jeito de tocar mais antigo e peculiar. Destaca-se entre os demais ritmos. Cornélio Pires, inteligentíssimo e já muito atento a detalhes de marketing, não apenas as introduziu nas primeiras gravações em disco, como, se não tiver inventado, enfatizou o nome “moda-de-viola” (outra prova de grande visão de marketing, que é usar boas marcas, e investir na divulgação delas). Assim, forçou-se a presença de pelo menos uma viola na formação (se não, não seria moda “de viola”, concorda?). Ainda outra profunda noção de marketing é que o estilo precisava ser o mais exclusivo possível, então toda a interpretação passou a indicar contextos que apontariam para o interior paulista (como a viola, diferente do que usavam os nordestinos Jararaca & Ratinho). Não interessava que a moda-de-viola já existisse há séculos, ou que o termo “caipira” já fosse usado com outros significados e nem fosse indígena originalmente: interessava que tudo fosse apresentado, “embalado” no contexto de um produto exclusivo, diferenciado. Desde os primeiros livros o resultado foi excelente, e Cornélio manteve a defesa da ideia em publicações e até ampliou seu conceito para outros produtos (afinal, seria uma “cultura”, algo muito abrangente). Fez assim durante cerca de 35 anos.   

Agora há pouco indicamos de que seriam dois cantores em dueto, por uma verdadeira tradição, milenar – e a partir de Cornélio, as “regras da cultura” (mesmo as que não tem registro de terem existido antes), passaram a ser ditadas pela interpretação que ele defendia. Entre elas, a de ambos tocarem e cantarem. Poderia ter havido de fato, no início do século XX, uma tradição do chamado “canto de mano”? Sim, naturalmente – a sobrevivência desta expressão popular, inclusive, aponta isso e faz sentido cientificamente, pois vozes de “manos” (irmãos) tendem, por semelhança de DNA, a serem mais fáceis de serem timbradas juntas – sendo que a timbragem de praticamente qualquer tipo de voz ou instrumento musical pode ser adaptada para soar bem em conjuntos, via bastante treino. Esta ação instintiva também foi citada naquela mesma fonte, do século XII, e hoje é estudada cientificamente, em aulas de interpretação musical.

Ao largo dos séculos anteriores, entretanto, não teria sido tradição que dois instrumentos semelhantes tocassem em dupla. Ao contrário, instrumentos de timbragem e tipo de execução diferente se complementavam, possivelmente já desde os gregos. Pelo menos desde os tempos de Plautus (230 aC. e 180 aC), passando depois por Cícero e diversos outros romanos, já haveria fartas citações de duetos instrumentais de fides (cordas) e tíbias (sopros) – pode-se afirmar que àquela época seria esta a “tradição”. Já nos também fartos registros de poesias trovadorescas (entre os séculos XII e XIII), em diversas línguas, observa-se constante emparelhamento de dedilhados e friccionados por arco, que seguiu do século XIV ao XVI inclusive com estes dois tipos diferentes de instrumentos tendo o mesmo nome em algumas línguas (como geige, vihuela e viola). Esta última descoberta já denunciamos com nossos estudos inclusive de ser a origem das bivalentes “violas” que temos até nossos dias, em português – e que seriam a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas, não chamadas assim em outras partes do ocidente desde o século XVII. Já no Brasil, conforme citamos, não conhecemos registro de dois instrumentos iguais em performance de dueto anterior ao início do século XX, já sob a batuta de Cornélio Pires; pode haver, mas duvidamos que sejam muitos, senão pesquisadores teriam observado, como nós apontamos as “tradições” desde cerca de 2000 anos atrás. Quando é mesmo tradição, e não uma criação de marketing, há numerosos registros – escritos, esculpidos, desenhados, etc. No caso do século XX, há centenas de jornais disponíveis para consulta, onde atestamos a atuação de Cornélio – mas só a partir dele – para vários detalhes.  

A introdução do violão, após 1840, atesta mais uma vez a força do carácter comercial na equação, posto que conseguiria desbancar uma das violas das modas-de-viola (é muito significativo). Na verdade, o violão alçou lugar de cordofone portátil preferido para quase todos os estilos, já ascendeu com herança das chamadas “guitarras barrocas” de grande apelo comercial, como técnicas de construção apuradas, métodos, grande fama pela Europa, etc. Na verdade, “violão” ou “viola francesa” são apenas nomes que os portugueses criaram para as guitarras espanholas, numa estratégia contrária às de marketing, que também seria instintiva, que é a de desvalorizar uma marca.   

O mais interessante, e que nunca vimos ninguém citar, é que o domínio do violão no estilo caipira também aponta um sentido de recuperação, mesmo que tímido, da verdadeira tradição histórica, que é de instrumentos se complementarem por timbragens diferentes: o violão complementa com seu timbre mais grave as notas mais agudas da viola. Esta tendência não seria aleatória, assim como a diversidade tímbrica das orquestras (as verdadeiras orquestras, não os grupos de violas assim chamados): também desde os mais remotos registros de instrumentos tocados em grupos (até na Bíblia) se observa continuamente que a variedade de timbres sempre pareceu ser o mais agradável ao ouvido humano (constatação científica recente), e podemos até detalhar o assunto em outro Brevis Articulus – assim como outra parte da mesma excelente “reflexão de mano” com Jefferson Cária: instrumentos escavados em peça única, desde as violas de cocho até os charangos… mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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24 Ago, 2023

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“[…] para uns é uma vihuela, para outros uma guitarra […] Para um português esta contenda não faz qualquer sentido, já que, tanto no séc. XVI como actualmente, se designa este instrumento simplesmente por viola…”

[Manuel de Morais, artigo A Viola de Mão em Portugal, 1985, p. 418] 

Viola, Saúde e Paz!

Em homenagem à primeira vez que demonstramos nossos estudos em ambiente acadêmico (no projeto Viva Música, da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, em 23 de agosto de 2023), resolvemos trazer para este Brevis Articulus um resumo, complementado, do recorte que lá apresentamos: propriamente dito, foi uma resposta à pergunta que, se já teria sido feita, ainda não teria sido respondida com atestações científicas: “por que se consolidaram na língua portuguesa dois instrumentos musicais tão diferentes – um dedilhado, outro friccionado por arco – mas ambos com o mesmo nome viola?”.

O primeiro aspecto para o qual chamamos a atenção é que, no desenvolvimento de nossa metodologia, amadurecemos um olhar múltiplo, não apenas de pura abrangência musicológica-organológica, mas que, entre outras técnicas e ciências, agregamos conceitos de História e Sociologia (chamado “contexto histórico-social”) e um significativo banco de dados de nomes de instrumentos (nas línguas pertinentes, desde o latim do século II aC.).

