20 Jul, 2023

MACHETE: ORIGEM DO NOME DA VIOLA DOS PRETOS

MACHETE: origem do nome da viola dos pretos

Seguindo nos aprofundamentos das pesquisas apresentadas no livro A Chave do Baú, neste Brevis Articulus apresentamos recentes descobertas, que temos várias razões para acreditar que seriam inéditas, sobre as “machetes” (pronuncia-se “machêtes”, como se tivesse acento): cordofones pequenos, cinturados, de fundo plano, origens do atual modelo Viola Machete: as violas que teriam os registros mais antigos, numerosos e mais desprezados da Família das Violas Brasileiras. Sempre lembrando, porque já começam a utilizar sem citar nosso nome, uma “Família” que é contextualização científica pioneira e atrevida nossa, nessa ainda terra ainda tão tupiniquim onde até bem pouco tempo praticamente só se conhecia o modelo Viola Caipira.

Nossa primeira motivação foram algumas “achâncias” no sentido que “machete” teria algo a ver com “maRchetaria”… Para ser honesto, à primeira instância, uma quase “desmotivação”: pessoas que não percebem um “R” a menos numa palavra se aventurarem a tentar apontar origens, como dito, na base da “achância”. Melhor seria, que ficassem caladas do que dar atestado de que não estão nem um pouco acostumadas a pesquisar… Neste ponto, compartilhamos uma mesma dor com linguistas, pelos “achistas criativos”, um verdadeiro cancer.

Duas outras constatações felizmente nos levaram a querer transformar este verdadeiro e muito azedo “limão” numa doce “limonada”: primeiro, que “machete” e “marchetaria”, juntos, nos lembraram o grande luthier baiano Rodrigo Veras, mestrando, um dos mais importantes nomes das Violas Machetes atuais e que sempre nos socorre com fontes e informações – a ele, inclusive, dedicamos este Brevis Articulus e as novas descobertas.

Em segundo lugar, porque entendemos que ainda não teria sido apontado, de forma séria e embasada, as mais prováveis origens do termo “machete” enquanto nome de instrumento musical. Não é difícil de entender: estudiosos de Portugal – onde “machete” e “machinho” já seriam utilizados pelo menos desde 1712 (ver BLUTEAU, nas referências ao final)-, raramente citam as nossas machetes brasileiras (ver Vieira, 1899; Veiga de Oliveira, 1964; Morais, 2011) – com menção honrosa a umas poucas, citadas num contexto de estudos sobre o cavaquinho (Nuno Cristo, 2019 – vai que ele um dia resolve ler aqui, né?).

Já os poucos estudos sobre nossas machetes, curiosamente teriam focado nas atuais Violas Machetes baianas, a partir do início do século XX (ver Wadley, 1980; IPHAN, 2006; Souza Lima, 2008; Pinto & Graef, 2012). Estes últimos, até citam vez ou outra as machetes portuguesas e alguns outros registros que não seriam exclusivamente na Bahia (Camara Cascudo e Maynard Araújo, [1954]) – mas observa-se nas referências apontadas em todos estes estudos que não teriam sequer lido um significativo número de citações por várias partes do Brasil, principalmente no século XIX. Veja, por exemplo, citações que envolveriam pequenos cordofones em batuques, que levantamos em nossa monografia: Lindley (1806, p. 191); Freyreiss ([1815], p. 542); Koster (1816, p. 241); Tollenare ([1817], p.137); Pohl ([1819], p. 608); Spix & Martius (1823, p.294); Neuwied (1825, p.33: p.91); Walsh (1830, v2, p.137); Debret (1839, v2, p. 128); Rugendas (1835, p.25); Mattos, 1836, p. 37; Gardner (1846, p.49); Saint-Hilaire (1848, v2, p. 60); ([Gonzaga], 1863, p. 185); Wells (1874, p.198).

Sim: nós não brincamos quando o assunto é levantar referências… Observe que foram pessoas de línguas, culturas e formações científicas diferentes que, por várias regiões do país, durante várias décadas, teriam feito descrições muito semelhantes. Talvez por não tiverem sido feitas boas traduções antes, estas informações tenham se perdido no tempo – ou, talvez, pela maior manifestação musical dos primeiros séculos no país (como já foi dito por outros) ter vindo dos pretos – será que ainda existe preconceito? Também faz diferença se for considerado apenas um ou outro registro, separadamente (que é muito observado que teria sido feito).  

Nós retraduzimos tudo que conseguimos a partir dos originais (em inglês, alemão, francês) e contextualizamos com olhar musicológico e outras coerências. Os instrumentos são citados, a maioria das vezes, com variações próximas a “guitarra” (dependendo da língua), mas há quem tenha descrito como “bandolim” ou “banjo”, por exemplo, que seriam instrumentos de tamanho menor conhecidos pelos estrangeiros, mas sem registro de terem existido por aqui, à época. Alguns chegaram mesmo a grafar “viola” (que era como os portugueses chamavam), assim como “machete” ou “machette”. A melhor que achamos foi guitarre de poche (“guitarra de bolso”, em francês). Antes, estes instrumentos teriam sido traduzidos como “cavaquinho” ou “violão” – instrumentos que nem existiriam antes de 1820… Sobre isso, assim como “maRchetaria”, nem vamos comentar.

O que interessa é que todas as descrições eram de atividades des pretos em grupos onde se tocava, cantava e dançava – e onde termos próximos a “batuque” e “lundu” apareceram várias vezes, além de “fandango” (que era o que alguns entenderam que seria parecido, na Europa). Alguns estrangeiros interpretaram equivocadamente que seriam danças distintas, com base em algum pequeno número de amostras (e de conhecimento) que tiveram. Mais importante, além de considerar o nível de conhecimento musical que cada narrador teria, é analisar um bom conjunto de registros, por vários contextos históricos.

As machetes (ou “machinhos”, ou “machetinhos”) não poderiam ter surgido (pelo menos) desde o século XVIII em Portugal para depois reaparecerem milagrosamente no século XX no Brasil. Não é assim que funciona com cordofones populares – pelo menos, não é o que temos visto desde os textos em latim mais antigos que conseguimos traduzir, de dois séculos antes de Cristo.

Na verdade, ao analisarmos pelo espectro mais amplo (de regiões e datas), percebemos que pequenos cordofones cinturados, de fundo plano e com poucas cordas, chamados guitarras, teriam surgido na península hispânica, pelo menos desde o século XVI (ver Bermudo e Amat) como concorrência a pequenos cordofones árabes (“pequenos alaúdes”), que eram periformes, com fundos abaulados; estes últimos eram chamados mandurras (que remete ao árabe pan-tur) e/ou bandurrias (uma espanholização). Árabes (ou “mouros”) foram invasores que desde o século VIII teriam levado seus cordofones para o território europeu – este é o contexto histórico-social que justifica porque, com o tempo, surgiram instrumentos similares, mas com caixas diferentes (cinturadas), que ganharam a preferência dos europeus.

Um contexto histórico-social também explica porque, em 1822 um italiano (e só ele), em Lisboa (e sem nunca ter vindo à Colônia), citou que um preto brasileiro (Joaquim Manoel) teria tocado (e até inventado!) um “cavaquinho” – este que teria sido uma petite viole française (“pequena viola francesa”). Outros, que efetivamente teriam visto Joaquim tocar (e muito bem) chamaram o instrumento de guitarre (em francês), bandurra ou viola.

Ora… “viola francesa” (ou “violão”) são nomes utilizados pelos portugueses que não tem qualquer fundamento quanto à procedência das guitarras: estas seriam espanholas, e na época já teriam feito grande sucesso com 5 ordens de cordas (as chamadas “guitarras barrocas”) e depois evoluído ao modelo com 6 cordas simples, de mais sucesso ainda (como é até hoje, pelo mundo).

Não é que os portugueses não soubessem disso: é que eles não queriam “dar palco” a nomes de culturas árabes, nem espanholas: “viola” (já utilizado na península itálica) foi o nome que escolheram, se agarrando só a ele para todos os cordofones portáteis com braço – a solução que satisfez o (em nossa opinião) até bonito nacionalismo (ou patriotismo) português.

Em outro caso similar, “cavaquinho” também teria agradado mais ao patriotismo pois, à época, “machete” remeteria também a um instrumento típico dos pretos (segundo diversos anúncios de jornal, de várias regiões do Brasil, no século XIX – disponíveis para consulta pela Biblioteca Nacional Digital). Não: portugueses não “dariam palco” a um nome então “mais brasileiro”, e pior ainda, instrumento de pretos… E assim surgiu o cavaquinho, puramente a partir de um nome: curiosamente com seis cordas, no início (como a “viola francesa”), depois passando também por cinco cordas (Regimento dos Ofícios de Guimarães, 1719) e que hoje se consolidou, tanto por lá quanto por cá, em 4 cordas. Os portugueses não abandonariam completamente o nome “machete”, que também sobrevive, junto com “braguinha”, “rajão” e outros – todos, instrumentos muito similares e é aí que ocorreu o equívoco de estudiosos, por pensarem que aqui no Brasil também seriam equivalentes “cavaquinho” e “machete”. Não seriam e não são.

É também pelo contexto histórico-social diferente que nossas machetes teriam se desenvolvido, muito provavelmente a partir da mesma época (início do XIX), com 10 cordas em 05 duplas – a armação mais famosa entre violas (mas originária das guitarras espanholas, chamadas “viola” pelos portugueses) e bem diferentes do cavaquinho e até das machetes mais antigas. Diferente também das guitarras, das bandurrias…  Nossas machetes são particulares – e talvez só os charangos, famosos por toda a América Latina, usem a mesma armação em instrumentos pequenos (não pesquisamos isso ainda).

Percebe a minúcia? Nós, bem diferentes dos portugueses, não temos o mesmo tipo de nacionalismo (se é que temos algum tipo). Tínhamos muitos pretos (muito mais do que brancos), chamando os instrumentos de “machete” (que eram também “viola”). Quando surgiram “cavaquinhos” portugueses, diferente deles os brasileiros não teriam tanta tendência a usar nomes genéricos – a solução popular surgida aqui então foi separar dois instrumentos diferentes de alguma forma, o que, no caso, foi pela armação de cordas. No fundo, no fundo, todos seriam “pequenas guitarras” (até o ukulelê hawaiano): cordofones cinturados pequenos, com pequenas diferenças de acordo com as culturas e seus respectivos contextos histórico-sociais.

A esta altura, dá pra entender porque se observam em escritos antigos nomes como “guitarrilha”, “bandurra”, “bandurrilha”… certo? Seriam instrumentos pequenos…  E tivessem sido tocados por um preto, brasileiro? Será que poderiam ser considerados “machetes” também? Isso nenhum estudioso até hoje teria apontado. Estes nomes seriam de instrumentos tocados por um “poeta”, segundo textos próprios e/ou alegados a Gregório de Mattos, o “Boca do Inferno” (que viveu aproximadamente entre 1636 e 1696). Ele é considerado “apenas poeta”, segundo a maioria dos atuais estudos sobre a História do Brasil… Não músico, sequer “violeiro”. Realmente, não se conhece registro literal do nome “machete” no tempo em que ele viveu. Outros pretos sensacionais e brilhantes teriam sido Euzébio de Mattos (irmão de Gregório), Padre José Maurício Nunes, Joaquim Manoel – todos, com registros de que teriam utilizado “violas” – teriam sido “machetes”?

A mais remota citação que conseguimos descobrir até agora de “machetes e machinhos” (que seriam “violas pequenas”) aponta para 1712, em Lisboa, por Bluteau (como já dissemos). Em terras brasileiras, “violas ou machinhos” teriam sido observados a partir de 1744 e “machete de tocar”, desde cerca de 1790, em documentos de alfândega (ver Pereira, 2013). Violas, entretanto, já teriam tamanhos variados desde 1572, pelo Regimento dos Violeiros de Portugal (Morais, 1985) – e “violas pequenas” já constariam desde o ano de 1700, segundo os mesmos documentos de alfândega do Rio de Janeiro.

De onde teria vindo este nome “machete”, que Veiga de Oliveira, em 1964, teria citado que “… parece ser uma palavra arcaica, caída em desuso, e subsistente nas Ilhas e no Brasil”? Resolvemos pesquisar…

Começando pelo uso geral: “machete” seria também o nome de um facão ou marreta (como aponta para um diminutivo, preferimos dizer que seria um “machado pequeno”). Teria vindo de “macho”, masculus em latim, segundo a maioria dos etimologistas, que só apontam significado como “instrumento musical” em Português. Nos textos em espanhol de nosso banco de dados, realmente não consta – mas faz sentido, pelo que já dissemos: eles abandonaram as pequenas guitarras (e as vihuelas, maiores) a partir do século XVII, em função do investimento nas “novas guitarras”, de tamanho intermediário e com 5 ordens.  

Acabamos por encontrar algo pouquíssimo estudado em edição do ano de 1788, do livro Allgemeine geschichte der Musik (“História Geral da Música”), do musicólogo alemão Johan Nicoulau Forkel (1749-1818). Forkel é considerado um dos fundadores da musicologia moderna e, por isso, já tínhamos pesquisado antes uma edição deste livro, do ano de 1801 – mas só na edição mais antiga constaria… MACHOL. Forkel teria pesquisado este nome em várias fontes (que não tivemos como checar, pois seriam manuscritos) e não teria chegado uma conclusão – apenas que, sem dúvida, teria sido um instrumento musical e que equivaleria a SCHALISCHIM (mas já foi algo importante e fundamentado). Entre as fontes dele, algumas teriam apontado que equivaleria também a MACHALAH, hebráico (bem mais parecido com MACHOL)… A ligação com língua árabe fez acender, para nós, uma luz – já consegue perceber? Não? Então sigamos…

Fuça daqui, fuça de lá, encontramos alguns poucos entendimentos – e diferentes: Curt Sachs, em 1913, teria entendido que MACHOL […] wird heute nicht mehr als Name eines Instruments (“não é mais considerado nome de instrumento”) e em 1940 nem mais o citaria. Ernesto Vieira, em 1899, tinha entendido ser “uma flauta mencionada no texto hebraico da Bíblia”. Vimos algo a este respeito (de ser bíblico) também pela internet, então fomos conferir a Vulgata online – versão em latim, a chamada Bíblia Constantina. Nos textos, nada – mas em comentários de estudiosos, lá mesmo, encontramos que Maeleth (além de ser nome de uma filha de Ismael), equivaleria ao hebráico MACHALATH, instrumento musical citado em salmos de David. Comentários semelhantes, por autores diferentes (em inglês, francês e italiano), num website sério – e por isso os consideramos consistentes. Mas… se não constava na Bíblia em latim, poderiam os portugueses ter ido de maeleth a machete? Bom, a pronúncia ajudaria um pouco… mas vai pensando aí, enquanto lê…

    Primeiro precisávamos “tirar a prova” do que teria lido Fokel, pois não acreditamos cegamente em ninguém – então fomos procurar livros sobre textos bíblicos em hebraico (não “livros em hebraico”, que não temos competência para ler, mas “sobre textos em hebraico”, em outras línguas). Acabamos por encontrar um excelente, em alemão, de 1777: Einléitung zu dem Neu-Testamentlichen Gebrauch der Psalmen Davids (“Introdução ao uso dos Salmos de Davi no Novo Testamento”), do teólogo alemão Friedrich Christoph Oetinger (1702-1782). Estava lá, tanto para o Salmo 53 quanto para o 88 (as numerações diferem em um número das da Bíblia em latim): […] Meister in der Musik aus Machalath (“mestre em música de Machalath”).  E Otinger ainda detalhou: Machalat ist ohne Zweifel ein musicalisch Instrument zum Trauerspiel, leannot, das ist, ein Schwermuthsinstrument, einen zu demüthigen, einen traurig zu machen (“Machalat é sem dúvida um instrumento musical – dramático, magro, isso é, melancólico, triste”) – no caso, nossa tradução se reforçou por citação em latim sobre possíveis significados de MACHALAT. Cruzamento de alemão com latim dá o quê, “alemin”? “latimão”? Aí não sei… mas sei que foi assim.

