30 Nov, 2023

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS

SOBRE JESUÍTAS E VIOLAS

 

[…]Quamobrem nec organa aut musicus canendi ritus, missis aut officiis suis adhibeant

(“Portanto, nem instrumentos nem cantos [ritos musicais cantados] devem ser executados em missas e ofícios”)

 

{Prima Societatis IESU Instituti summa, agosto de 1539. Original na Biblioteca do Vaticano, AA. Arm. I-XVIII, 6461, ff. 145-148, segundo Marcos Holler, tese Uma História de Cantares de Sion na terra dos Brasis, 2016, v.2 [Documentação], p.2}

Viola, Saúde e Paz!

Sabia não? Pois é! Desde a sua criação, os padres da Companhia de Jesus, popularmente conhecidos como “jesuítas”, teriam restrições quanto a práticas musicais. O texto em destaque faz parte do que pode ser traduzido como “Sumário Institucional da Companhia de Jesus”. A palavra organa, traduzimos como “instrumento musical” e não como “órgão”, embora este já existisse, por causa de nossos pioneiros estudos sobre o termo, já citados aqui em outros Brevis Articulus; e também por fazer mais sentido, pois não seria apenas um o instrumento musical a ser proibido, mas todo e qualquer um. Aliás, é sempre assim que fazemos quanto a traduções: uma análise o mais ampla possível dos contextos, ou “fenômenos circundantes”.

Além de serem proibidos quando a Companhia foi criada, depois de um período onde nem sempre todos teriam obedecido, Ignácio de Loyola (fundador da Companhia) voltaria a pegar pesado sobre as mesmas proibições, a partir de 1552, nas Constitutiones Societatis IESU cum earum Declarationibus (“Constituições da Companhia de Jesus com suas Declarações”). Estas teriam sido mais seguidas até cerca de 1556, quando Loyola faleceu. De qualquer forma, e para efeitos formais, elas teriam sido “colocadas no papel”, em latim, no ano de 1558. Depois disso, gradativamente as regras teriam afrouxado, mas teria restado sempre uma proibição pelo menos aos padres, ou seja, que eles, diretamente, não deveriam se envolver com execuções musicais, de onde teria circulado, na base do “boca-a-boca”, a expressão jesuíta non cantat… para essa, nem precisamos “gastar o latim” com tradução, né? Mas esta informação é importante, sugerimos guardar.

Um bom trabalho a respeito, que indicamos, é a já citada tese de Marcos Holler, cujo título ainda traz como complemento “A música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759)”. Ou, a quem preferir, também muita coisa se encontra no livro Os Jesuítas e a Música no Brasil Colonial, do mesmo Holler, publicado em 2010. Na verdade, este livro foi dos primeiros que adquirimos, há quase vinte anos atrás, quando começamos nossas buscas mais profundas pelo que hoje sabemos serem certificações, atestações, dados fundamentados, “provas”…

Sim, “provas” (ou, pelo menos, algo próximo disso). Isso porque havia à época, e talvez ainda paire pelo ar “na cabeça do povo”, alguns mitos sobre os jesuítas e as violas, no Brasil. Assim que vimos o título do livro de Holler, não tivemos dúvida: naquele livro tinham que estar os registros, as “provas” da relação dos padres com as violas, lá desde o início da Colônia. “Raiz” mais profunda que esta não pode existir, certo?

Hum… nem tanto… Certo, mesmo, é que já tínhamos, àquela época, alguma noção da lógica das coisas, das pesquisas… mas o livro foi decepcionante para nossas buscas práticas, diretas: entre vários outros instrumentos musicais, na verdade, as citações nominais a “violas” nas listas dos bens dos jesuítas são quase zero. Durante algum tempo ficamos com este dilema na cabeça: “Como assim? Então não haveriam tantas violas? Elas não deveriam ter sido as de maior número nos inventários?”.

Hoje, já vasculhamos detalhada e profundamente não só os trabalhos de Holler e outros grandes pesquisadores que fizeram trabalhos sobre o assunto, como Paulo Castagna e Rogério Budasz: também fomos atrás da maioria dos originais, que hoje estão digitalizados e disponíveis para baixar pela internet. Uma lista sobre citações ao termo “viola” no Brasil desde o século XVI, que achamos seja exaustiva, disponibilizamos e é a principal parte de nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, que estamos a publicar e revisar desde 2021. E sim: não é mais preciso pesquisar tudo como fizemos, a não ser que façam questão: já deixamos tudo “mastigado”, inclusive com traduções a partir de várias línguas. E não precisa agradecer, entendemos que seja nossa missão.

Por este trabalho todo, vários entendimentos se tornaram claros. Dois deles, destacamos: um, que as investigações sérias são trabalhosas; os dados de época disponíveis não são muitos, mas o suficiente para levar bastante tempo para conferir e entender uma parte do passado; e o outro entendimento, fruto deste primeiro, é entender claramente porque “histórias inventadas” (mitos, fake news e similares) são criadas e, principalmente, porque elas passam “boca-a-boca” (ou, hoje em dia, “postagem-a-postagem”), sem que a maioria sequer questione (principalmente se forem histórias bem inventadas, emotivas, curiosas e que agradem algum tipo de interesse, como o ego e/ou as finanças das pessoas).

Criar histórias é fácil: já a História de verdade é complexa de atestar, de conferir… além de, na maioria das vezes, não ser direta, com respostas simples, na base do “preto ou branco”. O passado sempre é feito de longos períodos, as coisas não foram acontecendo como as “lacrações” de hoje em dia, quando as pessoas têm contado com algum segmento de informação e logo fazem um julgamento, “…ah, então era assim”. O passado, na verdade, está pouco se lixando se a gente “tem direito a ter opinião”: ele aconteceu do jeito dele, no tempo dele, com a multiplicidade de fatores que teve que acontecer. E pronto. A gente que “se vire” para tentar encontrar os fatores… ou então, façamos nossos julgamentos “segundo nossas opiniões”. Só imagino o passado morrendo de rir das nossas pequenices de Conhecimento, se comparadas ao enorme universo de informações do qual ele é feito!

Voltando após um parágrafo de “filosofâncias não tão vãs assim”, chegamos que os jesuítas chegaram ao Brasil em 1949: logo, segundo o que expomos na abertura, estávamos naquele período em que a Companhia tinha sido criada já há cerca de 10 anos, as proibições às práticas musicais existiam, mas podemos dizer que “não tinham pegado” (como acontece com algumas leis brasileiras). Só que não é porque era aqui: o tal “jeitinho brasileiro” nunca teria sido invenção nossa, é só estudar História.

Fato é que teríamos, por exemplo, já em 1549, segundo cartas de Manoel da Nóbrega (1517-1570), registro de que os índios “[…] pedião ao P.e Navarro que lhes cantasse asi como na procissão fazia”.

Se estiver achando “estranho”, nas citações literais (iniciadas por aspas e “[…]”) escrevemos do jeito que está nas fontes, ou seja, se lá tinha erros, de português ou qualquer outro, os mantemos aqui.

Naquele caso, o cantor teria sido o jesuíta João Azpicuelta Navarro (1520-1557). Nóbrega teria sido o líder, e os demais primeiros “inacianos” por aqui teriam sido Leonardo Nunes (1509-1554), Antônio Pires (?-1565), Diogo Jácome (?-1565) e Vicente [Rijo] Rodrigues (1528-1600): cinco portugueses e Azpicuelta, que era espanhol.

Vários registros de jesuítas tocando e cantando seriam observados desde aquela data. Especificamente sobre “violas” (também chamadas “descantes” e/ou “citaras”), evidenciam-se registros a partir de 1583, por narrativas de uso dos instrumentos, com citação específica tendo sido feita por ocasião de visita datada de 1584, por Fernão Cardim (ca.1549-1625). Segundo ele, em três aldeias próximas ao Colégio da Bahia teria havido “escola de ler e escrever”, onde os padres “[…] ensinam os meninos indios; e alguns mais habeis também ensinam a contar, cantar e tanger”. Entre várias fontes que conferimos, este texto pode ser conferido no livro Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica, publicado em Lisboa em 1847.

Para episódios em que “não só o milagre, mas também o nome do santo” tenha tido apontado, vários indicam a partir de Diogo da Costa (?-?), que entre 1690 e 1695 teria registro de ter tocado (e bem) violas; entretanto, temos a perspicácia de perceber que o baiano Eusébio de Mattos (1609/1692), irmão do grande poeta Gregório de Mattos (1636/ca.1696), teria professado na Companhia de Jesus de 1664 até 1677, antes de se tornar beneditino, e teria sido, assim como seu irmão, tocador de viola e poeta. Também viria de nossos esforços investigados inéditos o apontamento de que a mais remota citação ao termo “viola” como instrumento musical no Brasil também aos jesuítas, mas sem que tivessem sido eles a tocar: Manuel da Nóbrega, em data que estimamos, pelo cruzamento de vários registros, entre 1562 e 1570, teria recebido “[…] um devoto amigo, que lhe tangia uma viola às portas fechadas”. A narrativa teria sido feita por José de Anchieta e pode ser conferida, entre outras fontes, no livro Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1554-1594), publicado em 1933.

Apontamos que não há evidências que teriam sido os jesuítas a trazer as violas para cá; que as teriam utilizado, sim, durante o processo de aproximação e catequização dos indígenas, mas sempre (pelos registros) em conjunto com outros instrumentos; e que a maioria dos registros devemos aos jesuítas, por suas cartas escritas daqui para fora, pois as que aqui ficaram teriam sido perdidas, junto com quase tudo que possuíam… mas haveria algumas poucas evidências de dedilhados chamados “viola”, no primeiro século, além dos utilizados pelos jesuítas (por exemplo, no nordeste, em autos). O que passar disso, podemos afirmar, é lenda, é mito. É bom ter cuidado.