Esta somatória nos permite, por exemplo, ir além da atual falta de consenso mundial de estudos linguísticos e organológicos, com descobertas como reflexos atestáveis de mudanças em instrumentos musicais em situações históricas de grande impacto social, como invasões, guerras, imposição de línguas, manifestações culturais como o Trovadorismo e outros. Isso, só vimos ter sido intuído, mas não desenvolvido como o fazemos, pela antropóloga carioca Elizabeth Travassos, no artigo O destino dos artefatos musicais de origem ibérica e a modernização no Rio de Janeiro, de 2016.

A mesma somatória de visões também nos leva a tratar os nomes de instrumentos com muito mais cuidado e atenção que praticamente todos os estudos que investigamos (e não são poucos): para nós, um nome de instrumento musical tornou-se nunca aleatório – ao contrário, assim como outras características organológicas, a análise histórica do nome pode trazer informações importantíssimas, que normalmente teriam passado despercebidas pela maioria dos pesquisadores. Análise histórica que significa descobrir o mais remoto registro conhecido daquele nome, na língua original, para estimar aquele período histórico e as comoções sociais a que estaria sujeito – e seguir acompanhando pelos séculos os contextos histórico-sociais em paralelo a possíveis alterações dos nomes em outras línguas e de características musicológicas gerais. Os nomes de instrumentos já teriam sido vistos de maneira similar, mas também não de forma aprofundada e contextualizada como desenvolvemos, pelo musicólogo alemão Curt Sachs, no The History of Musical Instruments, de 1940.

Por este motivo nos chama tanto a atenção o paradoxo “viola ou viola” só na língua portuguesa, e nos atrevemos a investigar o que não teria sido talvez sequer cogitado por estudiosos muito mais experientes que nós – mas que não teriam argumentos como os que cientificamente apresentamos, embasados na metodologia desenvolvida e até hoje semanalmente confirmada.

“Metodologia científica” parece um troço chato, complexo, difícil, não? Pois é… não à toa, em nosso livro A Chave do Baú figuramos o assunto como uma “caça ao tesouro”, onde a metodologia nada mais é que a tal “chave” que abre baús…

Para chegarmos ao “tesouro”, que seria uma resposta atestável e bem explicada do paradoxo, precisamos primeiro contextualizar que “violas dedilhadas” é assunto pouco citado em estudos além da língua portuguesa e, em parte na língua espanhola, por causa das vihuelas – estas que, entretanto, caíram em desuso no século XVII. Neste ponto, precisamos lembrar que poucos teriam observado e citado que o nome “viola”, após ter aparecido no século XII em textos em latim, depois em occitano e catalão, apareceu no século XIII (ca.1240) em espanhol, no cancioneiro Libro de Apolonio, de autor desconhecido. Na verdade, neste mesmo texto teriam aparecido as variações VIHUELA, VIUELA e… VIOLA – que vários autores até citam, mas sem contextualizar que, portanto, “vihuela” e “viola” seriam equivalentes, pela somatória de línguas antecessoras e influenciadoras diretas do espanhol (e do italiano, e do português, entre outras).

Destacamos “na língua italiana” pois é nesta que, após os registros em espanhol do século XIII que acabamos de citar, segundo a cronologia que revela e atesta (e por isso é base científica nossa), é pelos italianos que “viola” teria o próximo registro, no século XIV (por Giovani Bocaccio, no Decameron, ca.1350) e seguiria sendo citada por Tinctoris, no século XV em Nápolis (De inventione et uso musicӕ, entre 1435 e 1511), e no século XVI por Giovanni Lanfranco (Scintille di musica, 1533), Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto, 1536) e Silvestro Ganasi (Regola Rubertina, 1542).  Enquanto que na língua portuguesa, só a partir do século XVI apareceriam registros de “violas” (em cartas do Rei D. Afonso V).

Atesta-se não somente que a ordem de uso do nome “violas” para cordofones partiu da Espanha, depois Itália até chegar a Portugal, mas principalmente por características apontadas nestas e outras fontes que a maioria dos estudiosos não teria percebido, por não terem em mente que desde as vihuelas, “viola” era nome comum a instrumentos dedilhados e friccionados por arco. A maioria dos estudiosos ocidentais só teriam em mente as violas friccionadas, que se tornaram famosas e muito estudadas por participarem do circuito erudito, das escolas, das orquestras.

Os registros, nas várias línguas e épocas distintas, e até desenhos apresentados em métodos são muito claros: vihuelas teriam sido de pendola (“plectro, paleta”) e de arco, segundo Juan Ruiz (Livro de Buen Amor, entre 1283 e 1350); “violas” teriam sido sine arculo (“sem arco”, ou seja, dedilhadas) e cum arculo (“com arco”), segundo o já citado Tinctoris, e seguindo citações já feitas, teriam sido ao mesmo tempo o vero lauto (“como alaúdes”), ou seja, dedilhadas, segundo Milano e da braccio (“braço”) e da gamba (“perna”), friccionadas por arco, segundo Lanfranco e Ganasi.

Isso sem contar pelo menos duas outras curiosidades que observamos em outras línguas: geige seria o nome tanto para dedilhados quanto e para friccionados, em latim e em alemão, segundo Hanz Judenkuning (Utilitis et Compendiaria Introducto, 1523) e em inventários do Rei Henrique VIII, a citação de Gitterons […] caulled Spanishe Vialles  (“chamados Vialles na Espanha”), onde Gitterons aponta para “guitarras”, instrumentos dedilhados. Esta citação faz parte de fontes levantadas pelo grande musicólogo inglês Francis Galpin (Old English Instruments, 1911), que entretanto, como tantos outros, não teria considerado existência de violas dedilhadas, apontando equivocadamente aquelas vialles como friccionadas por arco.

Há também evidências de que o uso de arcos em território europeu só teria registros a partir do século X, em instrumentos que inicialmente teriam sido apenas dedilhados e que por grande período continuariam a ser tocados de ambas as maneiras, sem que houvesse motivo para serem usados nomes diferentes. Estas evidências foram apontadas por estudiosos sérios e muito embasados, de várias regiões da Europa e em estudos publicados desde o século XIX – ou seja, a bivalência teria registros bem antigos e continuaria em Portugal e no Brasil até os dias atuais, portanto, estudiosos já poderiam ter percebido, se não tivessem o foco distorcido por imaginarem que só teriam existido violas de arco.

Bastam, entretanto, os apontamentos que fizemos, de entre os séculos XIII e XVI, pela ordem cronológica, em espanhol, depois italiano e depois em português, para atestar que é por isso que temos hoje o paradoxo tema de nossa aula e deste Brevis Articulus – com o agravante de atestação que a partir do século XVII, com a queda das vihuelas, cordofones cinturados com braço passaram a ser chamados de guitarra na espanha, alcançando fama suficiente para serem seguidos por nomes muito similares como guitarre (francês), Guitare (alemão), Guitar (inglês). Na Itália, as violas dedilhadas passaram a ser chamadas chitarras e só em Portugal continuou o uso de um mesmo nome “viola” para dedilhadas e friccionadas por arco. Contextualizamos que este peculiar comportamento português tem explicações e atestações que apontam um peculiar nacionalismo destes – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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ATUALIZE-SE: AS VIOLAS ESTÃO SEMPRE A EVOLUIR

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Viola, Saúde e Paz!