Estava lá também, dos Salmos 45 e 69, sobre SCHALISCHIM, que seria o mesmo que SCHOSCHANNIM […] welches ein Instrument von 3 Saiten Tönen oder Ecken bedeutet, so auch das weibIitche Geschlecht tractiren konnte (“instrumento de 3 cordas, tons ou cantos, ligado ao gênero feminino”) – feminino, porque shoschannim seria também o nome de uma flor, um tipo de lírio. Conferimos, e realmente ainda significaria até hoje “uma flor” e vários teriam entendido apenas assim, desprezando o significado de instrumento musical – inclusive na Vulgata online, em latim. Só que nessa mesmo, de novo, dois estudiosos (Vigouroux e Haydock) alertariam em notas que poderia ter sido instrumento musical e não uma flor…

Para nós, uma interessante coincidência, pois já havíamos percebido, há tempos, que “viola” teria sido primeiro nome de flor – um tipo de “violeta” – em latim (sec. VI), só surgindo como nome de instrumento a partir do século XII – e os dois significados ainda convivem. Um cordofone com nome de flor, pra nós, tá tranquilo…

Nosso problema, principalmente, eram posições contrárias de Sachs – tanto para MACHALAT (do qual não apontou conclusão, mas desaconselhou traduzir como instrumento) quanto para SCHALISCHIM (do qual foi categórico em afirmar que não seria instrumento musical). Respeitamos demais (como grande parte do mundo respeita) as pesquisas de Sachs: talvez seja, de longe, o musicólogo mais completo da História, tendo mergulhado em línguas que outros nem teriam pesquisado, como grego, hebraico, etc. Como já citamos, consultamos ótimos levantamentos dele desde 1913 a 1940 – é muito tempo pesquisando, descobrindo, publicando!

Mas… era um ser humano, e já tínhamos encontrado brechas de análises dele a partir de originais em línguas latinas (ele era alemão). Checando a análise dele sobre schalischim, ele afirmou que o termo só teria aparecido uma vez na Bíblia hebraica (em 1 Samuel 18, v. 6), com a grafia salisim (que ele, entrentanto, confirmou que teria a ver com o número “três”). Uma vez mais confrontando com a Vulgata em latim, salisim teria sido traduzido como sistri (“cistro”) e esse já é nosso conhecido: embora alguns o confundam com um instrumento de percussão egípcio antigo (inclusive Sachs), não há dúvidas, por grande número de registros analisados, que tenha se ressignificado depois para nome de cordofone – e seria uma das muitas variações em latim a partir de kithara (grego) – cithara, cedra, cetra, cistro, sistro… Sim, dessas teria sido gerada a atual família dos cistres, de caixa arredondada (bandolins, guitarra portuguesa, etc.).

Sachs aponta ter visto SCHOSCHANNIM (na grafia sosanim) nos Salmos 45 e 69 e nem se deteve em maiores análises, indicando equivocadamente que significaria liles (“lírios”) – mas teria sido sem dúvida um instrumento musical. Neste raro caso, nos parece sem dúvida mais consistente o apontamento de Oetinger – que até não poderia saber tanto sobre instrumentos musicais como Sachs (quem saberia?), mas teria sido professor de hebraico e especialista em Salmos. E nós sabemos que as machetes sobrevivem até hoje, e que o nome, como instrumento musical, não teria vindo do latim, nem espanhol, italiano, etc.

Entre os vários aspectos que analisamos até apontar que o diminuitivo MACHETE teria evoluído a partir de MACHOL e MACHALAT (hebraico) vem o fato que a lusitânia (assim como toda a península hispânica) sofreu invação muçulmana por cerca de sete séculos – e até Bíblias teriam sido traduzidas para árabe / hebraico.       

Então, foi assim. Muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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JOÃO ARAUJO

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6 Jul, 2023

VIOLAS DEDILHADAS: ANOMALIAS HISTÓRICAS

VIOLAS DEDILHADAS: ANOMALIAS HISTÓRICAS

La bihuela [vihuela, vyyuela] de péndola [peñola] con aquestos y sota [verso 1203]

La vihuela de arco fas dulçes de bayladas [verso 1205]

(“A vihuela dedilhada com aqueles, e abaixo – a vihuela de arco com suaves baladas”)

[Juan Ruiz, Harcipreste de Hita (ca.1283-ca.1350), em Libro de Buen Amor – segundo variações de três códices (Gayoso, Toledo e Salamanca), transcritos pela Dra. Rosário Martinez  na tese Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media, 1981, p. 1220-1223 – tradução nossa]

Uma das várias “novidades” que apresentamos no livro A Chave do Baú são descobertas a respeito do uso de um mesmo nome para instrumentos diferentes – diferentes, por serem tocados de forma “dedilhada” ou “friccionada por arco”. O atento leitor já deve ter percebido, né? Temos no Brasil “violas” dedilhadas e “violas” de arco – é um fato… Até onde pesquisamos, a origem deste curioso fato não teria sido explicada (sequer, provocada) antes. É mesmo um pouco complicado de entender essa anomalia que só acontece nestes instrumentos, e só na língua portuguesa – mas, se fosse fácil, centenas de estudiosos, por vários séculos, já teriam descoberto antes, concorda? Por ser complexo é que nos aprofundamos aqui, nos Brevis Articulus semanais. Sorte vossa, por ter acesso a estes textos – e grande sorte e alegria nossa, se alguém tiver com interesse: muito obrigado, é por você que teimamos em praticar ciência.

O que descobrimos, na verdade, não teria sido novidade na História europeia dos cordofones: nela, arcos só apontam ter sido mais utilizados a partir do século X, segundo cruzamento de vários tipos de registros (esculturas, desenhos, textos), analisados por diversos pesquisadores, de diversas regiões e épocas. Os mesmos instrumentos, antes apenas dedilhados, teriam passado então a ser tocados também por arcos, por uma natural e longa fase de transição. Seriam chamados pelos mesmos nomes que tinham antes dos arcos terem chegado (variações próximas dos termos rota, giga e rabeca) e seriam, no começo, tanto dedilhados quanto friccionados por arco, só depois tendo passado a ser conhecidos como “os primeiros friccionados com registros no território europeu”. Observa-se que apenas o rabab (“rabeca”) já teria chegado ao território europeu como sendo tocado por arco, mas teria sido antes, por lá, também dedilhado – segundo pesquisadores como Paul Garnault (artigo “Les Violes”, Encyclopédie de la Musique, 1925).

O que teria acontecido com rotas, gigas e rabecas seria o mesmo que acontece hoje com nossas violas brasileiras e portuguesas:  um mesmo nome para instrumentos tocados de duas formas. Só que, além do nome “viola” apontar não ter nada a ver com aqueles outros três, haveria uma lacuna de cerca de 3 séculos até o surgimento de mais evidências conclusivas. Não atesta cientificamente, portanto, mas aponta o fato (que comprovamos por várias outras observações) que algumas características de cordofones podem romper séculos – e, em vários outros casos, até resquícios nos nomes são observáveis. Desculpem a empolgação, mas não podemos deixar de citar que este aspecto é muito bacana…  Pense bem: os instrumentos a revelarem, silenciosamente, a História (a deles e a das pessoas)…

Mas voltando à prosa: a relação mais direta só viria a partir das vihuelas espanholas, que no século XIV teriam sido também tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco, como teria intuído, entre outros, o padre-poeta castelhano Juan Ruiz (em seu Libro de Buen Amor, conforme destacado na abertura). A semelhança dos nomes não deixa dúvidas, até porque atestamos a evolução de vários nomes similares a partir do século XII em latim, occitano e catalão – línguas comprovadamente influenciadoras do espanhol e do português (entre outras línguas chamadas “latinas”).

Aquelas vihuelas de nome bivalente já teriam sido bem estudadas antes de nós pelos britânicos Thurston Dart (artigo “La viole da Gamba”, da Revista Storia degli strumenti musicali, 1961) e Ian Woodfield (livro La viola da gamba dalle origine al Rinascimento, 1999) e, também, mas com citação de contextos histórico-sociais e demonstrações em bem mais litogravuras, pelo australiano John Griffiths (artigo Las vihuelas em la epoca de Isabel, 2010).

Sim: é curioso observar que estes “gringos” tenham escrito livros e artigos em italiano e espanhol… Não encontramos os mesmos trabalhos em inglês, mas não faz falta: é até louvável o esforço deles em usar línguas latinas e são todos bons textos, muito bem embasados. Apesar disso, teria escapado àqueles grandes estudiosos o caminho que as vihuelas teriam traçado até chegarem às nossas violas, portuguesas e brasileiras. A língua portuguesa, não por coincidência, seria a única a ainda preservar, até os dias atuais, um nome igual, tanto para violas dedilhadas quanto para friccionadas por arco – por isso, é legítimo e coerente que caiba a um brasileirinho atrevido (e não a outros estudiosos pelo mundo) que “desembole este novelo” a partir desta “ponta solta”.

As nossas “violas” teriam os mais remotos registros conhecidos em três escritos portugueses, dos anos de 1455, 1459 e 1477 – segundo apontamentos também de Veiga de Oliveira (Instrumentos Populares Portugueses, 1964) e Manuel de Morais (artigo A Viola de Mão em Portugal, 1985). A princípio, aqueles registros não especificariam claramente se teriam sido violas dedilhadas ou friccionadas, mas logo em seguida as evidências se confirmariam e as “violas” dedilhadas se tornariam o principal cordofone em Portugal, com vários registros observados nos séculos XVI e XVII. O que pesquisadores não teriam percebido é que outros cordofones dedilhados, com vários registros em regiões vizinhas a Portugal (como alaúdes e guitarras) praticamente não teriam tido seus nomes citados em textos portugueses, enquanto aquelas “violas” teriam as mesmas descrições… Ou seja: as evidências reais são que “viola” teria sido apenas um nome genérico dado a todos os outros cordofones, não tendo existido, de fato, “violas” diferentes dos demais cordofones largamente utilizados – mas isso, por enquanto, só nós temos a audácia de afirmar mais categoricamente… Conforme já avisamos, somos atrevidos – vai desculpando aí, por favor.

Embora, por exemplo, Manoel de Morais tenha afirmado que “viola é empregado como nome genérico de uma família de instrumentos de corda com braço”, pesquisadores demonstram apego ao nome “viola” e seguem tratando-as como se tivessem existido de fato, nos primeiros séculos. Apontar que elas não existiriam (senão somente o nome) significaria enfrentar um problema bem complexo, pois no tempo presente dos primeiros pesquisadores citados (século XX), e até hoje, as violas existem… Uma possível lacuna teria que ser explicada, contextualizada, “provada”, por assim dizer: é muito mais fácil assumir que elas “sempre teriam existido” – até porque, há registros. Além disso, até agora ninguém teria se atrevido a contestar…

É por isso que, também “por enquanto”, só nós postulamos e contextualizamos que violas dedilhadas, de fato, só podem ser consideradas que existiriam quando for possível atestar detalhes que as diferenciassem das guitarras espanholas e outros cordofones: isto só teria acontecido a partir de meados do século XVIII, quando as guitarras então dominavam a cena dos cordofones na Península Ibérica, praticamente não sendo conhecidos mais registros por lá de alaúdes, vihuelas e guitarras pequenas. O máximo que pesquisadores (no caso, portugueses e brasileiros) apontam, portanto, é um bilinguismo (entre guitarras e violas), que realmente faz sentido entre os séculos XVII e XIX – porém, antes, teria havido um “multilinguismo”, onde o nome “viola” teria sido utilizado para alaúdes, guitarras pequenas de 4 ordens de cordas e vihuelas – multilinguismo no qual não se conhecem registros de “violas” que fossem diferentes daqueles outros cordofones, bastante populares por quase todo o território europeu da época.

Entre as complexidades que outros pesquisadores não teriam enfrentado estão:

– estudos organológicos sequer hoje em dia apontam consenso de que número de cordas e de ordens sejam diferenciadores de instrumentos (“azar o deles”, é o que pensamos);

– estudos linguísticos, até os dias atuais, não apontam consenso sobre origens do termo “viola”, entre outros nomes de instrumentos musicais (“azar o deles também”);

– são raros os estudiosos, até os dias atuais, que apontam trabalhar bem com as diferenças entre “presente e vários passados”, expressas em características organológicas e etimológicas de instrumentos musicais. Ao contrário, o que mais se observa é estudiosos agirem como se um instrumento que eles tem contato, no presente deles, sempre tivesse tido aquele formato e aquele nome da língua que estivessem usando nas suas respectivas publicações.

Não seria, entretanto, um equívoco infantil, tosco – afinal, estamos a falar de inúmeros estudiosos, vários deles muito competentes, dedicados e respeitados (o que seria de nós se tantos outros não tivessem deixado trabalhos bons?). Teriam sido mais como “pequenos deslizes”, desculpáveis possivelmente pela louvável intenção de querer traduzir bem o complexo assunto para quem o fosse ler. A “pegadinha”, no caso, é que se não analisarmos muito bem o passado, perdemos muito do caminho histórico percorrido. Alguns estudiosos até criticam deslizes assim quando cometidos por terceiros, mas, curiosamente, costumam também cair no mesmo tipo de armadilha – a de contexto histórico.

É importante observar que o que desenvolvemos (a partir de vários estudos de terceiros) foi uma prática de olhar multidisciplinar (ou multi-temático) cuja importância e aplicabilidade poucos estudiosos teriam tido antes a perspicácia de perceber e de se aprofundar tanto (isto para não afirmar de novo que somos os primeiros a chegar tão longe, numa brincalhona falsa modéstia… por enquanto, pelas apropriações indébitas e tentativas de descredibilização que já começam a surgir, faz-se mais necessário reforçar o aspecto do ineditismo metodológico e deixar a modéstia para o futuro).

Ajuda-nos a atestar a atrevida afirmação (de que pesquisadores não teriam percebido ou não quiseram apontar que não existiram “violas” de fato, até determinado período histórico) se analisarmos com bastante atenção e profundidade o que teria acontecido quanto a nomes e características de cordofones portáteis pelo território europeu, em especial em regiões próximas a Portugal, nas mesmas épocas. Bora lá:

No restante da península Hispânica, quanto aos dedilhados, guitarras (pequenas, com 4 ordens de cordas) e vihuelas (com 6 ordens) teriam registros pelo menos desde o século XIV e espelhariam instrumentos de procedência árabe – respectivamente manduras e alaúdes ou, em espanhol, “bandurrias” e “vihuelas de Flandres”, segundo, entre outros, Juan Bermudo (Declaración de Instrumentos, 1555). Uma importante diferença é que os instrumentos espanhois seriam cinturados e de fundo plano, e os árabes, periformes e de fundo abaulado.

Aquelas guitarras e vihuelas dedilhadas cairiam em desuso a partir do século XVII. Desta informação tiramos que muito provavelmente por analisarem apenas as fontes em espanhol, pesquisadores não tenham atentado para o que aconteceria na Itália e em Portugal, quando à instrumentos similares às vihuelas espanholas. Quanto às pequenas guitarras,  observa-se a partir daquela época a ascenção de um instrumento que armaria com 5 ordens de cordas e tamanho um pouco maior, mas que manteria em espanhol o nome de guitarra. Este instrumento ficou muito famoso por toda a Europa, como antes teriam sido um pouco as guitarras menores – e muito provavelmente por isso se manteve o nome guitarra, no que chamamos então de “ressignificação” do nome, para passar a representar um instrumento um pouco diferente.

Vários chamam hoje de “barrocas” aquelas então “novas guitarras”, por causa do período histórico apontado em estudos de História da Arte. O moderno termo “barroco”, entretanto e obviamente, não aparece em registros mais antigos, demonstrando um tipo de trato que concluimos não ser o mais adequado com relação a nomes de instrumentos: traduzir e/ou tentar renomear instrumentos só colabora para ficar mais difícil entender o rico histórico do passado deles – histórico que confirmamos, está lá, nos nomes e em algumas características organológicas. Só que, se generalizarmos (principalmente os nomes), fica muito mais difícil ter a atenção chamada para os tais resquícios históricos… Um pequeno equívoco lamentável, secundado por centenas de estudiosos de várias áreas, há séculos – mas que não pode ser imputado como “má fé” ou “incompetência”, vez que só agora estamos a divulgar nossa metodologia recém desenvolvida (ela é a tal que chamamos de “A Chave do Baú”). Não teria havido estudo tão abrangente antes. Apontamos estes equívocos para justificar porque nossa metodologia é capaz de ajudar a descobrir tesouros que tantos outros pesquisadores ocidentais não teriam descoberto: não é questão de ser “melhor” (estamos longe disto), mas questão de ser atrevido, perspicaz, teimoso – no popular, “extremamente chato”, principalmente dados históricos…

Já na península itálica, na mesma época, interessantes registros atestam que “violas” por lá também teriam sido nomes com bivalência quanto à forma de tocar, não por coincidência, exatamente como as vihuelas espanholas. Neste caso, por não ter observado estudo neste sentido, listamos os dados e apontamos o desenvolvimento nós mesmos:

– estimado ao ano de 1350, o poeta Giovani Boccacio (livro Decameron) apontou viuolas que teriam sido utilizadas para acompanhamento de cantos – mais provavelmente, portanto, e àquela época, teriam sido dedilhadas.