Os jesuítas teriam sido perseguidos e banidos entre 1759 e 1777, sendo esta data, referente aqui à então Colônia e a Portugal, pela posse da Rainha Maria I. A chamada “rainha louca” teria feito, entre as primeiras ações, a cassação do Marquês de Pombal, principal artífice da perseguição aos padres. No resto do mundo, a perseguição só viria a ser encerrada em 1814, pelo Papa Pio VII.

 Por termos levantado alguns registros que são pouco citados, achamos interessante citar uma sequência de fatos que montamos sobre a perseguição:

Em 1757 o Governador e Capitão-Mor do Grão-Pará e Maranhão, o português Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1701-1769), escreveu o Directorio que se deve observar nas povoaçoes dos Indios (às vezes citado como “diretório dos índios” ou “diretório pombalino”), que já amaldiçoava a atuação jesuítica e propunha severas restrições; aquele Directorio foi aprovado e assinado pelo seu irmão (o Marquês de Pombal) e pelo Rei, Dom José I, no ano seguinte, em 17 de agosto de 1758.

Alguns dias depois teria ocorrido um atentado contra o Rei, D. José, em Lisboa e, em 14 de setembro de 1758, já a primeira Ordem Régia de reclusão dos jesuítas exatamente na mesma região de Mendonça Furtado, o Grão Pará e Maranhão. Coincidência ou não, é exatamente da Região Norte que hoje se tem menos registros sobre violas (inclusive já escrevemos um Brevis Articulus a respeito, confiram).

Em 03 de setembro de 1759 surgiria então a Lei que baniu os jesuítas de todas as Colônias ligadas a Portugal; em 1770, dos territórios espanhóis e em 1773, a extinção da Companhia de Jesus, pela bula Dominus ac Redemptor, do Papa Clemente XIV.

Além das fontes já citadas, cruzamos informações também com artigos como: A Língua Geral como Identidade Construída, de Maria Cândida Barros e equipe, publicado na Revista de Antropologia da USP em 1996; e Os Jesuítas no Brasil: entre a Colônia e a República, de Carlos Menezes Souza e Maria Cavalcante, publicado pela Unesco em 2016 e Apóstolos Divinos ou da Coroa: Jesuítas no Brasil e Paraguai, de Alice Faria Signes, publicação UFRJ de 2011.

O que nos chama a atenção, pela Linha do Tempo bem caprichada que montamos, é que, por exemplo: de 40 inventários dos autos de sequestros dos bens jesuíticos registrados entre 1759 e 1780 (bem pesquisados por Holler, Castagna e outros), apenas uma viola teria sido listada: exatamente uma “violla quebrada”, na Fazenda de Santa Cruz, Rio de Janeiro, inventário de 6 de maio de 1768 (e talvez, daí, a inspiração para a música Viola Quebrada, do pesquisador Mário de Andrade, com arranjo de Heitor Villa-Lobos)… Isso, enquanto em diversos registros da época, instrumentos chamados “viola” teriam sido bastante citados. Outra observação é que, em documentos de alfândega pesquisados por Mayra Pereira (tese A Circulação de Instrumentos Musicais no Rio de Janeiro, de 2016), no período da perseguição teria sido registrada apenas uma “viola de páo”, de uma lista de exportações portuguesas de 1767… enquanto dos anos de 1744 (antes da perseguição) a 1777 (exatamente quando D. Maria I assumiu o trono), teria havido vários registros. Naturalmente, neste caso, é preciso considerar que podem não ter sido encontrados todos os registros alfandegários e que o período histórico teria sido de grande dificuldade econômica em Portugal, desde o chamado “terramoto” de 1755; entretanto, no citado registro de 1767, há outros instrumentos (como flautas e rabecas), também citados em 1744 e 1777, quando as menções a violas e suas cordas teriam sido muito maiores que destes. Há na somatória geral destes registros de alfândega, inclusive, um curioso e significativo número de citações a “cordas de cítaras”, sem que haja citações a tantos instrumentos com este nome, mas sim de “violas”… e sabemos que, segundo Rafael Bluteau e seu Vocabulário Português, e Latino publicado durante praticamente todo o século XVIII, os portugueses chamariam as “violas” também de “cítaras”…  

Com efetiva citação a violas, no período da perseguição, apenas mais dois registros, ambos em Minas Gerais: em 1769, violas tocadas por escravizados, na região do Alto São Francisco, segundo Rubens Ricciardi (tese Manuel Dias de Oliveira: um compositor brasileiro dos tempos coloniais, do ano 2000); e em 1761, na cidade mineira de Vila Rica (atual Ouro Preto, em Minas Gerais), um testamento indica a atuação do luthier Domingos Vieira, fabricante de diversos tipos de violas, que teria falecido em 1771 mas cuja oficina teria funcionado pelo menos até 1777, segundo artigo de Paulo Castagna e sua equipe, de 2008: Domingos Ferreira: um violeiro português em Vila Rica.

Entendemos que os registros apontam certa ligação das violas com os jesuítas, não apenas pela maioria dos mais remotos registros terem vindo deles: a partir do século XVII já haveria outros tipos de fontes e após o século XVIII, com o banimento, aquelas fontes secaram. Inclusive acreditamos que possa ter havido alguma colaboração até com o surgimento do violão (como dissemos antes, a História nunca é só “branco ou preto”). A perseguição teria se dado na mesma época, teria sido brutal, causando certa comoção, e os jesuítas teriam significativa influência pela Europa (no mínimo, seriam muito conhecidos, tinham textos divulgados, etc.)… Sempre lembrando, os portugueses, incluindo os jesuítas, chamavam as guitarras espanholas da época de “violas”, inclusive em seus textos, o que não se pode negar que atrapalharia a identificação de um instrumento como claramente espanhol, que ajudaria a trazer divisas ao país (um tipo de pensamento capitalista já crescente, à época). E os espanhóis claramente investiam na marca “guitarra” para seu principal cordofone desde, pelo menos, o século XIV… mas isso já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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16 Nov, 2023

A HISTÓRIA DAS VIOLAS EM QUATRO PERÍODOS

A HISTÓRIA DAS VIOLAS EM QUATRO PERÍODOS

“[…] chegamos à conclusão de que a guitarra italiana, guitarra espanhola, guitarra francesa, viola portuguesa, viola brasileira foram nomes diferentes de um mesmo instrumento.”

[Theodoro Nogueira, Anotações para um estudo sobre a viola, jornal A Gazeta, 24 de agosto de 1963] 

Viola, Saúde e Paz!

Não fomos os primeiros a intuir que as violas dedilhadas de fato não existiriam, no início (teriam sido primeiro apenas um nome que italianos e depois portugueses utilizavam para outros instrumentos já existentes). Além do destaque da abertura, de 1963, entre alguns poucos outros, por exemplo, em 1985 o português Manuel Morais já teria apontado em seu artigo A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789) que “[…] desde meados do século XV a inícios do XIX o vocábulo Viola é empregue como nome genérico de uma família de instrumentos de corda com braço”. O que é difícil de aceitar é a curiosa “classificação abrangente” apontada a seguir pelo estudioso, onde instrumentos dedilhados e outros tocados por arco, com armações de cordas, formatos e nomes diferentes, pudessem ter sido todos “violas”… Se for, podemos afirmar que seria uma forma de classificação única na História dos Cordofones ocidentais. A conclusão é que apenas o nome, este sim, seria aplicável a todos: mas seriam instrumentos diferentes que, conforme o português mesmo aponta e lista, teriam outros nomes e características próprias, o que “violas” não teriam, porque na verdade não existiriam. Entretanto, não observamos ninguém antes de nós que tivesse a coragem de afirmar o que os fatos e contextos demonstram.

A nós cabe, portanto, a primazia em afirmar com atrevimento: “na verdade, não existiriam violas, só instrumentos diferentes, todos chamados de violas”. Não apenas afirmar, mas desenvolvemos e atestamos por centenas de registros e por contextos histórico-sociais. Isso por sermos melhores pesquisadores? De forma alguma, e muito longe disso. É porque seguimos um caminho científico diferente, bem amplo, com paralelos a outras áreas da Ciência além da Musicologia (como História, Sociologia, Linguística e outras), e ainda, com destaque, um aprofundado estudo sobre nomes de instrumentos, em fontes e estudos nas principais línguas europeias desde o latim do século II aC. Que saibamos, nunca tinha sido feito assim antes (e por isso fazemos).

Percebemos inclusive que pouquíssimos estudiosos teriam dado mais atenção às violas dedilhadas, a não ser alguns portugueses e brasileiros, e estudos sobre as vihuelas espanholas, estas que teriam caído em desuso a partir do século XVII.

Por nossa inovadora maneira de investigar, inclusive, não admiramos que nossos apontamentos não sejam muito considerados ainda nos dias atuais, embora tenham profundo embasamento científico. Afinal, são séculos de análises feitas antes e por estudiosos mais famosos que nós: é normal que demore algum tempo até que sejamos entendidos, checados e reconhecidos. Estimamos que levará, talvez, uns 50 anos até que nossos apontamentos sejam melhor considerados, ou seja: nossa monografia, o livro A Chave do Baú, os artigos e estes Brevis Articulus aqui seriam provavelmente destinados de fato a quem nos lerá no futuro, quando infelizmente não teremos a oportunidade de esclarecer dúvidas, corrigir possíveis equívocos nossos e colaborar mais para o avanço da Ciência. Paciência, cest la vie, shit hapens

Em termos da História das violas dedilhadas portuguesas e brasileiras, o que a maioria dos estudiosos aponta é um equivocado e aparentemente óbvio “bilinguismo português”, ou seja, que os portugueses simplesmente utilizariam um nome diferente, uma espécie de simples tradução (por exemplo, usar “viola” ao invés de vihuela). Ainda assim, um nome diferente não comprova que instrumentos seriam diferentes: seria necessário apontar características diferentes entre eles. Assim como, um nome igual não comprova que os instrumentos sejam iguais, como é o caso das “violas” de arco e as “violas” dedilhadas. O fato é que não seriam conhecidas características diferenciadoras nas “violas dedilhadas” até pelo menos meados do século XVIII. Assim, até o próprio bilinguismo atesta que não haveria instrumentos diferentes, apenas nomes diferentes.