Violas são testemunhas da História do Brasil: estiveram presentes, por exemplo, desde relatos de Anchieta e outros jesuítas (século XVI); poesias de Gregório de Mattos (século XVII); histórias de vida como as do Padre Mestre, Domingos Barbosa e do luthier Domingos Vieira de Vila Rica (a partir do século XVIII); narrativas de estrangeiros por grande parte da Colônia (século XIX). Seus primeiros estudos viriam desde Theodoro Nogueira (século XX) até doutoramentos como os de Ivan Vilela e Roberto Corrêa (século XXI).

Embora desde dezembro de 2021 tenhamos disponibilizado, traduzido, transcrito e contextualizado os registros acima, entre centenas de outros, em nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, ainda são poucos os interessados em contar e valorizar a verdadeira história de instrumentos que, quer seja antes (como “apenas um nome diferente”) ou já depois (como verdadeiros cordofones populares consolidados), ajudam tanto a contar a nossa História. A lenta atualização não muda, entretanto, dois fatos: as violas romperam os séculos apesar de intempéries (como serem confundidas, terem seus registros e sua importância negligenciados e outras) – e outro fato é que elas vêm sempre evoluindo e refletindo aspectos sociais, junto com a própria História deste país de diversidade, de multi-culturalidade.

Temos modéstia alguma em afirmar que novos tempos se iniciaram a partir de nossa iniciativa em buscar, alcançar e atestar revelações, como a contextualização das violas conforme a História dos cordofones europeus. Esta pesquisa inédita, que abrange registros em todas as línguas desde o latim do século II aC., apontou que o que sempre existiu por aqui, assim como em Portugal, é uma Família de Violas dedilhadas.

Entretanto, sempre afirmamos nossos pioneirismos no plural, pois devemos muito aos grandes estudiosos que corroboram nossos procedimentos científicos. E, embora possa parecer estranho a quem não percebeu ainda que falar de violas no Brasil é assunto pouco levado a sério, seguimos pontuando e registrando, sempre que podemos, cada conquista, cada revelação, cada ineditismo.

A intenção é muito clara: buscamos facilitar o trabalho de estudiosos sérios do futuro, para que não precisem passar as dificuldades que passamos e, oxalá em tempos mais evoluídos que os de hoje, possam ser mais ouvidos do que nós somos. Pois a tendência, pelas evidências, é que ainda haverá violas no futuro – e nossa esperança é que possam ser vistas com o grande potencial histórico, cultural, turístico e econômico que têm. Grandes “tesouros”, que é como as tratamos em nosso livro A Chave do Baú.

Assim, seguindo a História das violas, chegamos ao ineditismo destes nossos Brevis Articulus semanais: na verdade e na prática, um tipo de “oficina científica a céu aberto”: aprofundamentos, reflexões e embasamentos em dados reais, além de explanação e comprovação “on line” da metodologia científica aplicada. E alguma dose de zoação e de provocação também, além de fazermos registros históricos atualíssimos, contemporâneos – registros que em nenhum outro lugar estariam a ser divulgados e comemorados como deveriam.

A própria existência de uma coluna semanal com conteúdo científicamente embasado sobre violas é uma grande novidade, e indica evolução. Mais ainda, por estar a ser divulgado em portais internéticos tradicionalmente ligados ao caipirismo. É sem dúvida uma evolução apresentar: incentivo à leitura, difusão de Conhecimento científico e defesa de Patrimônio onde nunca teria sido feito antes; além disso, e feito onde a maioria dos admiradores da viola navegam. Já este marco histórico devemos, principalmente, à paciência e grande visão de dois baluartes: André Viola, de Uberlândia (MG) – coordenador do portal Viola Viva – e Cléber Vianna, de Salvador (BA), do portal Casa dos Violeiros. Ambos, há décadas defendendo a divulgação e valorização das violas. Ambos, comprometidos e apaixonados pelas violas, como nós também – a diferença é que os dois dedicam-se, com maior foco, ao caipirismo.

Eu ouvi palmas? Deveria. O amigo que agora lê, por favor, pare onde estiver e bata palmas por estes dois corajosos, dedicados e visionários violeiros. Merecem muito.

Já aprofundamos e dissecamos aqui nos Brevis Articulus, por exemplo, estudos inéditos mundialmente, como os curiosos casos das “organas”, das “violettas”, das origens das modas-de-viola e outros. E testemunhamos acontecimentos históricos de 2023 como o 21º Festival do Pinhão de Cunha (SP) – semanas de espetáculos onde violas foram obrigatórias e estrelas; mais uma edição do Rio de Violas, no Rio de Janeiro e a primeira iniciativa de salvaguarda das violas portuguesas como Patrimônio Imaterial, nos Açores – entre outros acontecimentos que vamos citando e comemorando.

Há mais, muito mais. Neste ano, pela primeira vez na História, a Família das Violas Brasileiras foi representada de forma completa, ou seja, todos os modelos representados em palcos – e outros eventos assim devem seguir acontecendo. É uma pena que uma evolução moral e ética ainda não acompanhe os responsáveis, que estão a “fazer história” e se esquecem de dar o crédito devido a quem teve esta visão. Quem, corajosamente, enfrentou todos (de doutores a “achistas” em geral) para atestar e divulgar a verdadeira História das nossas violas?

Para a História (por exemplo, para aqueles estudiosos sérios do futuro que comentei), ficarão os fatos, com os registros das datas. Nada passa despercebido a quem é sério com registros históricos, a História se conta de forma clara e honesta há séculos, para a quem a queira ler sem invenções e distorções.

Temos ainda para contar que vários grupos de violeiros pelo Brasil já estão a abandonar a ideia pouco correta de se auto-proclamarem “orquestras”; que também nestes grupos já surgem maestros (de verdade), que estão a estudar opções de regências (de verdade) para as especificidades das músicas tocadas por violas; que alguns violeiros já estão a entender que, além das suas excelentes performances instrumentais, pode ser útil à comunidade (e mais lucrativo a eles mesmo) também apresentar algumas performances cantando: somos um país cantante, o canto atrái público e interesse. E até alguns adeptos ao caipirismo, mais conscientes, estão a pensar melhor antes de simplesmente repetir “ladainhas” infundadas, relacionadas às violas, que dominaram a cena nos últimos 50 anos.