– estimado ao ano de 1486, em Nápolis, o belga Johanes Tinctoris (De inventione et usu musice) apontou que “violas” seriam cordofones de procedência espanhola; seriam tanto sine arculo (“sem arco”, ou seja, dedilhadas), principalmente em cantilenas italianas e espanholas), e cum arculo (“com arco”), utilizadas para acompanhar declamações de poesias;  acrescentou que rebecum (“rebecas”) e liutum (“alaúdes”) seriam em quase tudo similares às violas, a não ser que estas últimas seriam cinturadas (atestando espelhamento como o espanhol quanto aos instrumentos abaulados, de procedência árabe). Tinctoris se declarou tocador de rebecum e de viola e é um dos mais respeitados musicólogos surgidos após o padre italiano Guido D’Arezzo (este, considerado o pioneiro em estudos que depois originariam a atual música tonal ocidental). Observamos ainda que Tinctoris teria tido a rara atenção de optar por escrever em linguam vulgarem (“latim popular”), aproximando-se assim das nomenclaturas originais dos instrumentos, aos quais ainda tentou apontar, segundo o que sabia, as regiões de procedência mais prováveis (como se percebe, não “inventamos a roda”, apenas ficamos muito atentos ao que fizeram os bons, e tentamos ainda melhorar, a partir do que vimos ser feito).

– em 1533, Giovani Lanfranco (Scintille di Musica) não citou “violas”, mas apontou, em sua proposta de sub-classificação para friccionados, os nomes violoni, violone e violono – que seriam todos de Braccio & de Arco. Os violones, entretanto, teriam a mesma afinação de alaúdes, com a diferença que estes teriam cordas geminadas (duplas de cordas). Temos aí uma evidência de espelhamento entre dedilhados e friccionados por arco, assim como antes se observa em instrumentos espanhois de nome bastante similar (a língua italiana, como se sabe, também descende, e diretamente, do latim).

– em 1536, Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto) já apontou desde o título de seu método que as “violas” a que se referia seriam o mesmo que alaúdes, portanto, eram dedilhadas (e não friccionadas por arco).

– estimado ao ano de 1542, Silvestro Ganasi (Regula Rupertina, o método antigo mais referenciado até os dias atuais), já utilizou a nomenclatura viola darcho – mas também citou violone como um instrumento de afinação e armação de cordas iguais aos dos alaúdes, como fizera antes Lanfranco.

            Observa-se, numa somatória, que espanhois teriam nacionalizado (ou tentado descaracterizar) nomes árabes originais dos instrumentos, ao utilizar bandurria e “vihuela de Flandres”. Flandres foi uma cidade portuária de grande comércio do litoral francês à época, mas que não tem qualquer ligação com a procedência real dos alaúdes: consegue perceber a rejeição, nesse tipo de fake news medieval? Principalmente, espanhois apontariam preferência por formatos de caixa diferentes dos abaulados árabes. O formato cinturado não teria sido inventado por eles, vez que já teria registro pelo menos desde o século X em cordofones chamados organa (tanto em grego quanto em latim). Sobre as organas, sugerimos lerem nossos apontamentos a respeito, são reveladores em termos de evolução de nomes e características de instrumentos pelos séculos. Já entre as mais remotas citações sobre a opção espanhola de formato de caixa está o já citado Juan Ruiz (Libro de Buen Amor, estimado ao século XIV), que poeticamente separou guitarras latinas de guitarras moriscas entre outros instrumentos que arabigo non quiere (“árabes não querem”) e que a árabes non convenien (não convém).

Italianos também teriam nacionalizado o nome vihuela para viola, a partir do século XV (embora o nome já teria registros desde o século XII em latim, para cordofones). Também como exemplo do nacionalismo italiano, o termo espanhol guitarra seria vertido para chitarra a partir do século XVI, acompanhando a tendência de preferência europeia da época para aqueles dedilhados espanhois. Desta forma, os italianos teriam começado a separar dedilhados de friccionados pelo uso de dois nomes diferentes – mas, no início os instrumentos teriam sido praticamente iguais às vihuelas espanholas. Só com o passar do tempo os italianos desenvolveriam evoluções hoje consolidadas, como o famoso formato cinturado de caixa (mais “trabalhado na grife”) da hoje chamada “família dos violinos” (família que, na verdade, originou-se das primeiras violas, bem anteriores aos violinos). Italianos teriam evoluido também pelo de cordas metálicas em ordens triplas de cordas, nas citadas chitarras (os espanhois usariam duplas de cordas, feitas a partir de intestinos de animais – “tripas” – depois substituídas por cordas de materiais plásticos, como nylon). Entre os que estudaram bem estas características das chitarras está o pesquisador Darryl Martin (artigo The Early Wire-Strung Guitar, 2006).

Já os portugueses teriam agido de forma bem mais peculiar: evitariam nomes árabes (assim como os espanhois) e adotariam o nome “viola”, como os italianos, tanto para dedilhados quanto para friccionados – porém, sem apontar terem feito modificações em seus instrumentos até séculos depois (muito menos, acompanhar a tendência de chamar os dedilhados de “guitarras” ou similar, separando-os dos friccionados). Nem quando as guitarras espanholas se espalharam por toda a Europa a partir do século XVII, com nomes similares como guitarre (em francês), guitar (em inglês) e Guitare (em alemão). Só quando mais tarde (na virada do século XVIII para o XIX), quando novamente as guitarras espanholas mudariam de armação e tamanho, definitivamente conquistando a preferência observada hoje em praticamente o mundo todo. Os portugueses então chamariam aquelas “ainda mais novas guitarras” de “violão” ou “viola francesa” (este último nome, num procedimento similar à descaracterização sem fundamento adotada por espanhois antes, quanto a Flandres). Ou seja: os portugueses optaram por seguir utilizando, pura e simplesmente, o nome genérico “viola” para todos os cordofones – independente do que acontecia em regiões vizinhas, às quais, sem dúvida teria contato. Mesmo que tácita (posto que não se observe leis ou orientações públicas neste sentido), teria sido uma ação pública, continuada, cujo cunho aponta para um peculiar tipo de expressão do nacionalismo português, que atestamos também em vários outros registros históricos. Outros contextos histórico-sociais apontam resultados semelhantes em praticamente toda a História dos cordofones europeus.  

Até aqui já deve ter dado para perceber porque então surgiu esta anomalia, que são as violas dedilhadas. Ajudará mais ainda um destrinchamento maior sobre a origem das violas, tanto portuguesas quanto brasileiras – mas aí já serão outras prosas…

Por enquanto, muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

(As principais referências foram apontadas durante o desenvolver do próprio texto)

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29 Jun, 2023

O HISTÓRICO DOS ESTUDOS SOBRE VIOLAS NO BRASIL

O HISTÓRICO DOS ESTUDOS SOBRE VIOLAS NO BRASIL

“[…] Com estes dados e documentos e milhares de outros de história da arte, chegamos à conclusão de que guitarra italiana, guitarra espanhola, guitarra francesa, viola portuguesa, viola brasileira foram nomes diferentes de um mesmo instrumento”.

(Theodoro Nogueira, em Anotações para um Estudo sobre a Viola, A Gazeta, 24/08/1963)

            Viola, Saúde e Paz!

            Até chegarmos hoje à contextualização de uma Família de Violas Brasileiras Brasileiras (dedilhadas), postulação nossa ainda muito recente e pouco conhecida, foi segundo a História dos cordofones ocidentais, por fontes e estudos de vários pesquisadores. Levantamos centenas de dados até então pouco conhecidos e nunca antes retraduzidos e organizados cronologicamente em uma única pesquisa, como o fizemos. Um longo e tortuoso caminho foi traçado antes, por estudiosos, sobre as violas dedilhadas brasileiras, que foram nosso ponto de partida.

            É deste histórico que trataremos neste Brevis Articulus, aprofundando um pouco mais no assunto a partir de citações feitas antes em nossa monografia e nosso livro A Chave do Baú. Acrescentamos também que, ao chegarmos hoje aos primeiros seis meses destas “prosas”, trazemos de presente aos leitores a transcrição completa do pouquíssimo conhecido estudo Anotações para um Estudo sobre a Viola: Origem do instrumento e sua difusão no Brasil (destacado na abertura). Não deixaremos assim, “de cara”, o link para download, mas basta seguir na leitura que logo ele aparecerá… “Bora”?

            Ao que pesquisamos até agora, os estudos sobre violas no Brasil terão começado a partir dos folcloristas… Se, em 1941, Mário de Andrade (1893-1945) teria afirmado que “[…] Esse caso da viola brasileira acho tão complicado que ainda não me animei a estudar” – isso, em carta ao historiador potiguar Luis da Câmara Cascudo (1898-1986) -, já em 1943 Mário teria encomendado alguma pesquisa histórica sobre violas ao folclorista paulista Alceu Maynard de Araújo (1913-1974). Este, infelizmente, parece não tê-la concluído e publicado.

            Mário de Andrade parece ter influenciado outros, e teria tido algum sucesso, vez que no mesmo ano de 1943 (e dois anos antes de falecer), teria podido acompanhar publicação do musicólogo e folclorista carioca Luiz Heitor Correia de Azevedo (1905-1992): interessantes colocações sobre violas do artigo Violas de Goiaz, a partir de pesquisas de campo realizadas em Goiânia (GO) – publicado na Revista Cultura Política. Artigo curto, sem conteúdo histórico considerável, mas destaca-se que o termo “viola caipira” não estava ainda consolidado – longe disso, aliás.

            Depois disso, em 1955 chegaria a vez do já citado Maynard Araújo publicar detalhes sobre violas observadas em suas, então, substanciais pesquisas de campo – vez que declarou ter entrevistado um total de 818 violeiros (!): entre 1946 e 1948 (pelo interior de São Paulo) e, entre 1951 e 1953, “[…] pelos 4 ventos do Brasil”, segundo ele. Em 29/05/1955 publicou um resumo como artigo do jornal Correio Paulistano – Pensamento e Arte e, entre 1958 e 1959, detalhamentos em diversas publicações na Revista Sertaneja. É neste trabalho que comenta sobre o pedido de Mário de Andrade, e que estaria juntando dados, mas ainda estaria longe de terminar a pesquisa histórica solicitada. Realmente, suas poucas citações sobre origens da viola são equivocadas, a luz dos dados que hoje em dia temos à disposição. Mas suas pesquisas de campo são bastante úteis – comprovam, por exemplo, que haveria naquela época vários modelos de viola pelo Brasil. Também aponta que os modelos mais arcaicos, mais interioranos, eram bem diferentes do modelo industrializado, que curiosamente foi o que acabou por assumir o nome Viola Caipira.    

            Embora não parecendo ser fruto de um estudo aprofundado, cabe também citar, por causa da ordem de fatos, um depoimento feito em 1959 pelo ator e radialista mineiro Vicente Leporace (1912-1978), no encarte do LP Exaltação à Viola (Chantecler, CMG 2041). Foram músicas arranjadas pelo maestro paulista Élcio Alvarez (1922-1992) e interpretadas por orquestra e coro, com destaque para solos de viola do multi-instrumentista paulista Ângelo Apolônio – “Poly” (1920-1985). No texto do encarte, que não observamos ter sido muito considerado em outros estudos, Leporace apontou à época que “[…] até hoje não houve um dicionarista, um estudioso de lexografia que tenha prestado atenção maior à viola!”. Uma informação considerável, vez que realmente não encontramos citação do termo em dicionários até cerca de duas décadas depois de 1959. Leporace ainda levantou dúvida sobre o nome do instrumento (entre “viola brasileira” e “viola caipira”) e, talvez por isso tudo, resolveu postular um conceito próprio, um tanto lúdico, de “viola caipira”. A dicotonia de nomes acabou por ecoar bastante, aproximadamente nos 15 anos seguintes, segundo centenas de publicações que observamos (e listamos em detalhes em nossa monografia). A repercussão se espalhou a partir de músicos e pesquisadores cujas opiniões e trabalhos foram considerados interessants pela mídia. Entre eles,  além de Leporace, Elcio Tavares e Poly, também Theodoro Nogueira, Rossini Tavares, Guerra-Peixe, Renato Almeida, Mário de Andrade, Geraldo Vandré e outros.   

            É assim que chegamos, em 1963, ao nosso destaque: o pioneiro estudo do maestro paulista Ascendino Theodoro Nogueira (1913-2012). Com algumas citações a fontes de época em outras línguas, embora o maestro não tenha se aprofundado muito teria sido suficiente para ele perceber que, entre outros termos, “viola” era apenas um nome diferente, não um instrumento diferente de outros existentes. Theodoro citou alguns folcloristas e outros que o teriam ajudado na pesquisa, além das poucas fontes que teria conseguido à epoca para embasar seu estudo.

Infelizmente, o próprio Theodoro teria acabado por prejudicar a difusão de seus interessantes “apontamentos”, pois em 1971 os publicou (com algumas inserções e modificações) no encarte do LP Bach na Viola Brasileira. Assim, muito provavelmente por ter sido visto como uma resenha comum de apresentação de discos (como acontecido com Leporace antes), não teria chamado muito a atenção de pesquisadores contemporâneos. Vários pesquisadores nem chegam a citar o estudo de Theodoro e, entre os que o citam, observamos: Rosa Nepomuceno (1999, p.74); Saulo Dias (2010, p. 225); Rui Torneze (2010, p.7); Vinícius Pereira (2011, p. 93); Roberto Corrêa (2014, p. 169); Romildo Sant’anna (2015 [2000], p. 296); César Petená (2017, p. 15) e Laís Fujiyama (2018, p.7). Estes todos não apontam ter percebido que o texto de 1971 não era exatamente o original e, portanto, que suas diferenças quanto ao texto de 1963 são importantes. Entre as diferenças, vê-se a evidência da dicotonia de nome do principal modelo da Família das Violas durante o período e a importante participação de Theodoro na discussão (dada a importância de seu nome e a inusitância do uso de viola em músicas “eruditas”). Estes últimos detalhes, entre outros, nos levaram a buscar atestações e contextualizações deste importante e (até então) não divulgado capítulo da história de nossas violas. A década de 1960 até teria sido estudada, mas a teoria apresentada não se atesta pelos dados de época, principalmente pelo grande número de dados que levantamos.

É preciso ressaltar que a maioria das pesquisas brasileiras sobre violas se evidenciara, até agora, pelo viés do caipirismo, liderado por formadores de opinião muito importantes (e importantes por seus justos méritos). A visão muito secundada, de que o modelo Viola Caipira teria tido um avivamento exatamente na década de 1960 – lançada pelo Dr. Roberto Corrêa -, pelo menos em termos de nomenclatura é desatestada por dados de época, que, diferentemente, apontam que naquela década teria havido, na verdade, uma dúvida pública sobre o melhor nome para o modelo mais conhecido. Ou seja: até os dados apontados pelo grande violeiro e pesquisador atestam que havia vários modelos de viola, mas que o modelo mais conhecido não era ainda chamado de “Viola Caipira”. Leporace (não citado por Corrêa) já teria vislumbrado o fato em 1959 e isso se comprova ter durado até meados da década de 1970.

            A fim de presentear os leitores de nossos Brevis Articulus – e por termos conseguido fotos do estudo original pela generossíssima ajuda dos funcionários do Museu Zequinha de Abreu, de Santa Rita do Passa Quatro (SP) -, resolvemos publicar uma transcrição integral, com as ilustrações e com comentários nossos, inclusive juntando as diferenças observadas depois, em 1971. Deixamos o PDF à disposição para baixar gratuitamente em alguns dos diversos Grupos Facebook que monitoramos, como o grupo Viola Brasileira em Pesquisa. O acesso direto pode ser feito pelo link: https://www.facebook.com/groups/ViolaBrasileiraEmPesquisa/permalink/1331472464454176

            Seguindo, em 1964 o folclorista paulista Rossini Tavares de Lima (1915-1987) publicou o artigo Estudo sobre a Viola, na Revista Brasileira de Folclore, onde citou que Theodoro Nogueira “[…] foi o primeiro compositor a contribuir para a integração da viola caipira, sertaneja ou brasileira na música erudita atual”. Sem dúvida, portanto, Theodoro teria influenciado algo na criação deste artigo, mas as citações históricas foram poucas, sem apontamento das fontes e sem fundamentações.