Em nosso desenvolvimento observamos que teria na verdade havido, pelos portugueses, uma ação patriótica (ou nacionalista), popular e tácita, corroborada por registros e por um contexto histórico-social de notório conhecimento público, que são disputas ou rivalidades entre portugueses e invasores mouros, além de entre portugueses e espanhóis.

Por não ter sido apresentado sob esta visão antes, cabe a nós também a primazia em pontuar quatro momentos históricos, desde a origem da utilização do termo “viola” como genérico para cordofones, em Portugal, até os dias atuais. É o que fizemos na monografia, em linguagem acadêmica, e que tentaremos “traduzir” aqui neste Brevis Articulus.

 

PERÍODO 1 (entre meados do século XV até fins do século XVI): as “violas dedilhadas” ainda não existiriam, e sim instrumentos chamados de “viola” pelos portugueses.

Seu início é estimado ao ano de 1455, data do mais remoto registro conhecido de “violas”, que teria sido apontado pelo militar português Brito Rebelo (1830-1920), em seu livro Curiosidades Musicais – um guitarreiro do século XV. Não teríamos tido acesso ainda ao original, mas confiamos nas citações dos portugueses Ernesto Veiga de Oliveira (livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses, ano 2000, ver páginas 163 e 164) e Manoel Morais (já citado artigo A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789), de 1985, ver página 397); além dos secundamentos feitos nas décadas seguintes por grandes pesquisadores brasileiros como Paulo Castagna (dissertação Fontes bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII, 1991, ver página 221); José Ramos Tinhorão (livro História Social da Música Popular Brasileira, 1998, ver páginas 26-27) e Rogério Budasz (livro A Música no tempo de Gregório de Mattos, 2004, ver página 09).

Todos estes estudiosos, além de outros, apontaram que teriam existido “violas dedilhadas” em Portugal desde o século XV, mas nenhum deles foi capaz de apontar diferenças entre aquelas possíveis “violas” e outros instrumentos existentes. Outros instrumentos bem investigados e descritos até por eles mesmos, que seriam alaúdes (de caixas periformes) e cinturados de caixas com fundos paralelos, a saber: guitarras espanholas de quatro ordens, vihuelas de seis ordens e depois as guitarras também espanholas, chamadas hoje “barrocas”, com cinco ordens de cordas. Além, naturalmente, das violas de arco, bem diferentes pela maneira de serem tocadas. Não é curioso que para todos os demais instrumentos sejam apontadas classificações claras, a partir de diferentes nomes e características, mas das supostas “violas dedilhadas” não haveria nenhuma característica diferenciatória, exclusiva, a não ser o nome? Não é curioso que só as “violas” teriam as mesmas características de todos os demais instrumentos da época?

Que “violas” teriam sido aquelas? Nós respondemos sem medo: nenhuma! Haveria apenas o nome “viola”, nome que de fato já existiria desde o século XII conforme registros em latim, occitano, catalão e até em espanhol (ver detalhes em nosso artigo Chronology of Violas according to Researchers). Assim como as vihuelas espanholas, “viola” era nome utilizado tanto para friccionados por arco quanto dedilhados, basta ver métodos como os de Fuenllana (1554), Bermudo (1555), Amat (1596) e Cerone (1613). No território italiano também haveria registros assim, desde aproximadamente 1486 (ver Tinctoris, De Inventione et usu musicae). A bivalência de nome para dedilhados e friccionados por arco se encerraria a partir do século XVII por todo o território europeu, só seguindo até os dias atuais por causa dos portugueses, que optaram por mantê-la. Observe como o comportamento português é sempre diferente!

Portugueses simplesmente teriam optado por utilizar o nome “italiano” (ou latino) “viola” para evitar nomes espanhóis como vihuela e guitarra, e até árabes como alaúde. Isso, por contextos histórico-sociais claros de disputa, de rivalidade. Entre as dezenas de evidências deste peculiar comportamento português, destacamos que eles utilizariam nomes como “violas grandes” e “violas pequenas”, enquanto outros povos diferenciariam muito bem vihuelas e alaúdes (maiores, com mais cordas) das primeiras guitarras (menores e com menos cordas). Neste particular, jamais interpretaríamos a padronização do nome como falta de acuidade intelectual de um povo que teria sido o primeiro a se levantar como Reino Independente no território europeu: ao contrário, damos ênfase exatamente ao forte nacionalismo inato dos lusitanos. Particularmente? Achamos bonito e temos até inveja daquele senso de defesa da pátria português.

O término do primeiro período é estimado a 1596, com a decadência de registros de vihuelas e guitarras espanholas de quatro ordens de cordas, em função da ascensão da guitarra espanhola de cinco ordens (estes instrumentos todos que, para os portugueses, seriam “violas”). As hoje então chamadas “guitarras barrocas” dominariam a preferência no território europeu mais ou menos pelos dois séculos e meio que se seguiram, segundo, além dos estudos já citados, também outros importantes e isentos como a Encyclopedie de la Musique (na edição de 1920, volume 4, ver páginas 2023 a 2027).

PERÍODO 2 (entre o século XVII até a primeira metade do século XVIII) começariam a ser observadas duas características que no futuro viriam a distinguir as violas portuguesas de outros instrumentos: os usos de “cordas de arame” e de “ordens triplas de cordas”.

A gama de instrumentos diferentes chamados de “viola” pelos portugueses teria gradativamente se tornado menor, dada a já citada preferência pelas guitarras de cinco ordens de cordas, que teria trazido uma decadência, em registros, dos alaúdes, vihuelas e guitarras menores, de quatro ordens. A transferência do nome guitarra para instrumentos maiores e com mais cordas não caracterizaria na verdade o desaparecimento total dos anteriores, menores, que já teriam relativa fama pelo território europeu: na verdade, teria aberto a oportunidade para eles terem outros nomes consolidados. Em Portugal, as chamadas “violas pequenas”, “machetes” ou “machinhos”, depois, com o passar do tempo, também seriam identificadas por “braguinha”, “rajão”, e, mais no futuro ainda, até o “cavaquinho” e o “ukulelê” hawaiano.

No Brasil, “violas pequenas” teriam mais remoto registro conhecido na Lista dos itens musicais encontrados no Registro dos Generos de varias fazendas que se despachaò nesta Alfandega do Rio de Janeiro – ano de 1700, segundo Mayra Cristina Pereira (tese A Circulação de Instrumentos Musicais no Rio de Janeiro, 2013, p.127). Cá como lá, logo depois se observam registros de “machinhos” e “machetes”, mas não os demais, sendo que o nome “cavaquinho” só teria sido utilizado aqui bem depois de ter surgido em Portugal, causando aqui, diferente de lá, o surgimento de dois instrumentos diferentes: o cavaquinho (4 cordas simples) e as Violas Machetes (10 cordas em 5 ordens).

Gradativamente, duas características teriam começado a surgir especificamente em violas portuguesas: a utilização de trios de cordas (em duas das cinco ordens) e a utilização de arame ao invés de tripa, embora cordas de arame já fossem utilizadas em cordofones europeus há algum tempo. Observa-se que ordens com trios de cordas (sem citação ao material delas) foram citadas no método Liçam Instrumental creditado a João Leite Pita Rocha (1752, ver página 2) e violas com dois trios de cordas, e indicações de que cordas de arame dariam menos despesa e seriam mais duráveis, apareceriam no método Nova Arte de Tocar Viola, de Manuel da Paixão Ribeiro (1789, ver página 6). Estes dois métodos são largamente apontados por estudiosos, porém sem que indiquem ter percebido que aquelas teriam sido as primeiras características de “violas” que seriam fisicamente distinguíveis de guitarras. Entre estes grandes pesquisadores, por décadas, podemos apontar: Paulo Castagna (1992, p.2), Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.158-161) e Júnior da Violla (2020, p.19 a 25).

Quanto à utilização de arame, cordas metálicas já seriam utilizadas desde o século XVII nas chamadas chitarras italianas, de cinco ou seis ordens, segundo Tyler & Sparks (The Guitar and its Music, 2002, ver páginas 199 a 210) e Darryl Martin (artigo The early wire-strung guitar, 2006, página 125).

No Brasil não foram observados muitos detalhes dos instrumentos chamados de “viola” neste período, mas pode-se apontar terem existido pelo menos dois tamanhos: “violas” e “machetes”, estas últimas que teriam sido menores e predominariam entre afrodescendentes. Podemos também apontar o reflexo históricos das ordens triplas metálicas em Violas de Queluz remanescentes (as mais antigas, que apresentariam 12 cravelhas, mesmo que armassem com apenas cinco pares de cordas) e também nas Violas Nordestinas dos repentes, que ainda utilizam uma ordem tripla de cordas.

O período se destaca porque os portugueses ainda continuariam chamando de “viola” as guitarras de cinco ordens com cordas de tripa, então, existiriam “violas portuguesas” (com pequenas diferenças), mas existiriam ainda guitarras “chamadas de viola”. É um período de transição para a História das violas.

 

PERÍODO 3 (entre meados do século XVIII e início do século XIX): violas evoluiriam finalmente para instrumentos diferenciáveis das guitarras, porque a nomenclatura guitarra teria tido seu uso alterado novamente pelos espanhóis, passando a ser aplicada para instrumentos com a armação 6×6 (6 cordas em 6 ordens, o chamado “violão”).