Especificamente, até o caipirismo tem sido rediscutido: isso é normal, a praticamente todos os assuntos e deveria ser sempre assim… Agora… Adivinha quem foi o primeiro maluco a ter coragem de questionar apontamentos sobre o caipirismo? Sugerimos checar diversos dos Brevis Articulus já publicados: encontrar-se-ão facilmente os embasamentos, as fundamentações carinhosamente levantadas a respeito. Entendemos que o caipirismo nunca deixará de existir, nem deixará de ser lucrativo, e possivelmente vai continuar tendo fundamentação mais na base da “fé” que qualquer outra coisa – foi em dúvida uma ideia genial, de um excepcional vendedor.

O que importa é que já se começa a entender as violas com mais coerência histórica, que vai muito além do caipirismo e é muito mais importante. Em tempo, temos vários amigos e conhecemos diversas pessoas às quais admiramos e respeitamos que amam o caipirismo – só o que queremos e esperamos delas é que sejam sempre verdadeiras, com embasamentos honestos e que não se deixem enganar por fontes equivocadas: nada mais nem nada menos que isso… A não ser, claro, que não nos levem a mal e possam nos perdoar, pois é só Ciência, nada pessoal.

Por fim, para hoje, temos alegria em anunciar que mais um marco histórico está previsto para acontecer em 23 de agosto de 2023: pela primeira vez apresentaremos nossas descobertas ao universo acadêmico – especificamente em uma aula optativa para diversas grades / áreas científicas. Este tipo de aula já é tradicionalmente ofertado via projeto Viva Música, da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais.

Vez que esta conceituada Universidade mantém dois cursos de Música (“orquestral” e “popular”), revelaremos parte de nossas descobertas a partir das origens comuns (os nomes) tanto das violas de arco quanto das violas dedilhadas. Possivelmente seja a primeira vez que são apresentadas juntas, em um mesmo estudo – e agora, numa mesma aula. Vamos contextualizar o desenvolvimento histórico que culmina no curioso fato de dois instrumentos tão diferentes terem se consolidado com “um mesmo nome” – uma questão que, se foi levantada antes, ainda não tinha sido esclarecida.

É uma conquista para as violas: representa uma nova maneira pela qual precisam ser vistas. Atrevidamente, mas de forma embasada, as violas levantam discussão sobre estudos já feitos pelo mundo e requisitam seu merecido espaço nas narrativas oficiais, desde as importantíssimas abordagens acadêmicas até o conhecimento pela população em geral. Nem o Brasil, nem o resto do mundo conhecem direito as violas brasileiras.  Isso já vem de séculos, com um agravante de distorção por motivações comerciais nos últimos 50 anos. O caminho da descoberta será, portanto, longo – mas cada passo é um passo a frente, podemos e devemos celebrar. Até onde elas vão chegar serão outras prosas… Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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9 Ago, 2023

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“[…] A música sertaneja tem certas características de melodia de simples assimilação. […] E tem o som da viola caipira, que já está no “iê-iê-iê”, também com este negócio de violão de 12 cordas que os Beatles usaram muito…”.

[Rogério Duprat, em entrevista ao Jornal do Brasil, 01/12/1970, nº 204, p. 38].

Viola, Saúde e Paz!

O assunto é já bastante discutido: há dezenas de opiniões de curiosos, historiadores, sociológos, antropólogos… É citado em artigos independentes e científicos, dissertações, teses… Mas não encontramos análises musicológicas embasadas cientificamente por dados de época e contextos histórico-sociais – por isso, resolvemos abordá-lo no livro A Chave do Baú e neste Brevis Articulus apresentamos aprofundamentos, com referências, as quais os leitores podem confirmar se quiserem. Desenvolvemos a origem a partir das violas e do caipirismo, pontuando o ano de 1966, como quase ninguém teria observado e relatado antes.

“Quase ninguém” porque, entre cerca de uma centena de textos que checamos, apenas no artigo Raízes Caipiras da Música Sertaneja (do paranaense Rodrigo Mota, publicado em 2011), encontramos uma citação vaga de que:

 “[…] no Festival da Viola promovido pela TV Tupi de São Paulo, em 1970, com a participação do maestro Júlio Medaglia, procurou-se dar um novo tratamento harmônico, melódico e temático à música sertaneja, inspirado, de certa forma, nas perspectivas abertas pela música “Disparada” de Théo de Barros e Geraldo Vandré”.

Neste bom artigo há também citação às motivações do maestro Rógerio Duprat, na mesma época, conforme trechos como o destacado na abertura – motivações que na maioria das vezes nem é apontada por estudos acadêmicos. Entretanto, não há no artigo o que chamamos de “desenvolvimento científico” – até porque, para Mota, a ligação da hoje chamada “música sertaneja universitária” com “Disparada” não seria clara, concisa.

Ligação entre a música “Disparada” e o surgimento do estilo sertanejo universitário? Não é “forçar a barra”, já que tantos estudiosos não teriam visto isso?

Antes de responder via nosso desenvolvimento, não podemos deixar de dar crédito ao Dr. Roberto Corrêa, que na sua tese Das Práticas Populares à Escritura da Arte, de 2014, fez um bom apanhado sobre o fenômeno envolvendo a música “Disparada” – até porque o sucesso dela teria sido um dos cinco pilares do suposto “avivamento da viola caipira na década de 1960”, defendido pelo pesquisador. Já citamos e comprovamos por numerosos registros de época que, na verdade, a nomenclatura “viola caipira” ainda não estaria consolidada naquela década – antes, ao contrário, o que se caracterizaria desde pelo menos 1959 até meados da década de 1970 seria uma dúvida pública sobre o melhor nome para as violas, entre “viola brasileira” e “viola caipira”, com a consolidação só tendo vindo a ser atestável a partir de meados da década de 1970. Apontamos inclusive todas as citações ao termo no período, em nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, em dezembro de 2021.

Corrêa, entretanto, percebeu e citou muito bem dois aspectos importantes: primeiro, o envolvimento de Vandré e do Trio Novo (Théo de Barros, Airto Moreira e Heraldo do Monte), principais compositores e intérpretes de “Disparada”, com a multinacional Rhodia (Companhia Química Rhodia Brasileira), que à época promovia com aqueles artistas uma grande tournée nacional chamada Mulher, este Super-Homem. Corrêa também percebeu e discorreu que Duprat, em 1970, estaria às voltas com a divulgação do disco Nhô Look – e que, bem mais que um simples lançamento, Duprat na prática dava a ideia de uma intenção, que pode ser resumida numa espécie de “dar nova roupagem”, em todos os sentidos, à música sertaneja (“caipira”) que já existia, de estilo em tudo muito simples e rústico.

Dois aspectos chamaram a atenção e nos levaram a escolher o trecho destacado na abertura para ilustrar: no princípio, tanto o estilo “antigo” quanto o “mais moderno” seriam chamados de “música sertaneja”. E que embora Duprat devesse ter bom conhecimento de organologia (ciência que trata da classificação e descrição de instrumentos musicais), por algum motivo teria apontado em entrevistas como se fossem a mesma coisa: violas, violões, violões 12 cordas, guitarras – sendo que nunca foram.