            Embora sem aparente ligação com as violas, um estudo publicado também em 1964 viria marcar até os dias atuais o caminho das violas brasileiras: trata-se do livro Os Parceiros do Rio Bonito, do sociológo carioca Antônio Candido de Mello e Souza (1918-2017). Com indicação de ter sido fruto de pesquisa de campo culminada em tese de doutoramento, citações simples feitas no livro (sem desenvolvimentos científicos nem apontamentos de dados de época) apontam ter sido suficientes para que sejam consideradas como fatos. Parecem ser consideradas como “aval científico” à interpretações publicadas em textos artísticos e defendidas enfaticamente entre 1910 e 1945 pelo empresário cultural paulista Cornélio Pires (1884/1958). Candido ainda sugeriu ampliação do conceito para uma grande “região caipira” surgida a partir do século XVIII, que seria a “paulistânia” – sempre lembrando que era uma tese, e no livro as ligações são citadas sem aprofundamento científico. O tratamento é como se fossem “notório reconhecimento público”. Desta forma, Candido teria inagurado um entendimento coletivo ainda vigente, onde, simplesmente pelo sobrenome “caipira”, o modelo mais famoso das violas estaria ligado a uma “cultura ancestral”. Entre centenas de citações por pesquisadores, não se observa nem uma vez a tese de doutoramento de Candido, apenas o citado livro, onde detalhamentos e desenvolvimentos científicos simplesmente não existem. O importante estudioso inclusive parece ter publicado apenas este único trabalho sobre o tema, tendo mudado os rumos da carreira após não ter conseguido se eleger a Deputado por São Paulo – candidatura que aconteceu exatamente na época que teria depositado sua tese (década de 1950). Já o conceito “paulistânia”, descobrimos que teria sido baseado em textos do eugenista paulista Alfredo Ellis Jr. (1896-1974), que teve carreira política e até conseguiu levar os paulistas à guerra contra o restante do país com suas ideias, na década de 1930, mas jamais teria alegado ligação da “paulistânia” com o caipirismo antes da publicação de Candido.    

O nome Viola Caipira só viria mesmo a se consolidar, como hoje é conhecido, por ações comerciais de gravadoras, a partir de meados da década de 1970 – mas a maioria dos pesquisadores e outros adeptos do caipirismo sugere entender que teria existido “desde sempre” no Brasil. É como se todas as menções a “violas”, realmente registradas desde o século XVI, tivessem sido todas “violas caipiras” (ou que deste modelo moderno teriam sido gerados os outros modelos, embora comprovadamente mais antigos, diferentes e nunca citados por este nome antes).

Se fosse um simples equívoco, seria o de interpretar o passado como se fosse equivalente ao presente – mas isso aponta ser aspecto muito básico para que tantos pesquisadores não tenham percebido antes…

O que se pode dizer é que o entendimento coletivo chamado “caipirismo” acabou por tirar a atenção de estudos sobre outros modelos de viola e, principalmente, diminuiu a possibilidade de perceber dezenas (se não centenas) de evidências de que, na verdade, o que sempre existiu no Brasil, assim como em Portugal, é a presença de uma Família de Violas, com vários modelos diferentes, interligados por contextos musicológicos e históricos atestáveis. Esta postulação é inédita nossa, pelo menos por enquanto – pois pode acontecer de virem a querer “fazer de conta” que não a publicamos e tentarem tomar de nós qualquer crédito… Parece piada, mas é trágico, pois já aconteceram coisas semelhantes antes. Não é à-toa que adotamos o personagem de não ter “papas na língua”: é um tanto por autodefesa… e outro tanto, confessamos, por chatice, pirraça e brincadeira mesmo – por favor, desculpa aí…  

Felizmente não foram todos os estudos sobre viola que se prenderam ao caipirismo: por exemplo, em 1981 foi publicado o livro Viola de Cocho, um alaúde brasileiro, fruto de pesquisas da músicóloga paulista Dra. Julieta de Andrade. Outros dois estudos pioneiros são o de Cíntia Ferrero (sobre Violas Brancas, em 2007) e o de Cássio Nobre (sobre a Viola Machete, em 2008). Coincidência ou não, estes três modelos são abordados em dossiês de Reconhecimento como Patrimônio Imaterial…

Apesar da afirmação da Dra. Julieta de que todos os cordofones “teriam vindo dos alaúdes” (colocação consensualmente rejeitada pelos musicólogos mundiais, até porque os formatos de caixa são muito diferentes), do estudo dela “pescamos”, por assim dizer, dicas sobre variações de nomes de cordofones pelos séculos, por várias línguas de culturas diferentes – que depois atestamos ter sido originalmente do musicólogo alemão Curt Sachs (1881-1959), no livro The History of Musical Instruments. Aprofundamos, alargamos e desenvolvemos muito este princípio, mas, naturalmente, não “inventamos nada do zero”. Não podemos negar que graças a estudos pioneiros e corajosos (pouquíssimos considerados pela maioria) é que hoje atrevidamente chegamos a desafiar colocações tradicionais da musicologia, linguística, sociologia e outras ciências, com descobertas inéditas advindas de um banco de dados que nunca teria sido antes aplicado na História dos cordofones ocidentais. Atrevido? Sim… mas é tudo atestado cientificamente. Buscamos e organizamos muitos dados como não vimos ninguém ter feito antes. Somos honestos, mas de bobo só temos o jeito de andar e a chatice de ficar sempre provocando.

O nosso estudo partiu do pequeno acervo de estudos feitos por brasileiros sobre violas, de onde selecionamos estatisticamente os 13 mais citados. As datas de depósito apontam as primeiras décadas do século XXI e entre estes, então, importantes nomes, estariam, pela ordem cronológica: Rogério Budasz, Andréa Carneiro de Souza, Eric Martins, Cíntia Ferrero, João Paulo Amaral, Gisela Nogueira, Cássio Nobre, Adriana Ballesté, Sandro Dias, Marcus Ferrer e, curiosamente, o estudo sobre violões de Márcia Taborda (com vários apontamentos históricos sobre violas ainda inéditos, à época). Nas 13 “fontes-base”, principalmente, reinvestigamos todas as citações, checando-as uma por uma desde as possíveis publicações originais, ou as mais remotas que fosse possível. Estas fontes nos levaram a textos em diversas línguas europeias como latim, occitano, catalão, espanhol, francês e variações do inglês e do alemão pelos séculos. Retraduzimos tudo com atenção a detalhes às vezes não observados normalmente em traduções convencionais, por aplicarmos nossas experiências em visões musicológicas, de poeta/compositor e de escritor (análise de discurso, percepção artística, etc.). Várias descobertas e decisões investigativas sobrevieram destes processos, como a posterior ampliação de busca de registros sobre o termo “viola” em todas as línguas relativas, desde o latim do século II aC. – pois atestamos pouca consideração a violas dedilhadas pelo resto do mundo – e também a evolução da metodologia, que foi sendo testada e confirmada várias vezes. Esta tal “metodologia” nada mais é que a tal “Chave do Baú” que escolhemos para dar nome ao nosso livro. E ela abre mesmo, confiem.

Criamos assim uma visão bem embasada sobre o estudo das violas no Brasil. Um exemplo é uma corrente de busca por possíveis origens das violas citadas nos primeiros séculos: vários pesquisadores teriam buscado informações em estudos de portugueses, dos quais se destacam Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990) e Manuel de Morais. Além das 13 fontes-base, esta corrente foi observada em estudos de Paulo Castagna, Marcos Holler, José Ramos Tinhorão e outros – mas, apesar da pista observada por Theodoro Nogueira em 1963 (que, conforme já dissemos, é pouco conhecida), nenhum outro pesquisador teria observado que as violas portuguesas (e, portanto, também as nossas) não teriam evidência de existirem realmente antes de meados do século XVIII, senão apenas um nome “viola” aplicado a vários cordofones similares, procedentes de culturas concorrentes de Portugal.

Pode parecer um detalhe muito pequeno, quase de semântica, mas a constatação desta particularidade nos guiou para evidências concretas de contextualizações historico-sociais que, por sua vez, revelaram verdadeiros “tesouros perdidos” por toda a Hhistória dos cordofones europeus. Inclusive nos levaram a um aprofundamento de estudo sobre nomenclaturas de instrumentos musicais que ainda não teria sido feito, nem por musicólogos, nem por linguistas nem por outros estudiosos de qualquer ciência… Sim, sim, não conseguimos evitar: somos atrevidos demais (pra não dizer arrogantes), mas é a pura verdade. Não por sermos “melhores” que ninguém, mas por termos vislumbrado caminhos que outros não apontaram ter percebido, e por isso mergulhamos neles, com muita dedicação. São basicamente estes os nossos méritos, além de tentar compartilhar as descobertas ao máximo, sobretudo com nossos pares que não tem muito hábito de leitura.

Nosso destaque final sobre a história dos estudos sobre viola no Brasil recái sobre os dois maiores formadores de opinião do meio, os doutores Ivan Vilela e Roberto Corrêa, ambos com carreiras multi-talentosas (como músicos, arranjadores, produtores, pesquisadores e outras atividades). As duas carreiras apontam início aproximadamente na década de 1980. Ambos naturalmente entraram na lista dos “13 mais”, porém com destaque, por serem, de longe, os mais citados e secundados até os dias atuais – não apenas em trabalhos sobre viola, mas de diversas outras áreas, tanto do Brasil quanto do exterior. Estas duas maiores referências (por seus inegáveis e múltiplos méritos) surgiram não só nas citações, quanto na origem de praticamente todos os principais eventos sobre a viola nas últimas décadas… Não duvide, cheque: nossa monografia consta de apontamentos individuais de uso do termo “viola” desde o século XVI até o ano de 2021 – “o bagulho é sinistraço”, não é brinquedo não…

Grandes poderes, maiores responsabilidades – diria o tio do Homem-Aranha (ou algum provérbio antigo não muito bem identificado hoje em dia): os doutoramentos depositados respectivamente em 2011 por Vilela e 2014 por Corrêa são, de longe, as fontes de informações históricas sobre as violas mais citadas – mas, na verdade, ambos tem foco no caipirismo, não em musicologia histórica. Ambos assumiram (sem sinal de qualquer contestação ou dúvida, muito menos de ampliação do desenvolvimento nem indicações de fontes de época) a interpretação pessoal de Cornélio Pires, reforçada pelas citações simples de Antonio Candido e mais de uma centena de grandes estudiosos que os seguem até os dias atuais (na maior parte, da área de sociologia). Sim, para algumas áreas é plenamente aceito que se baseie em citações de terceiros – mas para falar de História é desejável apresentar evidências de época. Em resumo, para os dois pilares da viola atuais, viola é a caipira, por ser da região caipira “paulistânia”, e é a mais importante posto que a mais conhecida. Ao assumirem suas opções pessoais de serem “caipiras com orgulho”, colaboram decisivamente para o afastamento coletivo de estudos sobre outros modelos e de constatações importantíssimas, que ficam embotadas por um entendimento coletivo que tende a considerar apenas o modelo de nome Viola Caipira nas equações investigativas.

De certa forma, “bom pra nós”, por terem deixado porteira aberta para nossas inéditas descobertas (nós, a princípio, infinitamente menos habilitados que eles e tantos outros) – mas, por outro lado, enquanto estes dois importantes nomes não estiverem dispostos a discutir e, possivelmente, rever algumas de suas colocações e entendimentos publicados, mais tempo levará para que a sociedade em geral descubra vários detalhes interessantíssimos sobre nossas violas. Nossas violas são tesouros em diversos aspectos, principalmente como testemunhas de mudanças histórico-sociais vividas por toda a história ocidental. Isso está muito longe de ser “pouco”, pode significar talvez até um recontar de alguns trechos da História (pelo menos, da História dos cordofones)…  

Temos a honra de conhecer estas duas “feras” há alguns anos e algumas vezes já abusamos da grande paciência e educação que têm, tentando interpelá-los diretamente: tudo indica que deve demorar algum tempo até que venham a público pelo menos discutir a hipótese de que pudessem ter estado enganados em alguns detalhes, ou que teriam deixado passar algumas coisas…

É importante citar que tanto Ivan Vilela quanto Roberto Corrêa (e, portanto, praticamente todos os que estudam e admiram violas) não negam a existência dos outros modelos – aí já seria demais também, né? Entretanto, normalmente os demais modelos são tratados como simples curiosidades, ou que teriam sido gerados a partir do modelo Viola Caipira… Neste caso, é pertinente repetir: o modelo Viola Caipira tem registros claros de origem a partir de 1900, por iniciativa de luthiers estrangeiros (Di Giorgio, Giannini e outros), que se basearam no formato das antigas guitarras espanholas. Foi desenvolvido na grande capital São Paulo (portanto, de “caipira”, no sentido de “interiorana” não tem nada). O nome “Viola Caipira”, embora com citações pontuais desde aquela época, resistiu a todo o período de surgimento e reafirmação do caipirismo, tendo vindo a se consolidar como nome do modelo, comprovadamente, só a partir de meados da década de 1970. Esta última informação cavamos inédita e trabalhosamente, a partir de centenas de publicações, utilizando, além da técnica estatística dos dados, contextos histórico-sociais que observamos também em toda a História dos cordofones ocidentais, não apenas no Brasil.

A boa notícia é que apesar do pequeno atraso causado pelo caipirismo, as violas apontam estarem a retomar o caminho normal. O Dr. Paulo Castagna, em 2017 (antes de conhecer e, honrosamente pra nós, ter revisado nossos estudos) já tinha apontado indícios de uma família de violas, não de um instrumento predominante (porém, sem maiores contextualizações e faltando modelos). Ivan Vilela já tem se apresentado há algum tempo usando o nome “viola brasileira”. Roberto Corrêa, após publicar alguns materiais envolvendo outros modelos desde 2016, vem se apresentando atualmente com vários deles juntos em um mesmo espetáculo, de onde pode-se acreditar que, com o tempo, “descobrirá uma forma” de contextualização histórico-científica de todos os modelo existentes. Quando encontrar esta forma, certamente deverá publicá-la em forma de estudo, pois é um pesquisador. Acreditamos inclusive que ambos vão acabar por aceitar até o modelo Viola 12 Cordas (da Família, o modelo mais rejeitado, cuja descoberta devemos todos aos esforços do professor e violeiro paulista Júnior da Violla). Com nossa metodologia científica, não há motivos para rejeitar nenhum dos modelos consolidados no Brasil que tenha lastro histórico e utilização por vários Estados – e o modelo Viola 12 Cordas tem tudo isso, mais até que o modelo Viola Caipira.  

Por nossos contatos pessoais, sabemos que vários pesquisadores já entendem nossas colocações, pois checaram os dados apresentados. Entretanto, terão ainda de encontrar alternativas de tratamento do assunto, vez que a adesão simples ao caipirismo rende ganhos interessantes com aulas, shows, palestras, etc. Aliás, o caipirismo sempre foi rentável para alguns, desde que surgiu – não temos como provar, mas parece ter sido criado para isso (e não há qualquer ilegalidade, se tiver sido). Estudos não precisam atrapalhar lucros – ao contrário, só podem é credibilizar mais as atividades.

Tudo aponta que estamos em uma fase de transição, como tantas que observamos em nossos estudos: a tendência é que em algum tempo a ciência prevalecerá (até aos atrevimentos e jocosidades dos nossos escritos). As pesquisas e entendimentos sobre as violas brasileiras tendem a retomar seu caminho de crescimento e podem vir a se tornar um grande orgulho nacional e internacional. Temos dito e vamos tentar acompanhar tudo – mais aí já serão outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… e vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

ARAÚJO, Alceu Maynard de. A Viola Cabocla [compilação de artigos]. Revista Sertaneja, São Paulo, v. 4, 5, 6, 7, 8, 9, 13 e 14 – de jul. 1958/maio 1959. São Paulo: [internet], 1964

BALLESTÉ, Adriana Olinto.  Viola? Violão? Guitarra?: proposta de organização conceitual de instrumentos musicais de cordas dedilhadas luso-brasileiras do século XIX. 2009. Tese (Doutorado em Música) – Centro de Letras e Artes da UNIRIO, Rio de Janeiro, 2009.

BUDASZ, Rogério. The Five-Course Guitar (Viola) in Portugal and Brazil in the Late Seventeenth And Early Eighteenth Centuries. 2001. Tese (Doutorado em Filosofia) – Graduate School University of Southern California, Califórnia (EUA), 2001.

CASTAGNA, Paulo. Fontes bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII. 1991. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Artes) – Universidade de São Paulo, 1991.

CASTAGNA, Paulo (criador). Viola Brasileira. [artigo de discussão coletiva]. In: WIKIPEDIA: the free encyclopedia. San Francisco, CA: Wikimedia Foundation. 2017.

CORRÊA, Roberto. Viola Caipira: das práticas populares à escritura da arte. 2014. Tese (Doutorado em Musicologia) – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2014.