Ao fim deste outro período de transição, a ascensão do “violão” teria proporcionado a caída em desuso de guitarras de cinco ordens (pelo menos, é assim que estudiosos apontam). Entretanto, aquele instrumento (que também era chamado de “viola” pelos portugueses), não teria desaparecido, apenas teria continuado a ser chamado de “viola”: cinco ordens duplas aparecem até os dias atuais, entre os modelos mais conhecidos de violas, tanto em Portugal quanto no Brasil. É uma grande lição histórica dos instrumentos populares: eles guardam consigo resquícios, que são verdadeiras atestações das comoções sociais a que foram submetidos pelos séculos.   

Sobre a fase de transição (das guitarras de cinco ordens até a consolidação do violão, de seis ordens), diferente de outros estudos, preferimos estimar pelo cruzamento e somatória de várias fontes:

– entre aproximadamente 1752 e 1764 teriam sido publicados em Madrid dois métodos citando vandolas de seis ordens: um por Pablo Minguet (conferimos edição de 1754) e outro por Andrés de Sotos (conferimos a edição de 1764). As datas foram analisadas, entre outras fontes, também na Encyclopédie de la Musique (1920, v.4, p.2025). Consideramos a questão do nome vandola para instrumentos de seis ordens, citado desde Amat (1596), como pouco aprofundada em estudos e talvez ainda mereça um artigo específico; mas neste caso, o fato é que são apontamentos sobre instrumentos de seis ordens que por mais de um século não se conheceriam outras citações;

– em 1760, anúncio do jornal Diario Noticioso Universal, de Madrid, apontaria a venda de uma “vihuela de 6 órdenes”, do luthier Granadino (?-?), segundo Tyler & Sparks (2002, p.195). Nos próximos anos haveria outros, mas destacamos este porque o nome vihuela não teria sido observado em registros desde antes de 1596, conforme já citamos;

– entre 1770 e 1780 seria um período estimado do surgimento do violão bastante apontado por estudiosos, com apontamento equivocado de origem francesa ou italiana. Observamos estes apontamentos desde o artigo Stalking the oldest six-string guitar do estadunidense Thomas F. Heck (1943-2021), escrito entre 1972 e 1974. Ao fim do próprio artigo, entretanto, o pesquisador apontou dúvidas sobre as alegadas procedências (mas não quanto às datas de fontes que consultou). Quem, entretanto, acompanhasse a peculiar preferência e modo de utilização do termo guitarra pelos espanhóis, desde o século XIV, não teria qualquer dúvida da origem do “violão” (ou “nova guitarra”, que seria a terceira de uma série);

– de 1773 a 1787 seriam os três possivelmente mais antigos violões remanescentes encontrados em museus europeus segundo Márcia Taborda (tese Violão e Identidade Nacional, de 2004, ver página 47), que checamos e confirmamos;

Paralelo a estas citações, há ainda declarações feitas no método Principios para tocar la guitarra de seis órdenes, do compositor italiano Federico Moretti (1769-1839), que apontou que em 1799 seriam utilizadas seis ordens na Espanha e que na Itália, em 1792, ainda não se utilizariam seis, apenas cinco ordens (menos por ele próprio, que desde 1787 já tocaria com sete ordens simples).

De todas estas informações e mais algumas, concluímos que as seis ordens teriam gradativamente voltado ao inconsciente coletivo europeu, a partir dos espanhóis, após estes mesmos terem lançado as guitarras cinco ordens com sucesso por mais de um século, comprovável por diversos métodos publicados em inglês, italiano, alemão, francês. A ação de “mudar guitarras que estavam dando certo” pode parecer ter sido aleatória ou equivocada, a princípio, mas chamamos a atenção mais uma vez ao contexto histórico-social: estariam em pleno desenvolvimento as fases da Revolução Industrial, com a nova ideia de produção e venda em série. Instrumentos musicais, assim como outros produtos, significariam atrair divisas a quem os produzisse melhor, em primazia, com características únicas e exclusivas.

Um capítulo da fase de transição (que iria de fato até o início do século XIX) nos apontou a ênfase ao ano de 1799 das guitarras 12×6, que alguns estudiosos chamam de “guitarras clássico-românticas”, como, entre outros, Paulo César Veríssimo Romão (1799, O Ano dos Métodos para Guitarra de Seis Ordens, 2011, p.2). Aquelas guitarras “intermediárias” (vez depois também engolidas pela preferência pelo violão), teriam originado “violas portuguesas” iguais, que não sobreviveriam lá até os dias atuais, mas que no Brasil surgiriam como o atual modelo Viola de 12 Cordas da Família das Violas Brasileiras. As atestações mais remotas aqui são só da década de 1920, por fotos e um instrumento sobrevivente que teria sido utilizado pela dupla Mandy & Sorocabinha, segundo Júnior da Violla (As seis ordens de uma ilustre desconhecida, 2020, p.68); mas é preciso considerar que vários registros escritos desde o século XIX apontariam simplesmente “violas de 12 cordas”, o que não atesta nem descomprova se teriam sido de cinco ou de seis ordens.

Em coerência com a ação patriótica que já vinha sendo executada desde o século XV, os portugueses também não chamariam as novas guitarras pelo nome correto, pois o nome continuaria remetendo, e então mais ainda, aos espanhóis. O procedimento é bastante similar ao que aconteceu antes com machinhos e machetes: quando espanhóis deixam de chamar o instrumento de “guitarra”, eles seguem recebendo outros nomes. Já as novas guitarras espanholas, as nomenclaturas mais adotadas pelos portugueses (até os dias atuais) seriam “viola francesa” e “violão” (claramente derivadas da nomenclatura “viola”, já utilizada para as guitarras antigas). Ressalta-se que não há evidência concreta de origem do violão a partir da França, e sim, pelo apelido surgido, uma continuação da ação de rejeição nacionalista portuguesa. Mesmo o termo “guitarra francesa”, apontado por alguns estudiosos como tendo sido bastante utilizado, só observamos uma vez citado por portugueses já no século XX, por Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.214); e, no Brasil, apenas 20 citações do nome “guitarra francesa” entre 1810 e 1849, em milhares de fontes pesquisadas, como periódicos (jornais e revistas).

No Brasil, em confirmação de que a nomenclatura patriótica era de fundamentação portuguesa, não nossa, entre as décadas de 1810 e 1830 observou-se que “guitarra” teria sido o nome de cordofone mais citado, com larga vantagem aos demais; só a partir de 1818 teriam começado a surgir os primeiros registros de “viola francesa”, “guitarra francesa” e “violão”, segundo dados disponíveis na Biblioteca Digital Nacional. A década de 1840 é apontada como de evidência da consolidação do violão no Brasil também por outros estudos: em análises de anúncios de aulas de música, por Carlos Eduardo Azevedo e Souza (tese Dimensões da vida musical no Rio de Janeiro, 2003, p.289) e estudos de romances por Renato Castro (artigo Musical artefacts in literary texts, 2015, p.39).

Neste período também teriam começado a surgir os registros de “sobrenomes”, alguns deles que se consolidariam depois nos modelos hoje vigentes: “Machete” e “12 Cordas” foram observados a partir de 1827; “Viola de Cocho”, entre 1851 e 1868; “viola sertaneja”, a partir de 1870; “viola cabocla”, 1876; “Viola de Queluz”, 1884.

No início do século XIX talvez pudesse ter sido alcançada certa “vitória” da ação de resistência portuguesa expressa pela nomenclatura nacionalista: eles teriam, finalmente, instrumentos de verdade (e não apenas um nome) para representá-los, exato na mesma época de consolidação do pensamento capitalista geral. Entretanto, não é o que registros apontam, conforme relataram, entre outros, os já citados Manuel da Paixão Ribeiro (1789, p.2) e Veiga de Oliveira (2000[1964], p.165).

Se as violas já estariam em decadência no tempo de Paixão Ribeiro, mais ainda com o crescimento do violão… mas não na Colônia, tornada independente a partir de 1822: aqui haveria muitas violas, conforme já dito, com destaque pelas tocadas por pretos. E portugueses saberiam disso, pois por lá já fariam sucesso, na mesma época, pretos violeiros exímios como Domingos Caldas e Joaquim Manoel.

Daí se observa, em contraponto, que o instrumento que Portugal viria a adotar como representativo cultural junto ao resto do mundo (e com vistas a busca de divisas) acabaria sendo a chamada “guitarra portuguesa”, e exato a partir do início do século XIX. Faz parte do contexto histórico-social uma aproximação com a Inglaterra feita por D. Pedro I, desde ações pela Independência do Brasil em 1822. Esta aproximação teria sido levada a Portugal após a vitória dele na Guerra dos Dois Irmãos, em 1834, exatamente quando é estimado o início da fabricação das “guitarras portuguesas” por lá (embora já existissem antes), “guitarras” então praticamente iguais à english guitar ou “guitarra inglesa” (OLIVEIRA, 2000[1964], p.197).

Com referência a este outro instrumento, de caixa arredondada e armando com seis ordens duplas de cordas metálicas, o nome “guitarra” é observado frequentemente em registros feitos por portugueses, diferentemente do tratamento dado às antigas guitarras cuja nomenclatura praticamente não se observa desde o século XV. Por serem instrumentos de caixas muito diferentes, atesta-se também a rejeição portuguesa ao uso do nome guitarra para seus cinturados preferidos até então, as chamadas “violas”. Os nomes germânicos gitar, gittern e antes cittern, também traduzidos como guitarra, viriam de uma bifurcação por caminho diferente do das línguas latinas, mas todos teriam vindo primordialmente partir da cithara latina, kithara grega e kethara assíria. Duas curiosidades: portugueses aceitariam a versão “cithara” para suas violas, mas não “guitarra”, segundo Rafael Bluteau (1720, v.8, p.508); e pelo menos um estudioso, Nuno Cristo (Em defesa da Cithara lusitânica, 2021) defende que a “guitarra portuguesa” teria vindo de cítaras desde o século XVI, embora não haja registros continuados conhecidos por lá, enquanto a citada aproximação com a Inglaterra e o caminho de registros de nomes citados sejam notórios. Ou seja, mais uma vez se atesta visões diferentes por portugueses.