A intenção era claramente comercial: a música caipira, alavancada de 1910 a 1945 com maestria e muito labor pelo visionário empresário artístico Cornélio Pires, era ainda, na década de 1960, uma realidade interessante em termos de vendas (de shows, palestras, livros, discos, etc.). E nenhum sucesso de vendas passa despercebido dos concorrentes…

  O que teria passado despercebido, porém entre pesquisadores, é que não teria sido iniciativa individual de Duprat uma “repaginação estética geral” da música caipira visando agradar a um público maior: por trás do disco e do “movimento” Nhô Look estaria a mesma multinacional Rhodia, como na época de “Disparada”.

Cabe uma explicação: a empresa química, além de cosméticos, lançou no mercado brasileiro tecidos com materias sintéticos, como o nylon e o poliester, por isso o investimento em eventos ligados à moda (roupas, “looks”). E promoveu diversos eventos ligados à música pelo atrativo de público, às vezes junto com desfiles, como Festivais, tournées nacionais e outros. É fácil entender os tipos de ações de marketing pelo próprio site oficial da Rhodia – porém, lá não constam a tournée de 1966 (com Vandré e o Trio Novo) nem a de 1970 (com Duprat). Uma significativa característica destas duas tournées é que haveria apresentações de duplas caipiras e de músicas também utilizando violas nas formações, mas em outras “roupagens”, outros tipos de ritmos e interpretações. Estas informações colhemos de diversas fontes como o livro A Era dos Festivais, de Zuza Homem de Mello (que viveu e trabalhou com música na época) – além de várias outras. Além das já citadas, acrescentamos em destaque por serem mais recentes (abrangendo outras mais antigas) e com visões que partem de outras regiões do país: a dissertação Música Caipira e Música Sertaneja, depositada no Rio de Janeiro em 2005 por Elizete Santos e o artigo Da Cultura Popular ao Erudito, lançado na Bahia em 2017 por Lucas Schafhauser e Ângela Fanini. 

   Fato é que “Disparada” foi um grande sucesso, para o qual o lendário envolvimento político de Vandré só veio a colaborar e, até hoje, faz parte dos repertórios de violeiros, de adeptos da MPB em geral e, naturalmente, de música nordestina – o que efetivamente é, embora até seus autores a tenham citado como uma espécide de “moda de viola que não deu certo”. O título original, inclusive, teria sido Moda para Viola e Laço – que comprova que falar de violas, à época, era interessante comercialmente.  “Disparada”, já com uma “nova roupagem” de uso de violas e seguindo uma trilha de sucesso comercial da música nordestina que passava por Luiz Gonzaga, “bombou” (como se diria hoje) – e isso também não passaria despercebido ao mercado. Sobre origem e entendimentos distorcidos das modas-de-violas, recomendamos, como sempre, lerem o livro A Chave do Baú ou o Brevis Articulus que já fizemos – sendo que, podendo comprar o livro, melhor, pois ajuda a manter os aprofundamentos que fazemos aqui de graça…

Sempre recorremos a registros de época e a contextos histórico-sociais que apontem reflexos em instrumentos musicais populares, por questão metodológica e de honestidade, clareza, embasamento científico. O que a virada para a década de 1970 aponta é que fatores mundiais já vinham apontando mudanças nas músicas populares desde o fim da segunda Guerra Mundial (1945): os Beatles estavam em plena evidência, assim como o movimento hippie e o rock com suas guitarras elétricas, como no Festival Woodstock (1969). No Brasil, teria sido época de ditadura (ou “governo militar”) – um período politicamente conturbado que duraria até 1985 – e em 1967 também já tinha ocorrido aqui a “Passeata contra as Guitarras”. Após o movimento Jovem Guarda – onde guitarras elétricas já eram utilizadas -, seguiram-se outros, onde guitarras também estariam em destaque, como o “Iê-iê-iê” e o Tropicalismo. Neste último movimento, inclusive, já teria havido a participação ativa do próprio maestro Rogério Duprat, daí seu nome surgir para a implantação da ideia de um “novo sertanejo”, que vendesse bem também para as classes média e alta.

A empreitada com Duprat não teria tido, aparentemente, o sucesso esperado, mas logo em seguida, a partir de 1972, uma dupla que anteriormente teria sido “caipira” como as demais despontaria com várias características do novo formato proposto: Léo Canhoto & Robertinho. Estes teriam iniciado a migração das formações de bandas para “guitarras, baixo e bateria” (como os Beatles e tantos mais que os seguiram), abdicando da antiga formação com violas e violões. No novo estilo, várias características dos movimentos anteriores (Jovem Guarda, Tropicalismo, Iê-iê-iê), como o romantismo das letras, além de outras aproximações com a cultura estadunidense nas roupas, nos cabelos compridos e até com esquetes durante os shows (similares a cenas de filmes sobre o Velho Oeste, inclusive com sons de tiros).

O sucesso teria sido imediato, com outras duplas logo aderindo (como Milionário & Zé Rico, que até no visual e figurino eram praticamente iguais). Outros estrangeirismos foram sendo integrados (como influências da música mexicana e sulamericana) e assim surgiu o que hoje se chama “sertanejo universitário”.

Musicologicamente, a presença ou não de violas nas formações diferencia claramente os dois estilos, entre outras diferenças que normalmente são mais citadas, como as temáticas das letras. Claramente se observa que uma comoção social de grande impacto mundial aconteceu (as Grandes Guerras), e que instrumentos musicais populares teriam reagido (como observamos ter sempre acontecido em toda a História Ocidental dos cordofones, a que nos dedicamos a estudar a fundo). No caso do Brasil, a ascensão das guitarras, em substituição a violas e violões.

De igual nos dois estilos, praticamente só resistiria até hoje a predominância do canto duetado em terças – tipo de canto que em outro Brevis Articulus já detalhamos: teria registros pelo menos desde o século XII, na península britânica, tendo chegado até Portugal e de lá até aqui por causa da influência celta e da atuação do Trovadorismo medieval ibérico (em si, outro fator histórico-social de grande impacto). Não, não teria sido original nosso, sequer dos portugueses, que também cantavam modinhas assim.

Alguns autores que aparentemente se arriscam a escrever sobre música sem nunca terem tocado, nem estudado, nem procurado ajuda de quem conhece melhor o assunto, querem inferir que o estilo chamado caipira teria “evoluído” para o sertanejo universitário, ou que seriam a mesma coisa, ou duas pequenas variações de um mesmo estilo. Seriam equívocos lamentáveis ou, como Duprat teria feito, argumentos interesseiros? Difícil provar o que realmente seja.