DIAS, Saulo Sandro Alves. O processo de escolarização da viola caipira: novos violeiros (in)ventano novas possibilidades. 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2010.

FERRER, Marcus de Araújo. A viola de 10 cordas e o choro: arranjos e análises. 2010. Tese (Doutorado em Música) – Centro de Letras e Artes da UNIRIO, Rio de Janeiro, 2010.

FERRERO, Cíntia Bisconsin. Na Trilha da Viola Branca: aspectos sócio-culturais e técnico-musicais do seu uso no fandango de Iguape e Cananéia SP. 2007. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da UNESP, São Paulo, 2007.

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HOLLER, Marcos Tadeu. Uma História de Cantares de Sion na terra dos Brasis: a música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759). 2006. Tese (Doutorado em Música) – Instituto de Artes da UNICAMP, Campinas SP, 2006.

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SOUZA LIMA, Cássio Leonardo Nobre de. Viola nos sambas do Recôncavo Baiano. 2008. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.

NOGUEIRA, Gisela Gomes Pupo. A viola com anima: uma construção simbólica. 2008. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Com. e Artes da USP, São Paulo, 2008.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 [1964].

PETENÁ, César Augusto. A viola brasileira na sala de concerto: Os sete prelúdios de Theodoro Nogueira. 2017. Monografia (Bacharelado em Música) – Faculdade Integral Cantareira, São Paulo, 2017.

PINTO, João Paulo do Amaral. A viola caipira de Tião Carreiro. 2008. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, SP, 2008.

SOUZA, Andréa Carneiro de. Viola – do sertão para as salas de concerto: a visão de quatro violeiros. 2002. Dissertação (Mestrado em Música) – Centro de Artes da UNIRIO, Rio de Janeiro, 2002.

TABORDA, Márcia Ermelindo. Violão e Identidade Nacional: Rio de Janeiro 1830/1930. 2004. Tese (Doutorado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.

TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.

VILELA, Ivan. Cantando a própria história. 2011. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 2011.

VIOLLA, Júnior da. Viola de doze cordas: as seis ordens de uma ilustre desconhecida. [revisão de monografia]. São Paulo, ed. do autor, 2020.

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22 Jun, 2023

LACUNAS – DE DEBUSSY A TIÃO CARREIRO

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“O Pagode de Viola, afluente recente e ladino, é enxerto repicado, chibatado e trepidante do Recortado com o Cururu, admirável pelos ornamentos veementes e sensacionais da viola, tendo os toques secos e desencontrados de violão no contratempo.”

(Romildo Sant’Anna, em A Moda é Viola – Ensaio do Cantar Caipira, 3ª ed., 2015)

            Viola, Saúde e Paz!

            Começamos do final para não precisar explicar depois, aos que ainda não souberem, o que seria um “Pagode de Viola”. A boa definição, que apontamos em destaque, também nos serve para homenagear um dos nossos maiores ídolos brasileiros em termos de pesquisas sobre violas: o escritor, jornalista e pesquisador “Romildo Sant’Anna” (para os íntimos), mas sem esquecer que ele é mestre em linguística, doutor em teoria literária e livre docente em literatura comparada. Sua “obra-master”, A Moda é Viola, teve primeira edição no ano de 2000, e tivemos contato com ela e seu autor a partir de 2016. É daquelas obras que indicamos com ênfase, por ser difícil encontrar nela alguma colocação sem fartas e precisas referências… Nós até conseguimos localizar algumas poucas lacunas, mas é porque somos chatos, obsessivos, “exaustivos” mesmo (em todas as acepções da palavra): desafiamos outros que também sejam capazes de encontrar “links quebrados” neste livro – até porque o Dr. Sant’Anna costuma publicar revisões periódicas, que trazem também muitos conteúdos complementares. Salve engano, já chegaram a cinco reedições – mas que, de qualquer forma (e festejamos por isso), é “por enquanto”, pois o homem não pára! Bom seria fossem todos assim…

            Durante as pesquisas históricas sobre violas, é quase impossível não inserirmos visões sobre teoria musical – atreladas à História, linguística, estatística e outras ciências – como fizemos no livro A Chave do Baú. E é o que continuamos em Brevis Articulus como este, quando levantamos a questão: haveria qualquer ligação possível entre o músico francês Claude-Achille Debussy (1862-1918) e o violeiro mineiro José Dias Nunes “Tião Carreiro” (1934-1993) – ou entre os estilos que representaram?

Precisamos (e queremos) aproveitar para dar outros dois créditos: primeiro, que nos inspiramos em recente resumo sobre o assunto que fizemos em postagem Facebook do amigo e “sócio” Aurélio Miranda, do Matogrosso do Sul; e, para não mentirmos sozinhos, credibilizamos atualizações sobre estudos e fofocas musicais ocidentais contemporâneas com o super competente mestre Matheus Bitondi, de São Paulo (este último, candidatíssimo ao Prêmio Nobel da Paciência, por sempre nos atender em nossas inortodoxas demandas, sejam músicais, linguísticas, acadêmicas, o que for… acho que se consultarmos até sobre ufologia ele atende).   

Já que começamos do final, seguiremos nossa viagem nesse “trem” de trás pra frente mesmo: segundo o sítio oficial apoiado pela família do artista, Tião Carreiro teria inventado o tal Pagode de Viola em 1959. Coincidênca ou não, este criativo e marcante toque de viola teria surgido, então, logo em seguida a uma verdadeira revolução acontecida na música brasileira: a bossa-nova, muito marcada por um também “toque diferente”, só que ao violão, trazido a público com estrondoso sucesso a partir de 1958 pelo baiano João Gilberto (1931-2019). Só em 1958, a emblemática interpretação ao violão da música Chega de Saudade (de Jobim e Vinícius) teve duas gravações, a segunda delas cantada pelo próprio João, de maneira bastante inusitada – e a reação positiva da crítica e do público foi enorme, como ainda é, até os dias atuais.

Além de terem sido duas “maneiras diferentes de tocar”, criadas e lançadas na mesma época, via cordofones populares, destacamos entre as possíveis coincidências que quem teria ajudado a dar nome ao novo toque de Tião, além de ter sido autor de duas entre as primeiras composições gravadas sobre o novo ritmo (Pagode e Pagode em Brasília, ambas em 1959), foi o paulista Teddy Vieira (1922-1965). Teddy, à época, era diretor na gravadora de Tião, a Chantecler – ou seja, talvez possa ter sido mais do que uma simples coincidência, não?

Será que um diretor de uma grande gravadora teria percebido que um novo ritmo estava a balançar as estruturas da música brasileira, já então com reflexos até no exterior, e assim teria resolvido dar ideia de se inventar também um novo ritmo para a viola, com objetivo de faturar algum também, com a nova onda, a nova bossa?

Não temos como provar, mas entendemos que, sendo um bom diretor como parece ter sido, é bem possível que Teddy e sua equipe tenham pensado exatamente isso. Assim como, quando o hoje chamado “sertanejo universitário” começou a fazer sucesso (alguns anos mais tarde, no início da década de 1970), a mesma gravadora teria investido ainda mais na viola, para rivalizar com as guitarras em ascensão, que rapidamente se tornaram sucesso de vendas. Terão também passado a divulgar com grande ênfase o nome “viola caipira” (pouco usado até então), para aproveitar a já comprovadamente lucrativa sugestão de ligação com uma cultura ancestral. E ainda fortaleceram a divulgação empareada da “viola caipira que toca pagode de viola”, que sabemos, gera bons dividendos até os dias atuais. Já destas ações a partir da década de 1970, que apontam um olhar comercial bem atento da mesma gravadora e envolvendo o mesmo artista, podemos apontar com centenas de referências de época.

Deixamos perguntas e apontamos centenas de dados e registros para cada um poder pensar a respeito, se quiser. Até onde entendemos, este tipo de demonstração baseada em dados e fatos não é teorizar, e não teria sido apresentado assim por ninguém antes – e exatamente porque isso que pesquisamos e trazemos a público.

Musicalmente (quer dizer, “com base em teoria musical”), o Pagode de Viola teria alguma coisa a ver com a bossa-nova? Hum… Nunca vimos ninguém falar nada assim também, será que devemos nos atrever? Claro que sim!

Observemos que, pela definição em destaque, faz parte da origem do Pagode de Viola alguns “contratempos ao violão” – um tipo de toque hoje conhecido como Cipó Preto. Trata-se, como bem apontou nosso ídolo Romildo, de acentos (ou “ataques”, ou “toques secos”) dos acordes do violão nos chamados “tempos fracos” dos compassos, caracterizando assim os chamados “contratempos”, para ser fiel à nomenclatura usada – não conseguimos evitar a citação de fontes, pedimos desculpas por isso. A “criação”, ou “adequação ao toque da viola” do tal Cipó Preto (embora sem que tenha sido ele a dar este nome) é requisitada pelo maestro Itapuã Ferrarezi, que assume que teria sido inspirado na Rumba (segundo entrevista concedida a Roberto Corrêa) – mas, na verdade, este tipo de acento deslocado é observado tanto em rumbas, quanto em reggaes e até em xotes e lundus, mesmo quando executados por outros instrumentos, não violões, especificamente. Só chamamos atenção que guardem na memória: é observado em ritmos que apontam ter tido origens na música africana.   

Ora… Quais teriam sido as novidades que João Gilberto apresentou? Qual teria sido essa tal de “bossa” nova? Pelo que pesquisamos, estariam entre as “novidades” o deslocamento de ataque, de acordes e do canto, no ritmo base (que seria o samba, outro ritmo de origem africana). Não são coincidências interessantes? Ah, sim, não podemos esquecer: o Pagode de Viola também segue, de forma geral, a “linha mestra” rítmica do samba, chamada popularmente de “sincopada”, embora a definição téorica de síncope não seja exatamente o que mais caracteriza o samba. “Sincopado”, no caso, é mais no sentido de “desencontrado” mesmo. E também não podemos deixar de observar que o nome “pagode” sempre teria sido, desde bem antes de 1959, o nome dado a reuniões de pessoas para tocar, cantar e dançar. Nestas reuniões se tocaria “samba”, segundo os cariocas, com certa razão – mas como bons mineiros que somos, sabemos que em Minas Gerais, inclusive na região onde Tião Carreiro nasceu, se tocava em reuniões similares um ritmo ainda chamado de “batuque” (que, infelizmente, está quase a cair em desuso).

Sim: o mesmo nome “batuque”, largamente citado, por exemplo, por exploradores estrangeiros em várias regiões do Brasil, no início do século XIX: um ritmo embasado harmonicamente em pequenos cordofones, chamados de “machinho”, “machete” ou… “violas”! Alguns cariocas e seguidores fiéis costumam afirmar que a reunião (e o ritmo, e a dança) já eram chamados de “pagode” desde os primórdios, mas a verdade, segundo os registros, é que o nome teria sido “batuque” (ou baduca, e outras variações próximas, nos textos em línguas estrangeiras). Algumas vezes, conforme menor número de registros, “lundum” ou similar teria sido usado com os mesmos significados (dança, do ritmo, reunião), mas “pagode”, sem dúvida, é um termo bem mais moderno.  

Pedimos desculpas mesmo, mas não conseguimos deixar de citar fatos e dados comprováveis, de época: por favor, sejam misericordiosos com esta nossa fraqueza… É que sempre optamos por “referenciar a História”, ao invés de inventar histórias.

Também não nos fugiu à observação que, na verdade, a técnica de João Gilberto teria registros anteriores: há grande similaridade com contratempos que o paraibano José Gomes Filho “Jackson do Pandeiro” (1919-1982) já teria trazido a público desde 1953, com músicas como Forró em Limoeiro e Sebastiana – esta última, onde o mote-refrão é exemplo claro de contratempos: “… e gritava a, é, i, ó, u, ipisilone…”. Se tiver dúvida, cada letra do “a-e-i-o-u” aponta exatamente o espaço entre os tempos da música, que dão a sensação de “desencontro” (do canto com o acompanhamento).  

Sim, Jackson do Pandeiro também chamou a atenção da crítica e do público na época, por seu talento. Não tanto quanto a bossa-nova depois chamaria, alavancada pelo interesse carioca explícito em apoiar, mas chamou. A diferença técnica é que Jackson dividia os acentos com as notas cantadas – já João Gilberto, também nordestino, os dividia pelo canto (que fazia questão de interpretar mais retilíneo e com volume baixo, mas isso não interfere na acentuação rítmica em relação aos tempos do compasso), mas também “redividia” usando os acordes, atrasando ou antecipando os ataques deles com relação ao que é o mais convencional, sem desencontros (que é aplicar os acordes nas chamadas “cabeças dos tempos”). João Gilberto não fazia acentos constantemente com os acordes, como um “Cipó Preto”, mas aqui e ali, “caía” com eles “fora do tempo”, para dar brilho e caracterizar sua interpretação.   

Outra característica marcante de João Gilberto foi a utilização de acordes considerados mais sofisticados, com escalas e intervalos tipicamente utilizadas pelos jazzistas – assim como também fez muito outro grande nome da bossa-nova, o carioca Tom Jobim (1927-1994. Jobim assinou os primeiros sucessos lançados por João Gilberto, que não apresentava composições próprias – mas de bobo não tinha nada, e conseguiu a simpatia do já reconhecido Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Que Jobim estudava Debussy e muito jazz, até poderíamos demonstrar, mas ainda é cedo para chegar lá – e fugiria um pouco do tema aqui.

Quanto às harmonias, o Pagode de Viola (lançado a partir de composições autorais), se atém mais, até hoje, a acordes mais simples, “caretas”, às vezes apenas com as principais três notas básicas, que inclusive equivalem às notas das cordas soltas, das afinações mais usadas em violas (1ª, 3ª e 5º notas da escala maior tonal, ou seja, intervalos de terças e de quinta). Estas três notas, emitidas juntas, é o mínimo exigido para caracterizar o que Caetano chamou de “acorde perfeito maior” e é por isso que afinações como a da maioria das violas é chamada “aberta” (abertas – quer dizer, soltas – elas já partem de um acorde maior). Isso é bem básico, bem diferente dos tetracordes e acréscimos jazz-bossa-novísticos…

Não podemos deixar de notar que no Pagode de Viola há uma repetição bem característica, baseada em dois acordes (“graus V-I” ou “dominante-tônico”, segundo as teorias da chamada Harmonia Funcional). Coincidência ou não, o mesmo tipo de estrutura, com apenas estes dois tipos de acordes, é a fundamentação de outro ritmo que citamos, o tal “batuque mineiro” – mas também aparece em diversos ritmos mais simples, antigos e até considerados folclóricos, como o cururu citado por Romildo, no destaque de abertura.

Outro acréscimo (ou anexação) que ocorre no Pagode é o recortado – técnica que consiste em abafar as cordas com a mão que comanda o ritmo (não a que desenha os acordes) e que, no caso, marca, no toque da viola, exatamente o tempo forte e a síncope (ou contratempo) logo em seguida. Nesta repetição “interlúdica” do Pagode, marca também a troca entre os dois acordes da viola; diferente do Cipó Preto feito ao violão, a troca de acordes na viola acontece bem na chamada “cabeça” dos tempos (sem desencontros).  

Uma coincidência interessante, mas apenas porque ilustra este nosso texto, onde tanto falamos de “tempos fortes e contratempos”… Caso tenha dificuldade de entender, observe atentamente quando acontecem os grupos de quatro recortados ou “abafados de mão” num Pagode de Viola (é fácil perceber o “tchapt-tchapt”): se estiver bem tocado, o primeiro recorte é no tempo 1; o segundo, entre os tempos 1 e 2; o terceiro, no tempo 3 (vai perceber que o acorde muda), com o quarto “tchapt” logo a seguir.

Isto, naturalmente, num Pagode tradicional, em 4 tempos, como o samba também é – pois tem um “maluco” por aí… (é nóis mess)… que, apenas como exercício, compôs um “pagode ternário”, ou seja, um pagode em três tempos, aplicando recortados entre os tempos 2 e 3… O vídeo, de gravação caseira, se chama “Trepagode” e está em nosso Canal Youtube. E sim, fomos “apredejados pela internet”, por autoproclamados “entendedores e defensores da tradição” – mas não chegou (daquela vez) a sermos ameaçados de morte, então, meno male. A intenção é pura (mas atrevida) de demonstrar que, se Tião criou, outros podem criar, pois os estudos sobre teoria nos habilitam a entender o que foi feito e até tentar ir além. Tentamos fomentar estudos, pois colhemos muito deles. Não “sacaneamos” (por assim brincando dizer), via estes estudos, apenas Tião, como também todos os demais citados neste texto (até Bach!) e vários outros, principalmente pelo que nos revelam e habilitam nossos profundos estudos sobre melodias. Desculpa aí…              

Tecnicamente, no Pagode de Viola há o que chamamos de um “interlúdio de expressão”, fartamente repetido entre estrofes, que estaria entre características que Romildo chamou de “ornamento”. Analisando este tal interlúdio em uma música em tom “Mi maior” [E], o acorde dominante correspondente seria o chamado “Si com sétima menor” [B7]; porém, desde Tião usa-se, ao invés de apenas um acorde, uma variação criativa, onde os dedos ficam deslizando por notas contíguas, mas que pode-se dizer que seja composta de dois acordes relacionados ao B7 convencional: um acorde que seria um “Si com sexta” [B6] e outro, um “Si suspenso com sétima menor” [Bsus4(7)].