Mesmo com a preferência pelo violão e ainda que tenha tido menor evidência em alguns centros, violas foram registradas na maioria das regiões brasileiras, tocando repertórios diversificados, com destaque aos pretos (cantigas e temas dançantes em batuques, em desfiles, dentro e fora das igrejas, etc.). Inclusive no maior polo comercial do século XVIII, surgido em função do Ciclo do Ouro, a cidade de Vila Rica (atual Ouro Preto), em Minas Gerais (CASTAGNA & SOUZA & PEREIRA, 2008) e em capitais como o próprio Rio de Janeiro (segundo a já citada Mayra Pereira, 2013). Não se atestam, portanto, equivocadas alegações de que “a viola teria migrado para o interior do Brasil”, que são colocações oportunas para a defesa de um suposto caipirismo ancestral, que igualmente não se atesta por registros de época, mas que é entendimento coletivo ainda defendido por muitos pesquisadores e outros fiéis.

 

PERÍODO 4 (entre o início do século XX e o início do século XXI): a grande expansão de um modelo de viola no Brasil.

Surgiu, gradativamente, o modelo mais conhecido e de maior evidência nos dias atuais, consolidado hoje pelo nome Viola Caipira. Registros apontam, entretanto, que até a década de 1970, além das nomenclaturas dos demais modelos, que citamos no período anterior, a nomenclatura mais empregada era simplesmente “viola”, com registros também de “viola paulista”, “viola sertaneja”, “viola cabocla” e “viola brasileira”, para modelos com pequenas diferenças. Com processo de fabricação similar ao de guitarras, desenvolvido na grande capital São Paulo por imigrantes como Del Vecchio e Giannini a partir de 1900, o modelo não apresenta semelhança aos modelos artesanais preexistentes, inclusive os chamados de “viola paulista”, que seriam os mais relacionados ao caipirismo. Definitivo entendimento a respeito, embora desprezado ou não entendido corretamente por diversos estudiosos adeptos ao caipirismo, é indicado em pesquisa de campo da década de 1950 feita por Alceu Maynard de Araújo (ver compilação de artigos A Viola Cabocla, 1964). Entender que, por ter-se consolidado com o nome Viola Caipira este modelo teria sido o ancestral, ou único, é um equívoco talvez só explicável por motivações financeiras e/ou de crença popular.  

As violas tiveram grande salto de popularidade com os registros em discos, a partir de 1929, graças a Cornélio Pires, este apontado por dezenas de estudos, lembrando que entre aquelas haveria Violas 12 Cordas.  Após meados da década de 1970, então, após início de uso maciço do nome pela gravadora de Tião Carreiro, o modelo Viola Caipira foi crescendo em número de adeptos e de potencial econômico, com tudo o está relacionado ao capitalismo vigente no país já desde àquela época, como fabricação em série, avanços tecnológicos, ações de marketing e investimento de empresas. Coerente com o caipirismo, cujos produtos (livros, discos, shows) já tinham provado ser de bom atrativo comercial.

Já a partir de 2015 (talvez, num possível novo período surgindo?), uma cadeia de acontecimentos vem apontando novas perspectivas das violas no Brasil, com a correta ampliação de visão para além apenas do modelo Viola Caipira:

– em 2015 e 2016, o Projeto SESC Sonora Brasil levou mais de 500 apresentações de vários modelos da Família das Violas Brasileiras nas cinco regiões do Brasil, colaborando para a consolidação da diversidade e dos próprios modelos, individualmente, segundo por exemplo Roberto Corrêa (artigo Cinco ordens de cordas dedilhadas, 2015) e Denis Rilk Malaquias (Música Caipira de Concerto, 2019, p.46);

– a proposição em Minas Gerais, e depois em âmbito nacional, pelo reconhecimento oficial da viola como Forma de Expressão válida aos registros em Livros de Patrimônio Imaterial, que temos a honra de ter introduzido nos anos de 2015 em Minas e em 2017 no Iphan Nacional;

– artigos acadêmicos de estudiosos importantes, como os já citados Roberto Corrêa (As Violas do Brasil, 2017) e Paulo Castagna (Viola Brasileira, 2017).

 Os demais modelos além da Viola Caipira, a saber: Brancas (“Fandangueira” e “Caiçara”), Buriti, Cabaça, Cocho, Machête, Nordestinas e 12 cordas continuam a sobreviver, com atrativo comercial e reconhecimento público menor, mas representando a verdadeira abrangência da história das violas. Estas chegam aos dias atuais com possíveis indícios de uma nova fase histórica, quando se espera será mais considerada, estudada, preservada e reconhecida toda a Família das Violas Brasileiras. Esta nova fase deverá ser apontada no futuro a partir desta postulação científica apresentada por João Araújo, em 2021 (monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil)… Mas aí já são outras prosas.

Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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QUANTO MAIS COMPADRES, MAIS VERDADE?

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[…] Que responderá a isto o Caipora* Semanario, e a servil recova de, que he almucavar? Fallão ou não verdades os Redactores do Constitucional? São eles os desorganizadores, ou são os Caiporas, Semanário Cívico, e sua gente? Quem forma os Partidos aquelles ou estes? Citem-nos os Caiporas huma só linha da nossa Folha, em que não preguemos União e mais União […] E quantas vezes nos tem insultado os Caiporas? […] Basta como o Semanario, e Caiporas.

*Assim chamaremos, d’hoje em diante os inimigos do Brasil, e da Nação.

(Jornal O Constitucional, 03/07/1822, nº 37, p.1, grifos originais)

Viola, Saúde e Paz!

O recorte em destaque nunca teria sido considerado por Cornélio Pires, nem Antônio Cândido, nem Inezita Barroso. Na atualidade, não é decantado pelos maiores sociólogos, antropólogos, folcloristas e similares, nem por musicólogos e historiadores, ou pelos considerados maiores “papas” das violas dedilhadas… Só a lista de doutores que hoje em dia incrivelmente defendem o caipirismo como se fosse uma “cultura ancestral” é imensa e praticamente o Brasil inteiro parece concordar.

Em todo o mundo, por enquanto, só João Araújo parece ter coragem, capacidade e maluquice suficiente para apontar (e provar, cientificamente) que há, no mínimo, um grande equívoco neste “entendimento coletivo” tão defendido.

Por isso, não há por que acreditar em João Araújo, um maluco desprezado pela maioria dos violeiros, que tem pouquíssimos “compadres”, não é mesmo? E nem precisa acreditar, pois, diferente de todos os demais, o que fazemos é apresentar registros de época e contextos científicos que atestam o que dizemos. Centenas deles estão em nossos levantamentos: desprezar dados e criticar o mensageiro é comportamento típico de quem não tem como refutar a verdade dos fatos.

Dentre centenas de dados de época, o destaque aqui deste Brevis Articulus é a mais remota evidência (mas não a única) de que o termo “caipora” seria, em 1822, um apelido político, utilizado por apoiadores da monarquia absoluta.

Naquele mesmo ano, o pesquisador francês Saint-Hilaire teria ouvido outro termo parecido, na então Vila São Paulo: “caipira”, um nome que teria chamado bastante a atenção do professor pesquisador que, à época, demonstrava familiaridade com diversas línguas, entre elas o latim, o português e até o tupi / língua geral. Alguns anos depois, já de volta à França, e após bem referenciada pesquisa científica (pesquisa que checamos item a item, como fazemos sempre), o pesquisador concluiu que caipira não seria termo original indígena; e observou que seria também utilizado como apelido político, por pessoas do mesmo viés que destacamos, então chamados “miguelistas”. Tudo isso está bem apontado no livro Voyage dans les provinces de Saint-Paul et Saint-Catherine (publicação em francês de 1851, Tomo I, ver páginas 238-239, inclusive o rico rodapé).

Saint-Hilaire não teria feito o mesmo desenvolvimento que hoje fazemos, pois além de aparentemente não ter lido aquela ou outras matérias similares dos jornais, o termo “caipora” já apareceria corrompido de significado em dicionários a partir de meados da década de 1820, como ainda o é hoje em dia. Dicionários, algumas vezes, mais atrapalham que ajudam e assim parece que, até hoje, só João Araújo conseguiu perceber que “caipora” e “caipira” teriam o mesmo significado e propósito, quando foram criados, e pelo “homem branco”, não por indígenas. Não encontramos nenhum registro dos dois termos antes do início do século XIX mas são, no mínimo, “curiosos” os exercícios de “linguística intuitiva” que as pessoas acreditam, muito provavelmente por ser conveniente acreditar.

Um dos exercícios criativos mais vistos é que caipira teria algo a ver com “carpir” ou “capinar”. Seriam mutações bem interessantes: a partir de caa, do tupi/língua geral original, o “brotamento espontâneo” das letras “r” ou “i” em substituição a uma letra “a”. Mais interessante: teria sido apenas nesta palavra, posto que caa teria seguido em outras até hoje, como caapi (cipó amazonense) ou simplesmente teria sumido um “a”, sem brotar nenhuma outra letra, como em “capim” (que é como se fosse caapim).