Já outros autores tentam inferir que só o sertanejo universitário teria cunho mais comercial, e que o caipirismo seria “puro”, natural – esquecendo-se que, na verdade, a interpretação de uma suposta “cultura caipira ancestral” não tem registro anterior a Cornélio Pires (ao contrário, o termo “caipira” tem registros de uso com outros significados, mas só desde o século XIX, inclusive nunca teria sido original indígena). “Esquecem-se” também que Cornélio foi um estupendo vendedor, e que a ele se devem as principais escolhas de músicas que seriam “caipiras” ou não, no início. O caipirismo é na verdade um entendimento coletivo sem comprovação histórica, com boa resposta comercial, amparado na religiosidade e no ego de vários aficcionados. Uma prova do aspecto comercial dominante no estilo é o ritmo “pagode de viola”, que teria sido criado só em 1959 e que, graças aos investimentos da gravadora alavancados no grande artista Tião Carreiro, hoje se alinha entre os principais “ritmos caipiras”… O caipirismo não seria ancestral? Como um ritmo novo pode ter se tornado o mais celebrado? E porque outros novos ritmos novos não apareceram?

Nós, que não ficamos nem em cima, nem em nenhum dos lados comerciais do “muro”, afirmamos: tanto o sertanejo “universitário” quando o sertanejo “dito raiz”, se forem “culturas” em algum possível entendimento, seriam culturas inventadas e mantidas principalmente por interesses comerciais. Nunca teriam sido culturas surgidas naturalmente, muito menos ancestrais (registros e contextos históricos apontam as datas claramente). São ações toleradas pelas leis que acontecem há séculos pelo mundo ocidental e que por isso, cientificamente, também fazem parte dos contextos históricos, junto a outros comportamentos sociais. E que venham as ameaças de morte, tudo bem: todos temos que morrer um dia…  

O investimento em favor do “pagode de viola”, que teve renovado e comprovado contexto a partir de 1976 com o início da utilização do nome “viola caipira” em discos e músicas de Tião Carreiro (LP É isso que o povo quer) foi fator preponderante para a consolidação deste “sobrenome” para o principal modelo da Família das Violas Brasileiras (Família que é postulação científica nossa) – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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2 Ago, 2023

OS “CHUTES” DE CORNÉLIO PIRES

Os “chutes” de Cornélio Pires

[…] Por mais que rebusque o “etymo” de “caipira”, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos no tupy-guarany “capiabiguara”. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz “Caí” que quer dizer: “Gesto do macaco occultando o rosto”, “Capípiara”, quer dizer o que é do mato. “Capiâ”, de dentro do mato: faz lembrar o “capiáo”, mineiro. “Caapi” – “trabalhar na terra, lavrar a terra” – “Caapiára”, lavrador.

[Cornélio Pires, Conversas ao pé do fogo, 1921 – grifos nossos]

Viola, Saúde e Paz!

Para começo de prosa, neste Brevis Articulus não ousamos fazer qualquer análise realmente etimológica, no significado correto do termo (etimologia seria o estudo sobre a origem e evolução das palavras). Não o ousaríamos pelo fato de não termos formação nem competência para tanto – mas fazemos, outrossim: apuração, organização e análise de registros históricos de palavras e seus significados. Um princípio científico básico utilizado também por etimólogos, para o qual entendemos estar habilitados por já fazermos há algum tempo, no âmbito da musicologia mais ampla, com fontes em latim, occitano, catalão, francês, versões históricas de alemão e inglês, espanhol e português.

No caso, demonstramos que nossa metodologia é eficaz também para palavras do tronco linguístico tupi-guarani – uma metodologia que nada mais é que A Chave do Baú, nome de nosso livro mais recente, onde a utilizamos para contextualizar, pela primeira vez, todos os modelos de violas brasileiras com a História dos cordofones ocidentais. Se já temos a chave, então, “simbora” descobrir mais tesouros deste baú?  

Nossa motivação para este “estudo paralelo” (ou extensão da aplicação da metodologia) veio de desafios lançados pelo genial empresário cultural paulista Cornélio Pires (1884-1958), que além do trecho destacado na abertura, teria apontado que notáveis “lexicographos” brasileiros “[…] poderiam pescar regionalismos de verdade nas paginas que se seguem” (páginas, no caso, de outro livro dele, As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, publicado em 1924).

Cornélio apontou “lexicógrafo”, que na verdade significa “organizadores de conjuntos de palavras em publicações como dicionários” – porém, como as línguas indígenas são antigas e o objetivo seria atestar possível origem do termo “caipira”, o mais correto seria levantar registros de época – pois nunca se deve analisar o passado com base no que é conhecido (dito, escrito) no presente. A ciência correta, portanto, seria a etimologia e, curiosa e acertadamente, Pires utilizou no início do trecho o termo “etymo”, que em grego antigo e em latim significaria algo como “verdadeiro, original”.

Estes pequenos equívocos (ou confusões com os significados de palavras) seriam muito graves para um estudioso, mas é sempre bom lembrar: Cornélio Pires nunca teria sido um estudioso, um cientista de verdade – inclusive, jamais teria se autodesignado como um (ao contrário disso). Há quem gostaria e, de certa forma “endeusando-o”, até “forçam a barra” – mas as publicações dele eram artísticas. Era tão consciente da liberdade com a qual podia escrever que, no mesmo trecho citado por último, de 1924, afirmou que de fato o que narrava eram “casos e mentiras”. Genial vendedor, agitador cultural incansável, visionário em várias coisas… mas estudioso de verdade, cientista, não – e basta observar com atenção.

Seguindo, então, na observação da série de pequenos equívocos (ou seriam “sutilezas geniais”?), logo após afirmar “não ter deduzido nada com clareza”, listou uma série de termos dos quais, conforme sublinhado no destaque da abertura, afirmou: “encontramos no tupy-guarani”… Chamou-nos muito a atenção esta afirmação: quais dicionários ou quais conhecedores do idioma Cornélio Pires teria consultado? E chamamos de “chutes” porque quem não teria deduzido nada com clareza, mas ainda assim tenta apontar significados, estaria, confessadamente, “chutando”…

Cornélio não precisava citar fontes e nunca teria se dado a tal tipo de trabalho, pois, como enfatizamos, suas publicações eram artísticas, livres, “não-científicas”… Por isso, inclusive, chama ainda mais a atenção o fato de dezenas de publicações, até os dias atuais, citarem apontamentos de Cornélio como se fossem verdade científica… É bastante estranho isso…

A própria interpretação da existência de uma “cultura caipira ancestral”, defendida com afinco por ele, é largamente apontada como se fosse verdade científica, há décadas, por grandes estudiosos e outros tipos de pessoas sérias… Tivemos a curiosidade até de perguntar ao “oráculo moderno”, o senhor Google: “Quais os maiores sociólogos brasileiros de todos os tempos?” – e a resposta aponta que todos, sem exceção, confirmariam (aparentemente, sem discutir sequer uma linha!) a interpretação lançada por Cornélio Pires. Vários outros estudiosos, de outras áreas, também fazem o mesmo.