Não: provavelmente ninguém nunca tenha citado isso assim antes, pelo menos no que monitoramos das raríssimas análises de formação de acordes publicadas por “violeiros” – mas caso tenha curiosidade em comprovar, apresentamos em nosso Canal Youtube também o vídeo “O mito do Trítono e o Pagode de Viola”, onde demonstramos nota por nota este curioso desenvolvimento, que entendemos possa ter sido criado até instintivamente pelo criativo Tião Carreiro. Descupa aí, mais uma vez…

O que interessa é: até podem não ser intervalos típicos do jazz, como os da bossa-nova – mas alguma sofisticação, mesmo que intuitiva, coincidência ou não também são observadas no Pagode de Viola…         

Os tais intervalos hoje chamados de “típicos de jazz” (ou “escalas do jazz”), eram já famosos na época do lançamento da bossa-nova. Os mais observados seriam o emprego de sétima maior e nona (no acorde tônico), e inserção de nonas, sextas, décimas primeiras e décimas terceiras aos demais acordes. No caso, estas notas “sofisticadas” apareceriam nos solos até improvisados, principalmente dos jazzistas estadunidenses, e foram naturalmente incorporadas aos acordes usados por instrumentistas de harmonia, como o pianista estadunidense Bill Evans (1929-1980). Do jazz, passaram depois a ser usados, tanto os acordes quanto as escalas, em diversos estilos, como no blues e no soul (por lá) e na bossa-nova e na chamada MPB, por aqui. Ninguém nos pergunta, mas em nossa visão, às vezes usa-se demais estas dissonâncias, inserindo tensão onde a música não pede (analisamos tensão e resolução o tempo todo, nas melodias)…  

Mas o que queremos perguntar é: estas escalas, acordes e outras características teriam sido usados pela primeira vez no jazz?

Em nossa última estação deste “trem das lacunas, em marcha-ré”, chegaríamos finalmente à França, do pré-anunciado Debussy. De fato, até Bach já teria utilizado antes, pontual e didaticamente como fazia muito, alguns dos intervalos hoje chamados “típicos do jazz”… poderíamos até apontar alguns exemplos, mas não queremos chocar demais (e teríamos que gastar vários parágrafos sobre nosso ainda desconhecido estudo sobre melodias, o “Cadências Melódicas”).

O fato é que, como pesquisadores atentos e por procuramos nos especializar em melodias, observamos alguns detalhes que não vemos ser comentados por musicólogos e outros curiosos no último século, que se baseiam mais em estudos harmônicos. Sim: “há caroços neste angu” também, mas vamos seguir o tema aqui, sem desviar tanto, pois já estamos a apontar lacunas demais…

Menos complicado de apontar é que já há certo consenso geral, nos estudos ocidentais (segundo Bitondi, o potencial Nobel), que Debussy teria influenciado o jazz, não apenas pelo uso dos tais intervalos, mas pela sua importância na aplicação de “cenas e cores” às composições – ou seja, texturas musicais que teriam surgido no contexto do chamado Impressionismo, período histórico-artístico em que “a arte impressionou o mundo” (desculpem este e outros trocadilhos, é que achamos bem divertido fazê-los). A arte gráfica daquela época, em várias partes do mundo, a partir da França, refletiu (ou foi refletida?) pela sociedade – e a música de Debussy refletiria o Impressionismo também visto em quadros, na moda, etc. Mais uma vez vamos evitar de apontar alguns experimentos similares observados antes em peças de Bach, para não “bach-gunçar” demais a prosa… (ops…).

Deixaremos, porém, como “cereja do bolo”, uma citação que raras vezes vimos ser feita: uma composição de Debussy chamada Golliwog’s Cake Walk, que teria sido criada entre os anos de 1906 e 1908 para sua irmã Claude-Emma – ou “Chou Chou”, para os íntimos. “Golliwog” teria sido um brinquedo da irmã, quando ainda bem pequenina. A música pontua categoricamente a ligação do compositor erudito francês com o Cake Walk, uma dança onde escravizados parodiavam movimentos dos brancos, no ritmo estadunidense chamado ragtime, reconhecidamente precursor e influenciador do jazz. Nem precisávamos apontar registros de época, mas não conseguimos evitar de ir além do que lemos. Aquela música, entre outras, aponta, portanto: influências de música afrodescendente nos trabalhos do francês e que, coincidência ou não, teria depois influenciado (ou “ecoado”, talvez?) na música preta estadunidense, e que por sua vez teria saído a lançar sementes pelo tempo, encontrando ecos em outros estilos pelo mundo.      

No Brasil, não teria sido só no samba e depois na bossa-nova: bem antes a música preta já fazia das boas por aqui, em violas – embora nós, diferente dos estadunidenses, pareçamos ter mais resistência em admitir publicamente esta raiz preta violeira… Mas aí já são outras lacunas, outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… e vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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14 Jun, 2023

VIOLAS A PATRIMÔNIO

VIOLAS A PATRIMÔNIO

“Art. 216: constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira…”

(CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988)

Viola, Saúde e Paz!

Entre começar pela notícia boa ou a ruim, optamos por começar pela péssima: segundo inventariantes, em pesquisas em andamento neste nosso ano de 2023, na ilha Terceira, nos Açores, não estariam mais ativas violas “18×7” – quer dizer, 18 cordas em 7 “ordens”, ou “parcelas”, como se diz por lá. Nem lá, nem em nenhum outro lugar. O modelo ainda existiria até meados da década de 1990, segundo livros de José Alfredo FERREIRA ALMEIDA e José LÚCIO (* = ver referências ao final). Na verdade, constituiria-se de uma espécie de “extensão” (por uma sétima ordem, tripla), ao modelo 15×6 (de 3 ordens duplas e 3 triplas) – este que, felizmente, ainda sobrevive, mas, como vários outros, tanto em Portugal quanto no Brasil, poder-se-ia dizer, numa analogia, que estão “com a vida sustentada por aparelhos” (ou seja, “mais pra lá do que pra cá”, como se diz no Brasil popular).

Não sentimos “apenas” a perda de um modelo (que, no caso, até estaria de certa forma ainda representado pelo citado modelo 15×6), mas nos amedronta bastante a perda de referências concretas, palpáveis e “apalpáveis” – verdadeiros resquícios da História dos Cordofones Ocidentais presentes em cordofones contemporâneos, sobreviventes. Mesmo que este tipo de estudo seja abordado mais profundamente praticamente só por nós, em todo o mundo (por enquanto?), a esperança é que, no futuro, outros estudiosos possam conferir dados e registros de época que contextualizamos, e até aprofundar os estudos que nos atrevemos a lançar em publicações como o livro A Chave do Baú.

No caso, os tais dos “resquícios históricos” seriam os trios de cordas metálicas, que pelos registros até então conhecidos só teriam surgido em Portugal a partir de meados do século XVIII (*ver João Leite Pita da ROCHA e Manoel da Paixão RIBEIRO), mas que refletiriam o observado desde o século XVII nas chitarras italianas (*ver Darril MARTIN e John GRIFFITHS). Por enquanto, só nós temos apontado esta ligação histórica das violas portuguesas com as chitarras italianas e outros cordofones da terra da pizza, nos séculos XV-XVI, com base em contextos histórico-sociais da época envolvendo Portugal-Espanha-Itália (*ver Johannes Tinctoris, De inventione et uso musicӕ, ca.1486 – e LANFRANCO, GANASI, MILANO, entre dezenas de outras referências que levantamos e sempre citamos por aqui). Se os resquícios desaparecerem, junto com os modelos (como já desapareceram os das também extintas violas portuguesas 12×6), vamos acabar por parecer mais malucos do que já somos…

Em tempo, para os que não leram nosso livro ainda: o mais comum (ou mais divulgado), tanto em Portugal quanto aqui, é violas armarem com duplas de cordas – como o nosso famoso modelo top star de vendas, Viola Caipira. Com uma ordem tripla, sobrevivem os modelos brasileiros Viola Nordestina e Viola Branca (“Caiçara” e “Fandangueira”); duas ordens triplas, nos modelos portugueses Viola da Terra e Viola Toeira e na mineirinha brasileira Viola de Queluz; três trios, agora então não há mais sobrevivente…

Sim, sim: você tem razão, estamos a exagerar um pouco mesmo… Há que, por caridade, desculpar nossa dor tão sensacionalista! Não se pode negar que trios de cordas continuam representados… Mas convenhamos: o único modelo brasileiro com dois trios de cordas – Viola de Queluz – hoje em dia praticamente só resiste em peças de coleção, sendo pouco eficazes, na prática, as ações pelo renascimento dele na região de origem (Conselheiro Lafaiete, MG) e nada além dos limites da nossa terra, a dos comedores de pão-de-queijo. Por este motivo, inclusive e apesar de muito “nossa”, não listamos Viola de Queluz em nossa postulação científica inédita de uma Família das Violas Brasileiras. As Violas de Queluz, então, não podem sumir de jeito algum: ainda nem teriam o resquício histórico delas entendido pelos mais famosos pesquisadores do assunto no Brasil (que talvez, por alguma mórbida coincidência, são ambos nascidos em Minas Gerais). A nossa dor, ao escrever este Brevis Articulus, é um tanto de vergonha também, principalmente por nossos conterrâneos, famosos e teimosos…

Mudemos nós então o rumo da prosa para celebrar a prometida noticia boa: os bons ventos nos chegam d’além mar, mas, curiosamente, por um brasileiro – pernambucano arretado, comedor de sarapatel, mas radicado em Portugal desde 1996. Por lá, Mestre José Wellington do Nascimento – ou apenas “Wellington Nascimento”, como assina no Facebook – já vem aprontando das boas em termos de cantorias e toques de violas, e também de vida acadêmica – da qual, para resumir, vamos citar apenas a ótima dissertação de mestrado depositada em 2012 na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada: Viola Da Terra, Património e Identidade Açoriana.

Como se percebe desde o título da dissertação, não é à toa que Mestre Wellington faz parte da equipe que está a inventariar “Violas da Terra dos Açores”, com vistas ao Reconhecimento Oficial como Patrimônio Cultural Imaterial pela Secretaria de Cultura do Governo de Portugal (via Diretório Geral do Patrimônio Cultural).

Precisa explicar que esta é a tal da grande e boa notícia? E… ouviremos “vivas”, ou será que gastamos aqui os parágrafos de introdução sobre desaparecimento de modelos de viola para nada?  

Sim: a ação, lançada em 03 de junho de 2023, tem potencial de colaborar, e muito, com o fim do desaparecimento de modelos de violas (e dos resquícios históricos que eles representam e atestam). É preciso, entretanto, contextualizar algumas coisas – que faremos a partir de informações que Mestre Wellington, mui generosamente, nos concedeu em entrevista exclusiva para este Brevis Articulus:

“Arquipélago dos Açores é uma Região Autonoma e a candidatura está sendo patrocinada pelo Governo dos Açores; está centrada na Viola da Terra (Açores)”.

Para quem não sabe ou não lembra, o Arquipelágo dos Açores, situado no Oceano Atlântico (mais ou menos no meio do caminho entre lá e cá) é formado por nove ilhas de origem vulcânica: Santa Maria, São Miguel, Terceira, São Jorge, Faial, Pico, Graciosa, Flores e Corvo.

Outra contextualização necessária é que o que o projeto estaria a referenciar como “Violas da Terra” especificamente os modelos “[…] Viola da Terra de dois corações com 12 cordas e 5 parcelas – e a Viola da Terra com 15 cordas e 6 parcelas (Ilha Terceira)”. Foi neste ponto, inclusive, que nosso coração (que é único, e não dois, como em algumas caixas de ressonância de viola de lá), se partiu e foi de dor e tristeza, por saber que não mais existe o outro, citado, modelo de “Viola da Terceira 18×7”…

Os nomes “viola da terceira” e “viola terceirense” são os observados nos livros que citamos, para os modelos da ilha específica – e “viola da terra” ou “viola açoriana”, consta como citação geral aos modelos das ilhas do arquipélago. Já o novo projeto parece estar a adotar, a princípio, a nomenclatura “Viola da Terra (Açores)”. Como estudamos muito sobre nomes de instrumentos musicais pela História, estes detalhes nos chamam a atenção. Nosso entendimento é que o nome “mais certo” é o que se consolida pelo tratamento popular, com o passar do tempo. Normalmente este processo natural aponta nomes diferentes de acordo com diferenças organológicas, mesmo que pequenas, a não ser que algum evento social de significativo impacto atue – e em Portugal “calhou” de ser também referência a regiões geográficas de origem ou procedência. Sabedoria popular, talvez? Não sabemos, só sabemos que costuma ser assim, segundo registros. Muitos e variados registros, confirmáveis. Vamos, portanto, observar o que vai acontecer quanto aos nomes dos modelos sobreviventes.

Vida que segue: são então dois os modelos em processo de “inventariamento” (nos permitimos inventar este termo, inspirado no português de Portugal). Depois desta fase, é para serem reconhecidos como Patrimônio de Portugal. “Inventariar”, no caso, seria o trabalhoso procedimento científico exigido para o Reconhecimento ser oficializado, que consiste em fazer levantamentos e contextualizações de registros escritos, iconográficos, de pessoas que toquem e/ou fabriquem os instrumentos, depoimentos, histórias, etc. Tudo o que for possível investigar.

Achas pouco para considerares como ótima nótica? Ora, pois, pá!… Se assim o pensas, diríamos que o que tens é pouca fé. Sem contar que no Brasil, segundo Gil, “café não costuma faiá” (ops… começamos o parágrafo em estilo “portuga” e acabamos por derrapar para estilo coloquialíssimo “brazuca”: foi mal, “desculpe o auê”, como diria Rita Lee…).

Falando sério, o que vemos: será o primeiro modelo de viola portuguesa a ser Reconhecido como Patrimônio (afirmamos porque temos fé); tudo então pode conspirar (e vai) para que, no futuro, defensores e detentores dos demais modelos portugueses também se aviem para um Reconhecimento Nacional; depois, o céu (quer dizer, a Unesco) é o limite, para um Reconhecimento Mundial, como Patrimônio da Humanidade. Oxalá – pois fé, daqui, não há de faltar! E o que fede aqui… Ah, já chega, né? Melhor não exagerar nessas palhaçadas “texticulares”…

O que teriam as violas brasileiras a ver com isso?

Olha que legal: alguns podem achar estranho um brasileiro por lá, envolvido com defesa de Patrimônio Imaterial – mas quem estudar um pouco da História desse tipo de ação político-cultural, hoje mundial, descobrirá que antes mesmo de iniciativas da Unesco como a Convenção do Patrimônio Mundial (de 1972) e a definitiva Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (de 2003), a ideia já era ventilada por aqui…

Sim: “tupiquiniquins”, comedores de feijoada e outras maravilhas, já pensavam o assunto, bem antes do resto do mundo, e teve até lei (Decreto-Lei nº 27, de 30 de novembro de 1937). O mais importante é que a ideia veio de Mário Andrade, então nos primórdios do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), órgão que depois se tornou o “Instituto” IPHAN (não precisa escrever de novo o que o resto da sigla significa, né?).

Duvidou? Confira nas referências (*) ou até no portal internético oficial do IPHAN. E permita-me refrescar mais as mémorias: Mário Raul de Morais Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 – São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo brasileiro (os negritos são em explícita “causa própria” nossa, pois “farinha pouca, nosso pirão na frente”). Sim, senhoras e senhores: naturalmente não são todos, mas quando alguns pesquisadores falam e são ouvidos, por mais malucos que pareçam, o trem costuma andar bem e nos trilhos… (“trem” aqui, como “trem de ferro” mesmo, não no contexto de mineirice, porque as palhaçadas já cansaram… quer dizer… ops…).