O moderno “exercício livre” de etimologia, entretanto, nunca teria sido atestado por registros de época e estudos sérios (chegamos cerca de duas dezenas deles, anteriores a 1910). Mais incrível ainda é o fato de ser usado, e há mais séculos, o termo carpere (“arrancar, colher, arranhar”, em latim e italiano). Devemos acreditar que o latim teria influenciado menos a língua portuguesa que uma língua indígena?  

Mais interessante e estarrecedor ainda? Entre informações sugeridas num mesmo dicionário, o de Beaurepaire-Rohan, o Diccionario de Vocabulos Brazileiros (de 1899, o mais remoto registro conhecido), “caipira” ser termo paulista teria agradado, mas “carpir” ter raiz em carpere não teria agradado tanto… De que poderíamos chamar isso? Talvez, “pesquisa seletiva”?

Não sabemos o que é mais difícil acreditar: se durante cerca de 90 anos (entre 1820 e 1910) ninguém antes teria percebido que “caipira” teria algo a ver com “carpir”; como “brotaram letras” em apenas algumas palavras e noutras não; como pira teria variado de seu significado mais observado em tupi, relacionado a “peixe” e cai (que sempre teria existido) teria variado, seletivamente, de seu significado mais observado que seria relacionado com “fogo, queimar” ou, finalmente, se os romanos teriam sido influenciados pela língua indígena, séculos antes da Invasão chamada “descobrimento” do Brasil…

O povo parece achar cômodo aceitar essas possibilidades incríveis todas, ou qualquer uma delas, tanto faz (além de nós, não observamos quem questione publicamente). E estudiosos e famosos seguem defendendo a incrível explicação “etimológica” sem apresentar comprovações de época, naturalmente.

Por brasileiros, a mais remota citação escrita do termo caipira, claramente como um apelido político, inclusive assumido por quem escreveu (que, portanto, não se sentia ofendido pela alcunha), vimos no jornal paulista “O Tamoyo” (12/09/1823, nº 5, p.6).

Numa análise que, curiosamente, os chamados grandes pesquisadores não costumam citar quando tratam deste tema, sequer os ditos historiadores, contextos histórico-sociais apontam que a partir da Revolução de 1820, em Portugal, o regime Constitucional teve rejeições, tendo a primeira revolta (chamada “VilaFrancada”) em 1823. A rejeição teria tido bom número de adeptos até o fim da Guerra dos Dois Irmãos, em 1834. Xingar brasileiros contrários a D. Miguel faria sentido, muito mais com um apelido que remetesse a selvagerias indígenas, lendas de demônios, etc. Só que portugueses nunca falaram tupi, guarani ou língua geral: teriam inventado, pois, apelidos ou “xingos” próximos a nomes indígenas de fato, atestados desde o século XVI: curupira (entidade maligna que viveria nos rincões selvagens, segundo os indígenas) e caapora (indígena que viveria nos mesmos ermos, portanto, os mais selvagens).

Além do já citado Saint-Hilaire, o pesquisador Carl Martius (que também teria convivido, e muito, com os indígenas) apontou fontes e estudos sobre os termos indígenas originais, em seu Glossaria Linguarum Brasiliensium. É bom considerar que Martius escreveu este glossário em latim, português, “tupi” (entre outros dialetos indígenas misturados com a Língua Geral amazônica) e ainda comentários em alemão. Não, ele não era linguista ou etimologista, mas era cientista e sem dúvida entendia de línguas.

Será que precisamos lembrar a diferença que existe entre apontamentos de quem conviveu com indígenas, conhecia e estudava diversas línguas… e pessoas que, embora também estudiosos, não teriam convivido com as línguas, e lançam e/ou defendem teorias convenientes, séculos depois? Se nenhum deles for seu “compadre”, qual acha que teria mais propriedade para publicar sobre o assunto?

Ah, sim, é bom frisar, pois não vimos por aí: caapora teria sido relativo a indígenas, os mais selvagens, não a “qualquer ser humano” que morasse em “qualquer mato”… É bem criativa também este “empréstimo” inventado, muito aceito e repetido, posto que oportuno. A deturpação do sentido constaria, também em mais remoto registro, dentre colocações consideradas agradáveis do já citado dicionário de Beaurepaire-Rohan, de 1899. Linguisticamente? Sem querer ser rudes, mas talvez isto possa ser considerado uma aberração. Uma “forçada de barra” descarada, que precisaria de profunda pesquisa etimológica de dados concretos para ser provada, não apenas a opinião de uma pessoa… e o dicionarista, um militar carioca, não aponta ter estudado línguas indígenas, nem convivido com elas, além de ter lançado interpretações pessoais a maior parte do tempo sem citar fontes, sequer desenvolvimentos concisos. Entretanto, como já destacamos, algumas colocações suas agradam até hoje, e são selecionadas para serem repetidas, sustentadas; outras, como a citação às mesmas conclusões dos dois grandes pesquisadores estrangeiros citados (porém sem citar os nomes deles), parecem não agradar tanto…

Vasculhamos (e disponibilizamos) todas as citações ao termo “caipira” entre 1820 e 1910, não encontrando sequer uma de alguma possível “cultura”, só outros significados. Preconceito? Sim: a partir de 1850 teria iniciado pontualmente, junto ao significado de apelido político, mas não apenas contra pequenos produtores rurais paulistas, como interpretou Pires e dizem “amém” todos que o seguem em “coro cego”.

O contexto histórico-social aponta claramente que o preconceito seria contra toda uma classe proletária, por todo o Brasil chamada pejorativamente de “caipira”, além de outros termos regionais de igual valor, sendo que nenhum dos outros termos é considerado nome de uma “cultura” até hoje. Importante: apesar de sugerido assim em dicionários desde 1889, “caipira” nunca foi termo utilizado apenas em SP… e dezenas de matérias de jornais comprovam isso. Duvidou? Confira gratuitamente, pela internet, o bom acervo da Biblioteca Nacional Digital, e dos jornais Estadão e Folha de São Paulo. Nós conferimos.

É bom lembrar, em tempos de memória histórica tão fraca (ou deturpada, talvez?), que o que chamamos aqui de “proletários” (quer dizer, trabalhadores mais simples, “chão de fábrica”) abrangeria também pretos e até alguns estrangeiros. Em SP, por causa do Ciclo do Café, haveria mais proletários ligados à atividade rural, realmente… Mas o pejorativo não se aplicaria a pequenos produtores. É bom lembrar também que a maioria dos brasileiros seria rural, a divisão de classes estava apenas começando e não faz sentido antes da Revolução Industrial. Pergunte ao seu pesquisador de estimação: mesmo os defensores do caipirismo deveriam confirmar isso, se não for inconveniente por algum motivo.

Imaginar que teria existido uma cultura ancestral “caipira”, que seria uma “raiz” brasileira, é genial, criativo, agradável e lucrativo, mas não se atesta. É incrível, entretanto, que tantos doutores não admitam isso publicamente, e, ao contrário, gostem até de se autodeclarar “caipiras de fato”… Por que?

Consideramos genial a interpretação lançada e defendida arduamente por décadas por Cornélio Pires pelos aspectos como os seguintes:

– com excelente e até precoce visão de “marcas”, teria percebido que “caipira” seria um nome / marca forte, e que passaria facilmente como “original indígena”. Desta forma, poderia alegar ligação com os mais remotos tempos brasileiros, e, portanto, de uma “cultura ancestral”;

– ao recontextualizar um preconceito realmente existente, de que “caipiras” seriam perseguidos e menosprezados, Pires não apenas levantou o moral de uma classe simples, mas também atraiu a simpatia de outros, das demais classes sociais, dada a nobreza da causa. Esta “isca” foi mordida e cuspida fora por um “peixe grande”, o então já grande vendedor de livros Monteiro Lobato, o único além de nós que parece ter percebido a engenhosa estratégia de Cornélio e tentou combatê-la, posto que ameaçava suas vendas de livros. Não, não teria sido por puro preconceito de Lobato, embora eugenista declarado (como se imagina muito), mas por óbvias motivações financeiras. A prova é que Lobato, que chegou a afirmar que “meu Urupês veio estragar o caboclo de Cornélio”, calou-se a partir de quando se tornou sócio de Amadeu Amaral, primo e mentor de Cornélio Pires, em uma editora que então passaria a publicar livros dos dois grandes vendedores. Afinal, “se vende bem, que mal tem?”… e assim o “preconceito” de Lobato teria acabado.

–  Cornélio aponta ter tido plena consciência de que podia lançar sua reinterpretação sem se preocupar com fundamentações científicas, pois suas publicações eram artísticas: no livro As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho chegou a afirmar que seus registros tinham pretexto de serem “casos e mentiras”, e que lexicógrafos (elaboradores de dicionários) é que deveria “pescar regionalismos de verdade” neles.

– outra grande “sacada” de Pires foi induzir a ligação com o divino, com a religiosidade católica fervorosa brasileira, ao apontar recontextos que remeteriam aos primeiros tempos do Brasil-Colônia, como danças. Neste sentido, colaboram lendas como as do chamado “São Gonçalo”, que além de nunca ter sido santo, mas apenas beato, desde o século XVI é citado via diversas lendas. Pesquisamos alguns relatos sérios sobre a interessante vida de Gonçalo, onde não encontramos nenhuma citação de atividade musical pelo beato, como o famoso Sermão de São Gonçalo, do jesuíta português Antônio Vieira (estimado ao ano de 1690). Entretanto, no Brasil há uma Dança de São Gonçalo praticada não só na época de Pires, mas até os dias atuais: esta dança específica tem registros de ter começado só em 1621, em Portugal, mas no recontexto genial teria sido sugerida como ligada aos primeiro jesuítas por um (!) texto que citava um outro tipo de dança, sem qualquer citação a Gonçalo, realmente registrada por Fernão Cardim em 1584. Em contexto histórico-social “não lembrado” pelos seguidores de Pires, danças similares teriam existido, como celebrações de vitórias em guerras importantes e, especificamente em Portugal e na Espanha, desde a expulsão dos mouros, em 1492. Boa pesquisa histórica sobre danças, sugerimos ler Curt Lange, Danças do período Colonial…   

É genial ou não? Aponta que Cornélio teria plena consciência do que estava a fazer: defender uma “cultura inventada”, perseguida e menosprezada, ajudou muito nas vendas. Ele só talvez nem imaginasse que, com o passar dos anos, tantos outros “compadres” seguiriam suas reinterpretações livres, que agradam muito até hoje, tanto para elevar o moral de quem não gosta de ler, quanto de religiosos, quanto de quem quer faturar com a história.