Ora… Se é apoiado por tantas pessoas sérias, então devemos facilmente confirmar por registros de época tudo o que disse Cornélio, certo? Hum… não é assim não… e por isso costumamos chamar de “entendimento coletivo” – um entendimento secundado por muitos, mas que, historicamente, não se comprova ter realmente existido antes de Cornélio. Pior: vários registros e contextos histórico-sociais apontam diferente… É estranho, muito estranho…

Chegamos a identificar que a mais remota (e muitíssimo citada) referência de certo “aval científico” teria vindo do sociólogo carioca Antonio Candido, no livro Os Parceiros do Rio Bonito, publicado em 1964. O livro teria sido fruto de uma tese de doutoramento, depositada em 1954 – mas ninguém, entre dezenas que conferimos, cita a tal tese (da qual também não conseguimos acesso): tão somente o livro – um livro onde, curiosamente, sobre “cultura e região caipira” só se observam citações curtas, de pouquíssimas linhas, como se fossem conhecimentos de “notório saber”, ou seja, que nem precisariam ser detalhados… Não há desenvolvimentos científicos a respeito e, às vezes, nem citação clara de autores e/ou fontes sobre estes conceitos… Isso seria muito estranho para uma tese de doutoramento, mas para um livro, escrito por um doutor, entende-se que é aceito, na boa-fé, que a origem teria sido aprovada por revisores sérios e de grande conhecimento, de uma grande universidade. Mas, sinceramente, não é também um pouco estranho?

Explicamos: “teses” são muito utilizadas em várias áreas do conhecimento – mas o procedimento normatizado (e muito digno, na nossa opinião) seria: identificar a problemática, levantar fontes para embasamento e então desenvolver cientificamente as justificativas da tese apresentada. Se partir de algum conceito já estudado antes, o correto é descrever pelo menos de onde a ideia original teria vindo (argumentos, estudo, autor, ano, etc.). Entendemos que tanto o caipirismo quanto a chamada “região caipira” seria difícil explicar, posto não serem embasados em textos científicos, estudos… mas nem tentar explicar nada? Aqui, mesmo em textos que até poderiam ser livres como os Brevis Articulus, apontamos e explicamos tudo – questão de retidão, de não querer enganar ninguém (quem duvidar, basta seguir as trilhas e concluir por si mesmo).

Enfim… Por tantas informações e procedimentos “no mínimo estranhos”, e por “caipira” ter se consolidado, a partir da década de 1970, como sobrenome do principal modelo de nossas violas, resolvemos tomar de empreitada o levantamento e checagem de fontes que Cornélio Pires poderia ter consultado – em especial os termos destacados na abertura, uma vez que em nenhum dicionário sério de tupi-guarani eles constam como Cornélio os citou (inclusive em vários hoje disponíveis pela internet). Não observamos ninguém que tenha apontado mais este outro fato “estranho” – um grande mistério, que tantos afficionados pelo caipirismo não parecem se importar, ou sequer teriam percebido. Não se manifestam nem depois que começamos a atestar e apontar publicamente estas estranhezas – o assunto parece tabu, ou “dogma”… Mistério!

Bom… Mistérios, nós gostamos bastante de pesquisar: são nossos preferidos, pois costumam ser tesouros perdidos! Resolvemos então levantar considerável lista de fontes, que teriam sido publicadas antes e que Cornélio poderia ter consultado: de relatos de quem conviveu com indígenas até dicionários. Além de publicações em português, conseguimos alguns com paralelos em latim e espanhol e até um livro inteiro que teria sido traduzido para tupi-guarani – chegando até ao Dialeto Caipira, publicado pelo primo de Cornélio Pires, Amadeu Amaral, em 1920. Curiosamente, parece que os primos não se afinavam plenamente nos conteúdos das publicações, no início… mas depois chegaram a ser sócios numa editora. Estudos intuitivos de Amadeu Amaral são constantemente citados em argumentos a favor de Cornélio.  

Juntamos e checamos uma por uma, comparando ao que apontou Cornélio, cerca de duas dezenas de fontes, desde o século XVI, a saber:

Do Principio e Origem dos Índios do Brazil (Fernão CARDIM, 1584); Arte da Gramática da Língua mais usada no Brazil (José de ANCHIETA, 1595); Arte de Grammatica da Lingua Brasilica (Luis FIGUEIRA, 1687); Arte de la Lengua Guarani (Antonio Ruiz de MONTOYA, 1724); Diccionario Portuguez, e Brasiliano – “DPB” (coletivo, 1795); Diccionario da Língua Portugueza (Antônio de Moraes SILVA, 1831); Voyage dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil (Auguste de SAINT-HILAIRE, 1833); Novo Diccionário Critico e Etymológico da Língua Portugueza (Francisco Solano CONSTÂNCIO, 1836 e 1858); Diccionario da Lingua Tupy chamada Lingua Geral (Antônio Gonçalves DIAS, 1858); Chronica da Companhia de Jesus (Simão de VASCONCELLOS, 1865); Glossaria Linguarum Brasiliensiun (Carl MARTIUS, 1867); O Selvagem (José Vieira COUTO DE MAGALHÃES, 1876); “Manuscripto Guarani” e “Vocabulário” (Baptista Caetano de ALMEIDA NOGUEIRA, 1879); Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil) (Auguste SAINT-HILAIRE, 1887); Diccionario de vocabulos brasileiros (Henrique BEAUREPAIRE-ROHAN, 1889); O Dialeto Caipira (AMADEU AMARAL, 1920).

Consideramos ainda o Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica, de José Joaquim Machado de Oliveira, publicado já em 1936 – mas que, na verdade, é também um apanhado de várias citações encontradas nas fontes acima.

Apesar de nossas atentas e dedicadas buscas, o máximo que encontramos foram aproximações – só que elas, no conjunto, nos dão uma boa visão do que Cornélio teria feito:

caí foi realmente citado, secundária e pontualmente, como nome de macaco (assim como cairara e caíra) e também como adjetivo (envergonhado, medroso) – mas seu principal significado, fartamente apontado, remeteria a “queimar” e derivados ([CARDIM], 1881 [1584], p.80-86; DPB, 1795, p.66; MARTIUS, 1867, p.37; ALMEIDA NOGUEIRA, 1879, p.64). Indicações como estas últimas, entre parênteses, significam “pode ser conferido em”  – aí estão as trilhas, duvidou é só conferir. O que se atesta é que se caí fosse uma “raiz”, seria relativa a fogo, queimada ou similar. Cornélio, por algum motivo, apontou como “raiz” um significado menos utilizado – talvez, um apelido de algum tipo de macaco de pelo avermelhado como fogo? Seria mais ou menos como, ao ter várias bolas, escolher uma preferida, por algum motivo, para chutar…  

caapi, caa-apiá e/ou capiá seria “herva” ou “capim” (SAINT-HILAIRE, 1833, p.361; MARTIUS, 1867, p.388) ou ainda “herva forte, malvaisco” (CARDIM, 1925, p.131). Teriam sido, portanto, substantivos – e observou-se, por vários apontamentos, que a língua não aponta mesmos formatos para substantivos e verbos. O “capiau” de Cornélio até faria algum sentido, originalmente (que é o que interessa), mas não como “de dentro do mato” – talvez, como “o próprio mato”. Além da diferença de algumas letras, há diferenças no significado, ou seja: “chutou perto”, mas errou.   