Já para finalizar, um resumo cronológico de ações nacionais relacionadas a “Violas a Patrimônio” por aqui, pois faz parte dum contexto interessante: em 2004, o Samba do Recôncavo Baiano foi reconhecido oficialmente (trazendo, como um “Bem Associado”, as Violas Machetes); em 2005, o modo de fazer e tocar Viola de Cocho; em 2011, o Fandango Caiçara (onde as Violas Caiçaras são um “Bem Associado”), foi reconhecido por aqui e entrou até para a “Lista de Melhores Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da Humanidade” pela UNESCO.

Pausa para reler o último parágrafo e perceber que, de maneira direta, apenas o modelo Viola de Cocho já teria efetivamente sido Reconhecido – confira!

Além de estudos em andamento (como das Violas de Buriti, desde 2019, e a possibilidade de Violas Nordestinas poderem vir a entrar, como Bem Associado ao Repente, este reconhecido oficialmente em 2021), em 2017 foi protocolado Requerimento para Reconhecimento de todos os modelos de viola brasileiros (a tal da nossa Família das Violas Brasileiras), em conjunto, como Forma de Expressão válida aos Livros de Registro – uma iniciativa maluca do músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor mineiro João Araújo (é nóis mess!). Um requerimento que, entretanto, atualmente encontra-se arquivado, por pura falta de interesse da classe.

O único Estado brasileiro (até agora) a reconhecer oficialmente as violas como Patrimônio Imaterial foi Minas Gerais, desde 2018 – num curioso Dossiê (*) onde é negado o crédito pela iniciativa registrada oficialmente pela Assembleia Legislativa de MG (!) como Projeto de Lei 1921, de 2015. Aquele PL também foi fruto das insistências e até “brigas” do mesmo maluco, que vos escreve aqui usando o divertido, mas descarinhosamente chamado “plural de falsa humildade”, muito comum nos artigos científicos.

Uma curiosidade que a História provavelmente há de contar no futuro sobre “Violas a Patrimônio” é que tanto o Projeto de Lei realmente originário, quanto a oficialização por Minas Gerais quanto, agora, o início dos processos em Portugal recairam em meses chamados “junho”. Tais coincidências são boas para se criarem lendas, por exemplo, que Santo Antônio (casamenteiro) poderia estar agindo pelas violas, para se vingar de São Gonçalo (considerado o oficial “das violas”, mas que nunca nem foi santo e que teria andado a fazer uns casamentos)…

Finalizando com falares de coisas boas e fundamentadas, que é sempre o melhor, nossa alegria com a (sem dúvida) ótima notícia vinda dos Açores é também porque em 2017 chegamos a convidar, em Almada, violeiros portugueses a entabularmos, juntos, ações de defesa de nossas violas, todas elas, como vistas a no futuro serem reconhecidas como Patrimônio Imaterial da Humanidade… Ou seja, o mesmo filme já teria sido visto antes, né? Entretanto daqueles, como também dos brasileiros, não conseguimos ecos de apoio continuado (ao contrário, há quem até ainda fale mal de nós, pode isso?), mas entendemos que a semente foi lançada: um dia, com muita fé (e, mais ainda, café) há de gerar frutos, como os que já parecem estar a surgir. Esperamos que os registros históricos possam apontar, no futuro, de onde teriam vindo esta maluquice – oxalá e eparreia-aiá! – além de virem a ser bons assuntos para prosas…

Por enquanto, muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS (além das descritas no texto):

FERREIRA ALMEIDA, José Alfredo. A Viola de Arame dos Açores. Separata de Boletim Paroquial da Ribeira Chã, ano XIV, nº100. Ponta Delgada: Ed. do autor, 1990.

GANASI, Silvestro. Regola Rubertina. Veneza: s/n, 1542.

GRIFFITHS, John. At Court and at Home with the Vihuela de Mano: Current Perspective of the Instruments, its Music and its World. JLSA 22, 28 páginas, Universidade de Melbourne, 1989.

GRIFFITHS, John. Las vihuelas en la época de Isabel la Católica. Cuadernos de música Iberoamericana, Madri, v.20, p. 7-36, jul./dez. 2010.

IEPHA – INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. Dossiê para registro dos Saberes, Linguagens e Expressões Musicais da Viola em Minas Gerais. Belo Horizonte, IEPHA, 2018.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. O Registro do Patrimônio Imaterial. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2006.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Dossiê Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2006.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Dossiê Fandango Caiçara. [Dossiê de Registrol]. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2011.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Dossiê Modo de fazer Viola de Cocho. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2005.

IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. O Registro do Patrimônio Imaterial. Brasília (DF): Ministério da Cultura/IPHAN, 2006.

LANFRANCO, Giovani. Scintille di musica. Brescia: Ludovido Britanico, 1533.

LÚCIO, José. Os Sons e Tons da Música Popular Portuguesa. [Apostila]. Lisboa: ed. do autor, 1998.

MARTIN, Darryl. The early wire-strung guitar. The Galpin Society Journal, UK, p.59, maio 2006.

MILANO, Francesco. Intavolatura de Viola o vero Lauto. Napoli: s/n, 1536.

RIBEIRO, Manoel da Paixão. Nova Arte de Viola. Coimbra [Portugal]: Universidade de Coimbra, 1789.

ROCHA, João Leite Pita da. Liçam Instrumental da Viola Portuguesa. Lisboa: Of. Franc. Silva, 1752.

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VIOLAS TROVADORESCAS

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“[…] it is generally allowed that the Troubadours, by singing and writing in a new tongue, occasioned a revolution not only in literature but the human mind.”

 “[…] é geralmente aceito que os Trovadores, cantando e escrevendo em uma nova língua, ocasionaram uma revolução não apenas na literatura, mas também na mente humana”

[Charles Burney (1726-1814), em A General History Of Music, 1782 – trad. nossa].

Viola, Saúde e Paz!

Neste Brevis Articulus vamos aprofundar, um pouco mais, dois entre vários contextos inéditos apresentados em nosso livro A Chave do Baú: a influência das poesias trovadorescas na História Ocidental dos Cordofones – e o período do surgimento do nome VIOLA em occitano – língua também chamada langue d’oc, provençal ou romance, influenciada pelo latim popular e que depois, entre outras línguas, influenciaria o catalão e o francês, e com estas, mais tarde o espanhol e o português.

O nome “trovador” viria a partir do latim trovare, francês trouver, occitano e catalão trobar – que significariam “inventar, descobrir”. É traduzido em francês hoje como joungler (“malabarista”) ou ménestrel; em inglês, juggler ou minstrel; e em espanhol, juglar. Como nosso leitor é inteligente e atento, já percebeu pelas traduções (ou já sabia) que os Trovadores eram artistas de múltiplos talentos: de fato, declamariam versos, cantariam, dançariam, fariam malabarismos, comédia, etc. Qualquer semelhança com os ainda resistentes espetáculos circenses, entendemos que não seria mera coincidência… 

Charles Burney, autor em destaque, foi um músico inglês (cravista, organista, compositor) e também historiador/musicólogo – um erudito respeitado, com várias publicações elogiadas e citadas até os dias atuais. O trecho destacado introduz um profundo e bem embasado desenvolvimento que ele assim justificou, à página 221:

[…] As the origin of Songs and the formation of the Language of every country are so nearly caeval, I hope the reader will allow me to bestow a few pages upon a subject, which though it be thought not absolutely necessary for a musical historian to trace, yet it lies so near his path that he can hardly proceed on his way without its being often impressed upon his mind, fortuitously

(“Como a origem das Canções e da formação da Língua de cada país são quase contemporâneas, espero que o leitor me permita dedicar algumas páginas a um assunto que, embora não seja considerado absolutamente necessário para um historiador musical traçar, fica tão perto de seu caminho que ele dificilmente pode prosseguir sem que se impressione, fortuitamente”).

Concordamos muito com Burney que este assunto esteja “no caminho” de todo interessado pela História dos instrumentos – mas apesar disso, em cerca de uma centena de estudos que pesquisamos, das principais línguas europeias, ele teria sido o único a dedicar maior profundidade às poesias; o único que se aproximou da nossa maneira de analisar o fenômeno histórico chamado Trovadorismo: um evento de grande impacto social, principalmente em seu auge (entre os séculos XII e XIII), e que por isso teria tido grandes reflexos na sociedade, demonstrados nos instrumentos musicais populares.

O musicólogo analisou de forma científica um assunto que mais poderia ser considerado das áreas de “literatura” e/ou “linguística”, apresentando uma cronologia de registros, inclusive manuscritos, em latim e em variações de francês, inglês, italiano, catalão. Assim, foi capaz de apontar contextos histórico-sociais relacionados às poesias (e/ou prováveis letras de canções) desde os Gregos, passando pelos Árabes e os Romanos até chegar ao chamado vulgare (o latim popular) e sua influência no que chamou de “nova língua dos Trovadores” – que seria a que definimos aqui como occitano (e suas outras alcunhas). Qualquer semelhança entre alguns dos caminhos de Burney e parte da nossa metodologia também não acreditamos que seja mera coincidência – e sim comprovação da lógica científica. É bom atestar paralelos com os bons, embora, com todo o respeito, “nós é marrento” e procuramos sempre ir mais adiante do já tenha sido pesquisado – no mínimo, porque vivemos 200 anos depois que Burney se foi, com maior facilidade de acesso a um número maior de fontes.

Na verdade, conforme várias das citações de Burney que conferimos e outras que acrescentamos (como poesias em dialetos alemães, em espanhol e em português, que ele não citou), teria havido uma grande fase de transição, iniciada com a queda de Roma (século V); seguida pela ascensão das diversas culturas então libertas, mas sob influência da Igreja Católica (que mantinha o latim em uso todo o vasto território antes dominado); e somado à influência da invasão dos mouros-árabes (século VIII), com seus instrumentos e musicalidade superior principalmente em liberdade de uso e criação, levada de forma mambembe de reino a reino, que viria depois a dar origem ao tal do Trovadorismo (este que, então amplamente incorporado à cultura europeia da época, atingiu o já citado auge nos séculos XII e XIII).

Tantos séculos de atrito entre culturas diferentes trouxeram reações no cenário social, que, para resumir, viriam culminar por exemplo no chamado “final da Idade Média” (século XV).

Instrumentos musicais populares (que também tiveram suas próprias fases de desenvolvimento) refletiram o contexto histórico-social pelo surgimento de um turbilhão de nomes diferentes (nas diferentes línguas das citadas culturas emergentes) e também por alguns instrumentos terem caído em desuso (ou quase não sendo observados mais em registros) enquanto outros instrumentos surgiram e/ou tiveram mudanças de formato. É o caso dos alaúdes e similares, de caixa de ressonância em formato de pera (ou gota d’água) cortada ao meio longitudinalmente, com fundo abaulado, que por terem sido introduzidos pelos invasores árabes, teriam sido sustituídos gradativamente por instrumentos de caixas cinturadas, de fundo plano, criados pelos europeus – estes últimos instrumentos, principalmente, com variações de nomes próximos a VIOLA.

Definitivamente não teria sido por coincidência, portanto, que nos tais séculos XII e XIII catalogamos os mais remotos registros de variações do nome VIOLA para cordofones. Entre as variações mais literais, localizamos, retraduzimos e inserimos na cronologia: VIOLA do Codex Calixtinus, em latim, estimado entre os anos de 1130 e 1160, da qual não há descrição se dedilhada ou friccionada; o termo VIOLAR (“tocar viola”), em relatos sobre Perdigon, um joglars (“trovador”) catalão, que teria vivido entre 1190 e 1220, com maior probabilidade de sua viola ter sido dedilhada, visto que ligada diretamente a trobar (fazer versos) – mesma probabilidade de uma VIOLA citada no poema Daurel et Beton, em occitano, estimado apenas “entre fins do século XII e início do século XIII”.

Encontramos ainda o termo VIOLARS (“tocadores de viola”), da qual não se tem muitos detalhes, estimado o texto apenas como “do século XII” por manuscritos que o próprio Burney teria pesquisado, mas sem especificar qual. Ele apontou manuscritos dos anos de 1119 e 1137 e, pelo bom nível geral do livro e do autor, acreditamos nele – mas não deixamos de fuçar mais registros até encontrar confirmações – afinal, “marra é marra”…

Burney entendeu que VIOLARS (no século XII) teriam sido tocadores de vielle (cordofone acionado por teclas e por uma roda com manivela) e/ou também de viol (um friccionado pequeno, que ele entendia ser “o mesmo que o violino”). Neste ponto, nossa boa relação com o inglês azedou um pouco: primeiro, porque sem dúvida o nome francês vielle teria vindo de vielle a roue (“viola de roda”), instrumento que ele descreveu bem, mas não no século XII: com o nome latino antecessor organa ou sambuca rotata, a tal “viola de roda” tinha registros inclusive em esculturas e desenhos desde pelo menos o século X, mas, no século XII, vielle já teria aparecido como cordofone (dedilhado ou friccionado por arco) em textos em francês antigo e até em latim (onde aponta ter sido corruptela a partir do francês, surgido antes).

Além disso… viol? Qual é, Burney! Viol só teria sido observado a partir do século XVI! Pior ainda: “violino” também, enquanto nome, só a partir do mesmo século XVI… “Bola fora” total sua, meu amigo – desculpe o trocadilho, mas nessa você se “queimou” (que seria burned em inglês, em adaptação livre e sacana nossa). 

Infelizmente não é raro que estudiosos, mesmo os melhores, equivoquem-se com o contexto histórico de nomes antigos de instrumentos, sendo também muito comum traduzirem nomes antigos para os de sua própria língua. O mais grave do equívoco é interpretarem que as características dos instrumentos que conheciam sempre teriam sido as mesmos, desde registros mais antigos – muitas vezes analisando apenas por alguma similaridade ou semelhança nos nomes. É por isso, inclusive, que a maioria dos estudiosos pelo mundo considera que só teriam existido violas “de arco”. Esta lacuna observamos muito nos excelentes e muito aprofundados estudos de vários deles. O bom é que grandes estudiosos costumam sempre apontar as fontes pesquisadas, então pudemos localizá-las e as retraduzir, com nosso olhar atento, à procura de detalhes que pudessem revelar possíveis violas dedilhadas.

Foi exato este o caso: Burney teria identificado, entre trovadores, além dos VIOLARS: JUGLARS (que para ele teriam sido tocadores de flauta); MUSARS (para ele, tocadores de outros instrumentos) e COMICS (comediantes). Dos quatro nomes, Burney só teria acertado “comediantes”: uma “queimação” geral…

Com certa dificuldade, alguma sorte e muita atenção (pois nem Burney nem outros citaram), conseguimos localizar um texto muito semelhante, do francês Cesar de Nostradamus (1553-1629) – filho do famoso astrólogo – à página 132, de publicação de 1614 de seu livro L’histoire et Chronique de Provence (“A História e Crônica de Provença”):

[…] sur leurs lyres & instruments, dont ils furent appellez Troubadours (c’est à dire Inventeurs) Violars, Iuglars, Musars & Comics, des violons, fleuttes, instruments musicaux & des Comedies.

(“em suas liras e [outros] instrumentos, os depois chamados Trovadores – que quer dizer Inventores – Violars, Juglars, Musas e Comediantes, com seus violons, flautas e [outros] instrumentos de música e comédias”).

            Um “bombomzinho”, não? Sim… Só que temos que desembalar antes de comer este bombom: Nostradamus não citou detalhes sobre os instrumentos, nem fontes, nem datas – mas apontou narrativas de personagens que apontam que o texto seria do século XII: ok… porém, citou violon – nome que em francês, no século XVII, seria violino (talvez, aí, tenha enganado Burney), mas no século XII, ainda nem existiria… Estes autores desatentos! Bom… Mesmo em um texto em francês, já tínhamos percebido que os termos que também teriam chamado a atenção de Burney (pois não os traduziu para o inglês) estariam em occitano ou catalão (para nós, que falamos português, é fácil perceber). Bom, bom: descascado o bombom, era mesmo dos bons – com destaque à citação de lyres (instrumentos mais conhecidos como dedilhados), feita por Nostradamus, mas não por nosso então já ex-amigo Burney.

            Os apontamentos equivocados de Burney foram depois citados (sem muitos questionamentos) por vários pesquisadores, como o escocês John Gunn (em 1789) e os ingleses Carl Engel (em 1883), Francis Weber (em 1891) e Christopher Page (já em 1987). Nenhum deles apontou ter observado o texto de César Nostradamus, nem os equívocos de Burney – e muito menos um detalhe a mais que observamos: Burney citou como ingenious and probable (“genial e possível, provável”) uma opinião do filólogo francês Pierre-Alexandre Levesque de La Ravallière (1697-1762), que então achamos interessante fuçar em seu livro Les Poesies du Roy de Navarre (“As Poesias do Rei de Navarre”).