Prova-se ser boa estratégia para vender livros, aulas, palestras, defender teses em faculdades e até candidaturas, como teria sido o caso de Antônio Cândido, sabia? Foi. E foi por SP, exato quando defendeu seu doutoramento. E utilizou ainda, em soma, outras interpretações lendárias antigas, como a de que os paulistas teriam DNA superior e que os bandeirantes teriam sido grandes heróis. Achamos essa estratégia bem nojenta, mas o fato é que agrada a alguns egos paulistanos desde a década de 1930, então…

É tudo mais ou menos como a história de “Papai Noel”: uma criativa interpretação livre, sustentada e “vendida” por décadas, que agrada a muitos. Apenas uma história, que embora genial, foi criada para alavancar vendas, agradando e sendo multiplicada por afinidades de muitos, principalmente interesses comerciais.

Não é nada ilegal, entretanto, pois somos um país capitalista. E temos liberdade de Credo também, portanto, cada um pode “crer” no que quiser. E é permitido vender muito para quem resolver colocar fé numa boa história. Tudo certo, portanto. E faz sentido, afinal, o caipirismo teria sido criado e sempre foi utilizado para alavancar algum lucro: Cornélio vendeu muitos livros, palestras, apresentações, discos… Antônio Cândido, tentou ser eleito… O estilo chamado “sertanejo universitário”, pegando carona em algumas características, vendeu e ainda vende muito… Inezita tinha um programa de TV para alavancar… Diversos “caipiras” atuais, embora moderníssimos, tem suas aulas de viola, livros, apresentações, palestras e outras coisas para vender.

É bom lembrar que a ideia genial hoje contempla ainda que, para ser “caipira”, basta alegar qualquer ligação com o interior (quem nunca a tem?), ou mesmo só afinidade, e estar-se-ia pronto para começar a faturar e a defender a causa nobre.

Já os que aparentemente não teriam nada “para vender”, faturam em satisfação dos egos, como nobres participantes ou apoiadores de uma “cultura oprimida e que não podem deixar desaparecer”… É estranheza em cima de estranheza: afinal, se é “ancestral”, ou seja, antiquíssima, por que teria chance de sumir? Que raiz rasa seria essa?

Felizes também estariam por não precisarem ler, pesquisar e refletir muito (a tradição oral resolve e, afinal, são diversos “doutores” que defendem). Ler e refletir dá muito trabalho. Também faturam por conseguirem muitos “compadres e comadres”, gente simples, todos “humildes como eles mesmos”, receptivos, amigos, “irmãos caipiras” por praticamente todo o Brasil.

É outra característica da genialidade da ideia, pois realmente pode-se dizer que ainda há pelo Brasil uma classe “interiorana”, pacata, trabalhadora, ligada ao ruralismo, de muito valor, mas com pouco reconhecimento público. Só que antes, esta classe teria sido a esmagadora maioria, assim como a agricultura era desenvolvida, na prática, por escravizados sequestrados da África. E antes, “mais antes”, que seria a verdadeira cultura ancestral, as características eram praticamente todas dos indígenas, que não eram, portanto, “caipiras”, na verdadeira “raiz” histórica brasileira.

Para se fazer parte hoje da classe verdadeira, o faturamento possível é conquistado com muito suor, tem que pegar na enxada de sol a sol, não apenas se autoproclamar “caipira”. Imaginar que o passado teria sido exatamente como o presente é equívoco muito básico, principalmente se apontado por estudiosos, por isso entendemos que não seja simples equívoco, mas que muito provavelmente haja muito de conveniência, de manipulação da verdade nisso.  

Os que ignoram a verdade estão felizes e os que faturam, quer ignorem conscientemente ou não, estão mais felizes ainda… A interpretação tem várias “meias verdades” em paralelo… Está tudo certo legalmente… Então, por que questionar?

Bom, quem estuda um pouco de História e Ciência percebe que a função do pesquisador sempre foi questionar e apontar verdades atestáveis, independentemente de lucros e outros interesses. E não há problema algum em praticar Ciência, afinal, o Natal também é uma história agradável criada e sustentada por milhares: ninguém deixa de faturar se apontamos que, na verdade, o Aniversariante não teria nascido de fato naquela data, e que é estranho que se defenda que todo mundo mereça ganhar presentes se o aniversário é Dele… não é mesmo? Então, sem problemas: podemos relatar o estranho caso do bom velhinho que rouba a cena do Filho do Homem, todo mundo sabe que é um embuste comercial para alavancar vendas e assim segue o andor.

Entende-se, como maior motivação, que o Brasil hoje precisa mais do que nunca de práticas científicas: leitura, estudar e refletir sobre a História, esclarecimentos de equívocos históricos, verdades demonstráveis por dados (e não apontadas apenas por teorias e entendimentos, mesmo que estes sejam sustentados por pessoas importantes).

Nós “temos fé” em dados históricos e pesquisas científicas honestas, e na função histórica da Ciência. Acreditamos que interesses capitalistas, ególatras e corporativistas normalmente costumam ser colocados acima de quase tudo, sobretudo da Ciência, e que podem embotar, mascarar ou até iludir entendimentos. E que a maioria dos brasileiros não tem hábito de ler, não se preocupa em checar fontes e dados, preferindo acreditar em histórias agradáveis, ainda mais se muitos “compadres” também acreditarem.

Quanto mais “compadres” apoiarem, mais “verdade” seria alguma coisa? É o que parece, mas na verdade mesmo não é assim, automático. Muitos podem estar enganados e inocentes (ou quase inocentes) no processo. Estes inocentes principalmente, mas também toda a sociedade, merecem ter a oportunidade de saber. É por isso também dever cívico e moral, além de científico, apontar equívocos e confrontar com verdades atestáveis.

O que vão decidir fazer depois de saberem a verdade, em parte é problema de cada um, mas em parte é problema de toda a sociedade. Além disso, há outros embustes semelhantes por aí, cuja mesma forma de pensar e agir corretamente pode e deve ser aplicada. 

Quando é algo relacionado ao “divino”, mais ainda se deve procurar dados e apontamentos claros pois, afinal, somos um país de fé: de muitas delas… Mas aí já são outras prosas. Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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1 Nov, 2023

NÚMERO DE CORDAS É DOCUMENTO?

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Viola, Saúde e Paz!

Entre as ainda não consensuais considerações da Organologia (Ciência que estuda a classificação dos instrumentos musicais), sobre o que diferencia ou não os cordofones, está o número de cordas. Ou seja: ainda não haveria um consenso que determinasse diferença entre, por exemplo, uma guitarra (ou “violão”) de seis, de sete ou de doze cordas. Mesmo informalmente, muitos estudiosos dentre os que pesquisamos nas principais línguas ocidentais desde aproximadamente o século XV, referenciariam estes três tipos de instrumentos simplesmente como “guitarras”.

Como consideração inicial, já apontamos que entendemos, em nossa experiência como instrumentista e arranjador, que há clara diferença de sonoridade entre os três modelos citados (e, no caso do violão 7 cordas do choro brasileiro, um destaque especial pela forma mais usual de execução, de linhas melódicas “recortando” acordes e melodias principais). E, também, que a classificação se aponta clara pelas nomenclaturas consolidadas destes, embora nomenclatura ainda não seja tão estudada pelos pesquisadores quanto nós, atrevidamente, nos pusemos a pesquisar.

Para uma luz sobre o assunto, inicial ou complementar, sugerimos o bom doutoramento de Adriana Ballesté: Viola? Violão? Guitarra?: proposta de organização conceitual de instrumentos musicais de cordas dedilhadas luso-brasileiras do século XIX, de 2009. Nele se encontra um bom histórico dos estudos de classificação ocidentais, além de ser, em si, uma nova proposta de classificação, que levaria em conta outros aspectos, visões e Ciências, como o que ela chama de “terminologia” (ou seja, os nomes e descrições) e que concordamos em grande parte.

  Outra consideração nossa, mais importante, é que se não considerarmos número de cordas como diferenciador de instrumentos (em paralelo aos nomes dos mesmos, em diferentes línguas), seria difícil entender alguns particulares da História deles (e da História que eles representam). É o que chamamos, em nosso livro A Chave do Baú, de “tesouros” que outros pesquisadores ainda não teriam descoberto antes de nós.

Para começo do começo, seria difícil diferenciar os mais remotos cordofones com braço que se tem conhecimento: em formato e número de cordas (três), praticamente só se diferencia um pan-tur sumério, uma kethara assíria e um nefer egípcio pelos nomes (informações que conferimos em dezenas de fontes, e sugerimos conferir no ótimo The History of Musical Instruments do musicólogo alemão Curt Sachs, 1940). Também pelo número de cordas pudemos atestar um padrão de evolução que teria se repetido por séculos em diversos cordofones ocidentais, padrão que detalhamos recentemente em outro Brevis Articulus aqui: a partir de três, depois quatro, cinco (cordas ou ordens de cordas) e assim em diante até se consolidarem em seus formatos atuais, também teria sido a história dos alaúdes, de friccionados por arco (como violas, depois violinos), das guitarras e outros.