– caa-pyir, caa-piir e caápi (uma citação) poderiam talvez ser “capinar, limpar capim” (segundo MONTOYA, 1724, p.101; DIAS, 1858, p.35; MARTIUS, 1867, p.37; ALMEIDA NOGUEIRA, 1879, p.63) – mas também poderiam ter vindo do latim carpere segundo Beaurepaire-Rohan (1889, p. 39); caipi seria ainda um “casaco”, segundo Saint-Hilaire (1887, p.249) e um cipó e uma bebida extraída dele, no nheengatu da amazônia, segundo mais tarde apontaria Câmara Cascudo (1954, p.201) – este último sem indicar as fontes que teria consultado (um “aprendiz de chutador”, neste item em particular? A moda parece que pegava já há tempos…). Esta (caapi como “lavrador”) teria sido a melhor aproximação de tudo que apontou Cornélio, entretanto, observa-se que teriam constatado e outros teriam apontado o que parecem conjecturas malucas: isso caracteriza que o termo não era utilizado assim na maioria das vezes, concreta e consistentemente, como parece que Cornélio quis dar a entender – mas foi um bom chute!   

– biguá seria “ave palmípede”, segundo Beaurepaire-Rohan (1889, p.39) – uma única citação observada, no considerável acervo de fontes – e guara foi largamente indicado para animais como lobos. Não dá nem para imaginar de onde teria vindo o capiabiguara como “aldeão”, apontado por Cornélio. Chutou longe…

– “Lavrador” (enquanto “capinador”) poderia ser caapim-pyrçaba segundo apenas Carl Martius (1867, p.37) e também, mas sem que tenha sido observado nas fontes, “caapiir-piára”, por comparação a tupipiára (“o que mora em casa”) e i-pipiára (“o que é aquático”), estes últimos segundo apenas Almeida Nogueira (1879, p.546). Cornélio apontou caapiara como “lavrador” e capipiára como “o que é do mato”, em conjecturas que até fazem sentido ao pensar do homem branco de séculos depois, porém que parecem não terem existido de fato no falar indígena. Curiosamente, neste “chute duplo”, Cornélio apontou que haveria alguma diferença de significado entre dois termos com poucas letras de diferença – o que parece que não levaria em consideração normalmente quanto aos termos originais do tupi-guarani e o português.  

– “De dentro do mato” poderia ser caapor (“o que tem no mato”) ou caayguar (“o que é do mato”), segundo Cardim (1584, p.81) e Almeida Nogueira (1879, p. 63).

– “Aldeão” seria taiguar ou tabaiguá, segundo Almeira Nogueira (1879, p. 475).

Atesta-se, portanto, que teria mesmo estado longe de ter “clareza” uma possível ligação de “caipira” com origem tupi-guarani – e os exercícios conjecturais “chutísticos” de Cornélio, agora vemos, teriam sido para ainda mais longe. Entrentanto, podemos dizer que a intenção do empresário deu certo, pois centenas de pessoas, inclusive grandes pesquisadores, até hoje acreditam que o apontamento daqueles termos, talvez por algum motivo mágico, pudessem atestar o que Cornélio acreditava.

Qualquer um pode dar “chutes” amadores quanto a origens de palavras, inclusive com boa lógica, se forem pessoas inteligentes como Cornélio (infelizmente acontece muito, até os dias atuais). Estas pessoas, assim como ele, acreditam que poderiam estar certas – e nunca é demais lembrar: Cornélio defendeu suas interpretações em publicações artísticas, não-científicas. As interpretações agradaram a muitos, ele vendeu bem e quem o secunda na crença do caipirismo também faz suas boas vendas até hoje em dia: está tudo certo, não há qualquer ilegalidade em querer vender. Conjecturar sem estudar nada de um assunto e sem apresentar dados de época talvez possa ser considerado “falsa ideologia”, mas, sobretudo em publicações artísticas e humorísticas como as de Cornélio, parece que a sociedade em geral não se importa… Então, está tudo certo.

Agora… Por que Cornélio Pires parecia ter tanto interesse em indicar que “caipira” seria termo indígena? E por que tantos estudiosos aceitam até hoje os apontamentos amadores dele como verdade, sem discussão, sem parecer que tenham sequer checado dados (ou, se os checaram, não os divulgam em público)?

O que nem Cornélio, nem Amadeu Amaral – e parece que ninguém depois teria observado (ou querido divulgar) – é que “caipira” (e também “caipora”) já existia(m) desde pelo menos 1821 e não seriam termos indígenas originais: seriam empréstimos, adaptações: alterações com a intenção de apelidar, pejorativa e politicamente, brasileiros e defensores de D. João VI. Também por isso, até hoje, ninguém conseguiu atestá-los de verdade como termos da língua tupi-guarani – embora vários ainda gostem, como Cornélio gostava, de os “chutarem” como se fossem. É no mínimo estranho, mas pelo menos mantém certa coerência desde o início, não?

Cornélio, vendedor inteligentíssimo (até genial, na nossa insignificante opinião), quer soubesse ou não do significado correto de “caipira”, por seus indiscutíveis méritos e esforços teria percebido a força do termo, e se abraçou fervorosamente a ele, promovendo por cerca de 35 anos uma distorção para um novo significado, que se mostra útil para alavancar vendas até os dias atuais. Aliado a uma suposta origem ancestral, “de raiz”, alavancou defesa contra preconceitos e até alguma inclusão social de um povo que não tem hábito de leitura, que, sendo então embasados na “sabedoria popular”, até hoje não precisariam dar tanto valor à leitura, à reflexão, à checagem de dados históricos. Genial. Esta genialidade teria sido conveniente ao candidado a deputado em São Paulo, Dr. Antonio Candido, e depois dele, tantos outros, sabe-se lá por quais reais motivos (mas bons motivos, segundo a visão genial de Cornélio, não faltariam)…  

Há registros suficientes e até estudos sobre o termo “caipira”, feitos por estudiosos muito sérios – igualmente “não etimólogos”, mas muito experimentados em várias línguas e que teriam convivido com indígenas. Já explicitamos estas últimas partes no livro A Chave do Baú e até em um Brevis Articulus específico aqui – portanto, são outras prosas…

Muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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JOÃO ARAUJO

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