Mais remota citação a respeito, seria das kitharas gregas, da região da Trácia, que ali pelo século VIII aC. já teriam sete cordas. Foram citadas no século I aC. na Eneida do poeta romano Virgílio (em latim, como citharas) e depois “recitadas” por São Isidoro de Sevilha, já no século VI da era Cristã, segundo o Etymologiarum sive Originum de Wallace Lindsay (1911, p.157). Isidoro, que também já rascunhava alguma classificação ou diferenciação de instrumentos à época, apontava, entre outras diferenças, que citharas teriam sete cordas e saltérios, dez cordas.

Um capítulo muito importante da História dos cordofones europeus, pelo que pesquisamos, teria sido até antes de nós pouco desenvolvido, muito provavelmente pela não consideração a diferenciações por número de cordas: o grande capítulo das guitarras espanholas, entre os séculos XVI e XIX.

Primeiro, que instrumentos chamados guitarra na península hyspanica (segundo Juan Bermudo, em seu Declaracion de los Instrumentos Musicales de 1555) teriam 4 ordens de cordas, a saber 3 ordens duplas e uma corda singela, solteira, sozinha. Percebe-se que os instrumentos espanhóis, à época, espelhavam instrumentos árabes, com mesmas armações de cordas, restando o formato de caixa como diferenciador do que seria “europeu” (que teria escolhido aplicar o formato com cintura e fundo plano). Esta é uma separação por contexto histórico óbvio, vez que árabes seriam invasores, como já teria citado no século XIV o padre poeta espanhol Juan Ruiz em seu longo poema Libro de Buen Amor. Assim, guitarras espelhavam manduras e vihuelas espelhavam alaúdes, estes últimos com 11 cordas em seis ordens (5 duplas, uma singela).

Entretanto, caracterizando separação ainda maior, a partir do século XVII os espanhóis resolveriam abandonar o uso de guitarras pequenas e também de vihuelas (dedilhadas) em favor de uma nova guitarra, então com cinco ordens (que depois ganharia o tratamento moderno atual, de “guitarra barroca”). Como se percebe, o nome guitarra continuaria o mesmo, restando como diferenciador apenas a armação de cordas e o tamanho. Se não considerarmos o número de cordas como diferenciador, como entender, como se aprofundar no estudo, quando não houvesse desenhos e esculturas bem claros?

E a situação se repetiria mais tarde, a partir do século XIX (após fase de transição de cerca de 70 anos), quando novamente os espanhóis optariam por manter o nome guitarra, mas abandonando a armação antiga (já então de 10×5, ou seja, 5 pares de cordas) para lançar a guitarra moderna, com seis cordas simples. Estas viriam a tomar o apelido de “violão” pelos portugueses (até porque, no desenvolvimento, acabariam por assumir caixas um pouco maiores), mas à época, para espanhóis e depois para europeus em geral menos portugueses, teriam sido todas “guitarras”, e desde o século XVI ou até antes. As diferenças seriam de tamanho, no começo, mas depois praticamente só as armações de cordas diferenciariam todas aquelas guitarras.

Um último exemplo, que também só nós defendemos por enquanto, viria exatamente das guitarras chamadas “barrocas” abandonadas pelos espanhóis, as já de armação 10×5. Estas seriam chamadas simplesmente de “violas” pelos portugueses, num contexto histórico-social bem claro, de inimizade ou disputa com os espanhóis, adversários históricos dos portugueses. Deste contexto, e da análise de mais de uma dezena de evidências em centenas de fontes em cerca de três séculos, concluímos que, na verdade, não existiriam violas dedilhadas até a consolidação do violão, no século XIX, pois “viola” teria sido apenas um nome utilizado pelos portugueses para outros instrumentos já existentes. Para conferência destes dados, entendemos que os trabalhos Instrumentos Musicais Populares Portugueses (de Veiga de Oliveira, publicado em 1964) e A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789), de Manuel de Morais (publicado em 1985) sejam suficientes, mas é preciso analisar com atenção, pois diversos estudiosos citam estes mesmos trabalhos, mas não teriam observado a falta de instrumentos físicos que correspondessem às chamadas violas dedilhadas portuguesas citadas em épocas anteriores ao século XIX. O que existiu, na verdade, foram outros instrumentos chamados de “viola” pelos portugueses (alaúdes, vihuelas, guitarras); todos com descrições bem claras, inclusive que eles mesmo reconhecem, apontam e nomeiam. De “violas”, diferentes daqueles outros instrumentos, não se conhecem registros, pelo menos até…

Sobraria então para nós, os únicos a observar, apontar “a partir de quando, então, pode-se afirmar que teriam surgido as violas dedilhadas?” (pois elas, sem dúvida, resistiram e hoje são realidades, e são hoje claramente diferentes de guitarras espanholas… principalmente, pela armação de cordas!).

Bom, as mais remotas evidências observamos em outros dois trabalhos também muito citados, mas que não teriam sido vistos como os vemos: o método Liçam Instrumental da Viola Portuguesa, de João Leite Pita da Rocha, de 1752, que atesta que as violas portuguesas daquela época seriam, nada mais, nada menos, que guitarras espanholas, posto que o método é praticamente a tradução para português, item por item, da parte das guitarras de famoso método de Juan Amat, estimado ao ano de 1596, cujo extenso título começa por Guitarra espanhola e vandola…  O método “copiei, traduzi e colei” de Rocha também nos traria, numa rara inserção própria (que parece que a maioria não teria percebido), a informação de que as violas portuguesas armariam, sim, com cinco ordens duplas, como as guitarras espanholas, porém duas destas ordens seriam triplas (diferente, portanto, das espanholas).

Esta informação seria corroborada por outro método português, o Nova Arte de Viola, de Manoel da Paixão Ribeiro, de 1789. Neste, um desenho de uma viola portuguesa então com a citada armação 12×5 (as duas ordens triplas seriam as superiores) e a informação de que haveria as opções de uso de cordas de tripa (como sempre foram as das guitarras espanholas) e/ou também de cordas metálicas, “de arame”. Estas duas características (número um pouco diferente de cordas e o uso delas em versão metálica) seriam as mais remotas evidências concretas de diferenças entre guitarras espanholas “barrocas” e violas portuguesas.

Como se vê mais esta vez, se não considerarmos número de cordas como diferenciador válido, este capítulo também fica difícil de perceber (e parece que a maioria dos estudiosos realmente não teria percebido, pois seríamos os primeiros a ter observado o detalhe). E seria capítulo importante se entenderem, como nós, que seriam as mais remotas indicações de origem das violas dedilhadas, como instrumentos físicos diferenciáveis, não apenas como nome genérico aplicado a vários outros instrumentos.

Após a consolidação do violão em seis cordas singelas, as violas “antigas guitarras barrocas” simplesmente seguiriam como eram, mas então tornando-se instrumentos diferenciáveis, únicos: não por nova criação ou grande mudança, mas porque as guitarras teriam mudado. Como evidência, observa-se que após o desenvolvimento e consolidação, sobreviveriam até os dias atuais, modelos ativos com 10×5 e outros com 12×5 na Família das Violas Portuguesas, explicáveis exatamente pela observação do histórico de número de cordas em registros.

Teria havido ainda, durante o citado período de transição de cerca de 70 anos (observamos e coletamos registros a respeito entre 1760 e 1826), também guitarras de 12 cordas em 6 ordens duplas, exatamente no começo do retorno às seis ordens (que teriam sido usados por alaúdes e antigas vihuelas, como citamos no início). Ora, estas guitarras 12×6 também seriam chamadas de “violas” pelos portugueses, e algumas ainda sobrevivem em museus, mas o tipo de armação teria caído em desuso, muito provavelmente pela ascensão, a partir também do mesmo século XIX das guitarras portuguesas, também 12×6. Nunca é demais lembrar que o período histórico (séculos XVIII até o início do XIX) remete às fases da Revolução Industrial, que trouxe grandes mudanças sociais à toda a Europa da época, e aos quais os instrumentos populares sempre reagiram, na História.

Isso, em Portugal, mas não no Brasil: aqui fenômeno diferente aconteceria (por isso apontamos a influência das guitarras portuguesas, que por aqui não têm o mesmo contexto que em Portugal). As 12×5 é que praticamente estão desaparecidas, representadas pelas aqui chamadas Violas de Queluz do século XIX, só ocorrendo por peças de museus e colecionadores, e praticamente só no Estado de Minas Gerais. Já as Violas 12 Cordas (em seis duplas, ou seja, 12×6) se consolidaram como um dos modelos da Família das Violas Brasileiras, sendo hoje tocadas e fabricadas em vários Estados do país.

Outra particularidade brasileira, e também contextualização inédita nossa, é que a Família das Violas Brasileiras apresenta diversidade muito maior que a Família Portuguesa, em tamanhos, formatos, armações de cordas e outros detalhes (condizente com o tamanho e diversidade cultural brasileira). Graças à técnica metodológica que desenvolvemos, conseguimos contextualizar todas as características das violas dedilhadas conforme a História dos Cordofones europeus, o que explica o conjunto agrupado aqui em torno do nome forte adotado pelos portugueses (“viola”), lá num contexto de nacionalismo (rejeição aos espanhóis e aos árabes), aqui por simples continuidade de uma língua comum. Só que aí já não é mais apenas prosa de números de cordas: aí são outras prosas…

Muito obrigado por ter lido até aqui, e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, do qual elabora aprofundamentos nos Brevis Articulus às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

Principais fontes, centralizadoras das centenas pesquisadas:

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG / Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João. A Chave do Baú. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

FERREIRA, João de Araújo. Chronology of Violas according to ResearchersRevista da Tulha[S. l.], v. 9, n. 1, p. 152-217, 2023.

Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistadatulha/article/view/214286

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