Em publicação de 1742, Ravallière arriscou o que chamou de uma nouvelle etimologie (“nova etimologia”) para o termo em francês jongleurs: que poderia ter sido originalmente ligado a ongles (“unhas”), ou seja, específico a músicos que tocassem instrumentos dedilhados. O desenvolvimento, demonstrado por várias citações de dicionários e poemas antigos, é que anteriormente o termo teria significado Enchantieres & Multeplieres (“encantadores e multiplicadores”) de palavras; estes, a medida que começaram a ficar mais raros, foram sendo ubstituídos por outros membros das trupes bem menos qualificados naquele tipo de arte – e assim o nome passou com o tempo a ser usado para significar “malabaristas”, também no sentido figurado de bourder & mentir (“trapacear e mentir”). Todos os artistas se fantasiariam e fariam brincadeiras, inclusive os músicos, e todos teriam passado a serem vistos como “malabaristas” – tanto no sentido figurado quanto no real.

Entende-se que “tocar com as unhas” poderia então ser um indicador de que os JUGLARS dos manuscritos e fontes de Nostradamus e de Burney pudessem tocar instrumentos dedilhados, distinguindo-os assim dos VIOLARS, que então tocariam “violas” ancestrais – mas é preciso não derrapar nas cascas de banana que tantos pesquisadores derrapam: nem todas as violas teriam sido friccionadas por arco! Neste caso, cruzamos os registros que citamos, do mesmo século XII, observadas em textos em latim, occitano e catalão (e que nem Ravallière, nem os demais indicaram ter pesquisado). Vantagem para os marrentos, então!

Como os estudiosos apontam terem tido foco em variações do nome “viola” apenas como friccionados, não teriam levantado e organizado um bando de dados como o nosso, nem teriam atestado a evolução histórica do significado de jongleurs (dados que se complementam e se confirmam, vistos assim, em conjunto), a preciosa informação teria se perdido na História até agora.

O termo VIOLARS não teria sido observado literalmente em outras fontes antigas além das que César Nostradamus e Burney teriam pesquisado. Segundo especialistas em línguas provençais, entre os séculos XII e XIII outros termos próximos teriam sido observados em manuscritos, para “tocadores”: Raynouard (1843, p. 561) apontou viulaire e violador – ambos os termos, confirmados por Mistral (1879, p. 1128), que acrescentou violaire – e os três termos foram confirmados por Levy (1915, p. 791). Já o musicólogo Galpin (1911, p. 88) teria observado os termos vilours e vidulators – este último, bastante próximo a vidulatores, que teria sido mencionado por John Garlande, segundo Rubin (1981, p. 82-83). Observa-se, entretanto, que as pronúncias seriam todas relativamente próximas – e sabe-se que o occitano teria sido língua comum em boa parte de territórios catalães e franceses. Sem contar que em poesias (a maioria das fontes da época), as variações orais por causa de adequação a métricas e rimas, ao serem transcritas poderiam apontariam este tipo de variações de grafias (uma observação que fazemos por nossa experiência em composição de letras de músicas, e que Burney também teria constatado no desenvolvimento destacado na abertura deste Brevis Articulus).

Mesmo com o Trovadorismo já a caminho do desaparecimento – que teria se dado após a chamada Peste Negra, no século XIV – o termo VIOLA teria sido ainda o mais observado nos reinos de Navarra e de Aragon, em mãos de juglares (“trovadores”, em espanhol), provenientes de territórios franceses e italianos, segundo pesquisas muito embasadas da Dra. Martinez (1982, p. 1042-1044). Já Portugal, que se estabeleceu como Reino unido e independente também no século XII, só se conhecem registros do nome VIOLA a partir do século XV, o que é muito significativo…

Estas, pois, as muitas evidências de instrumentos chamados “viola” a partir do occitano durante o Trovadorismo – quando é preciso estar atento quanto a descrições, pois poderiam ter sido tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco, no início. Há ainda variações bem próximas, observadas em textos em francês, dialetos alemães, variações do atual inglês, em italiano… mas aí já são outras prosas!   

             Muito obrigado por ter lido até aqui… E vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS (além das descritas no texto):

ENGEL, Carl. Researches into the Early History of the Violin Family. London: Novello, E&Co., 1883.

GALPIN, Francis W. Old English Instruments. London: Methuen, [1911].

GUNN, John. The Theory and Practice of fingering the Violoncello. Reino Unido: Ed. do author, 1789.

LEVY, Emil. Provenzalisches Supplement-Worterbuch. Leipzig: O. R. Reisland, 1915.

MARTINEZ, Maria do Rosario Alvarez.  Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos. 1981. Tese (Doutoramento em História da Arte) – Faculdade de Geografia e História, Universidad Complutense de Madrid. 1981.

MEYER, Paul. Daurel et Beton: chanson de geste Provençale. Paris: Firmin Didot, 1880.

MISTRAL Frédéric. Lou Tresor dou Felibrige ou Dictionnaire Provençal-Français. v.2. Paris: H. Champion, 1879.

PAGE, Christopher. Voices and Instruments of the Middle Ages: Instrumental Practice and Songs in France 1100-1300. London: Dent, 1987

RAVALLIÈRE, Pierre A. L. de la. Les Poesies du Roy de Navarre. v.2. Paris: L & J Guerin, 1742.

RAYNOUARD, François J.M. – Lexique Roman ou Dictionnaire de la Langue des Troubadours. v.5. Paris: Chez Silvestre, 1843.

RUBIN, Barbara Blatt. The Dictionarius of John de Garlande. Laurence: Coronado, 1981.

WEBER, Francis J. A Popular History of Music from the Earliest Times. London: Simpkin, Marshall, Hamilton , Kent & Co., 1891.

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1 Jun, 2023

VIOLLA DE JÚNIOR: 12 CORDAS ILUSTRES E COM MUITA HISTÓRIA.

VIOLLA de JÚNIOR: 12 cordas ilustres e com muita história.

O quadro da santa ceia, doze apóstolos tem

Minha viola não é santa, tem doze cordas também

Doze meses tem o ano, doze horas tem o dia

Doze horas tem a noite, esta noite é de alegria

Esta viola divina, já me deu o que eu queria

(trecho da música Viola Divina, de Tião Carreiro & Paraíso)

Viola, Saúde e Paz!

Em nosso livro A Chave do Baú tentamos desembaraçar para os leitores o enorme novelo que envolve número de cordas em cordofones populares, com foco no pouco pesquisado recorte do acontecido no nordeste do Brasil entre as décadas de 1950 e 1970. É preciso estar atento e forte: na época existiriam no Brasil, só com base em catálogo da fábrica Gianinni de 1954, “violas” 10×5 e 12×6 – e “violões” 6×6 e 12×6… (para quem caiu de paraquedas em nossos textos, “10×5” significa “dez cordas em cinco ordens” e assim sucessivamente. Fique esperto, são dados importantes!).

Já de cara não levamos muito em consideração sobrenomes que aquela e outras fábricas davam, nem nomes pontuais como “viola divina”, “viola de pinho” e similares, pois comparando com centenas de matérias de jornais e outras fontes, observamos quais os nomes que de fato “pegavam” no gosto público, tendo sido repetidos por muito tempo, com expressivo número de citações (que são, inclusive, também os mais citados por estudiosos sérios). Duvidou? Na nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, confira os quadros com dados coletados na Biblioteca Nacional Digital e outros periódicos, além das também já citadas fontes.

Pausa para atualizar: já lemos mais de 300 livros, mais de 100 trabalhos “escolares” (teses, dissertações, Trabalhos de Conclusão de Curso – “TCCs”) e mais de 200 artigos. Na tal monografia apontamos item por item, em ordem cronológica, desde o século XVI até os dias atuais – cada item, obviamente, com sua respectiva transcrição e/ou tradução a partir de diversas línguas estrangeiras, quando foi o caso. E cada item com suas respectivas fontes para quem quiser conferir. Sim, sim: “o bagulho é sinistro” mesmo (como diriam alguns hoje em dia); não brincamos com informação histórica, muito menos com a inteligência de quem nos lê.

O que mais interessa é que aqueles instrumentos citados no catálogo existiram, eram diferenciados principalmente pelas armações de cordas e teriam estado à venda em lojas por grande parte do Brasil. Adicionamos ao caldeirão de pesquisa um tempero que chamamos de “o pulo do gato” de quem quer entender a História dos cordofones: uma vez que um instrumento tem registro continuado (em qualquer época ou lugar), a tendência é que ele siga existindo por muito tempo – às vezes com outros nomes, às vezes na mesma região, mas também em regiões ligadas culturalmente, às vezes com pequenas alterações de detalhes, etc. E a “pá de cal”, a marca defintiva de morte científica, até para pesquisas de gente experiente: é preciso distinguir com muita atenção o que seria variação pontual e o que seria característica relevante, continuada, expressa por grande número de evidências…

É aí que a vaca tosse e quase engasga, pois estamos a tratar de instrumentos populares, construídos sem regras rígidas, por povos criativos (os brasileiros, então, dos mais criativos). Para ser sério e honesto, não se pode desprezar nenhum fato – e a liberdade de construção e utilização é fato até hoje – muito mais, imagine, quando nem existia internet… Ou melhor: imagina quando não existia ainda nem foto, para se ter base de comparação de construção de um instrumento musical?

Pode ser que esteja pensando agora: mas e a iconografia? Quanto a esculturas, desenhos, pinturas, iluminuras e similares é bom considerar que eram feitos por artistas sem compromisso formal de refletir a realidade das peças retratadas. Creiam: vários pesquisadores pelo mundo se fiam apenas em iconografias e se dão mal há séculos – principalmente se imaginarem, sem checar, que os instrumentos retratados teriam existido mesmo, exatamente com as características mostradas naquelas peças artísticas, e que teriam os nomes que apareciam em registros escritos da mesma época… Esta última correlação está longe de ser garantida: mesmo que um pintor ou escultor escrevesse o nome que ele achava que os instrumentos teriam nas próprias peças, seria o nome utilizado apenas naquela região e língua específica. O que observamos, embora diferente do que muitos linguistas defendem, é que vários nomes de instrumentos eram gerados a partir de períodos longos, muitas vezes pela influência de várias línguas diferentes ao mesmo tempo. Estudar isso “né brinquedo não”!

Além disso, por sermos também artistas, podemos afirmar que é bom desconfiar de nós às vezes: nosso principal compromisso quando estamos a fazer arte, é com a arte em si – e arte não é ciência: está, ao contrário, longe de ser correta, sequer previsível.

No caso, nós sabemos nos portar como “não artistas” quando precisamos – por isso afirmamos que o mais seguro (ou menos inseguro) é cruzar todo tipo de informação comprovável que for possível conseguir – um grande e variado número delas; também é bom sempre duvidar de tudo e só apontar o que parecer ser mesmo incontestável, mas apresentando todas as evidências e desenvolvimentos, sem preguiça. É uma pena, pois as pessoas comuns costumam não gostar de ler muito, adoram histórias curtas, fáceis de entender, sem se importar se seriam inventadas ou não… É neste ponto que vários pesquisadores escolhem entre “serem honestos e aprofundados” ou só “ganhar dinheiro e notoriedade” – esta última opção, bem mais fácil: basta dizer o que o povo quer ouvir, do jeito que gostam que seja dito.

Voltando às cordas, mas não como nos ringues de luta, além daqueles instrumentos “de fábrica” do catálogo Gianinni, acrescentamos que teriam existido ainda, na época, algumas violas 12×5: estas existiriam em Portugal pelo menos desde meados do século XVIII e por aqui, as mais antigas “Violas de Queluz”, do século XIX, também teriam evidência de terem sido assim. Portanto, um registro escrito de “viola de 12 cordas”, sem mais detalhes, não comprovaria com precisão como teria sido o instrumento. Entendeu? “12 cordas” poderia significar “viola de cinco ou de seis ordens” (cordas em duplas ou em trios), ou poderia ainda até ser um violão… Sério: não seria mais fácil ignorar estes registros, pois daria muito trabalho investigar? Pois é o que parece ter sido um dos fatores levados em consideração por pesquisadores de violas.

Soma-se que haveria interesse comercial (e/ou afetivo, quase religioso) em divulgar apenas o modelo mais conhecido (leia-se “o mais vendido”), à epoca das pesquisas (a partir da década de 1980), conhecido Viola Caipira. Aqui, um equívoco básido de pesquisa histórica: imaginar que o passado teria sido igual aos dados conhecidos do presente. O pesquisador Roberto Corrêa, por exemplo – um dos dois maiores formadores de opinião do meio da viola, defendeu em seu doutoramento a década de 1960 como de “avivamento da viola caipira” sendo que, à luz das fontes de época, os instrumentos ainda não seriam contundentemente chamados assim, prevalecendo o nome geral “viola”; sequer na época de que Cornélio Pires fundou o caipirismo (entre 1910 e 1945) as violas eram chamadas “violas caipiras”, nem pelo próprio e empresário paulista. O entendimento equivocado, porém fácil de ser aceito pelo menos atentos, é que as violas teriam sido como o violão: um modelo padronizado, praticamente único. Violas de 12 cordas (assim como outros modelos de viola) foram então convenientemente sendo “esquecidas”, principalmente pelos poucosque se empenharam em pesquisar as violas brasileiras nas últimas décadas. Na dúvida sobre esta afirmação, não é tão difícil, qualquer um pode conferir: não são muito mais que 50 os trabalhos acadêmicos depositados por brasileiros desde a década de 1980 – e antes destes, só há alguns poucos artigos desde a década de 1950.

Muitíssimo curioso é que a maioria dos pesquisadores indica a variedade de afinações das nossas violas (indício mais do que claro de que elas tiveram comportamenteo histórico diferente dos violões, que usam a mesma afinação das guitarras desde o século XVII, similar à das vihuelas e dos alaúdes de antes) e até, às vezes, os pesquisadores apontam alguns modelos diferentes: estes modelos, quando não são apontados como tendo sido gerados depois do “divino” modelo Viola Caipira (um equívoco inacreditável de falta de fundamentação em registros de época), são indicados como “curiosidades” regionais, naquele inegável aspecto da liberdade popular, que comentamos há pouco – mas que no caso dos modelos da Família das Violas Brasileiras (postulação inédita nossa) não cabe, por critérios que sempre (re)citamos feito mantra: grande número de registros, nomenclatura continuada, estudos existentes, evidência em diversos Estados além do considerado “de origem”.

Claramente, as colocações cientificamente equivocadas (mas convenientes ao caipirismo) demonstram, entre outros fatores, uma falta de entendimento da tendência de continuidade histórica demonstrada por cordofones: basta comparar com as violas portuguesas, consolidadas por lá também em uma família de instrumentos similares, e se perguntar: por que diabos aconteceria diferente por aqui, se estivemos sob o jugo deles do século XVI ao XIX? Quantos detalhes da nossa cultura (além da obviedade de falarmos a mesma língua) são necessários para atestar que temos, sim, algumas características próprias – mas que o “grosso” das nossas origens, a maior quantidade de influências, devemos diretamente aos portugueses? Ok: rejeitar o colonizador é compreensível e até, de certa forma, nobre – mas desprezar ou querer deturpar fatos e registros históricos é muito sério.

Uma atenuante (antes que dê vontade de sair estrangulando pesquisadores por aí) é um comportamento muito observado: pesquisadores costumam segundar outros, mais antigos e que já tenham atingido notoriedade pública e/ou acadêmica. É aceito que pesquisas se baseiem em outras pesquisas anteriores – assim, se um grande estudioso se equivoca (ou distorce, ou despreza algum fato por alguma motivação pessoal) é grande a possibilidade de pesquisadores posteriores secundarem aquelas colocações sem discutir nem conferir os dados. Entendemos que não deveria ser assim: diferentemente, ao se basear em visões de terceiros, por mais competentes que eles possam ser, é desejável que sejam checadas fontes de época, o desenvolvimento feito e até criticar e acrescentar algo ao que já fora feito (neste último caso, talvez seja exagero nosso, mas é o que fazemos sempre).

Acreditem: há até doutoramentos aprovados por grandes universidades onde quase não encontramos citações a fontes de época – só “copiei e colei” de visões de outros pesquisadores! E, como somos “chatos”, conferimos todas as citações feitas em trabalhos sobre violas e observamos que o que existe de “links quebrados” (ou seja, citações cujas fontes não comprovam o que foi citado) é… nem sabemos como melhor descrever… Incrível? Frustrante? Vergonhoso? Escolham aí o termo que preferirem…

 Dentro de todo este cenário, entretanto, há um trabalho a ser louvado, relembrado, comemorado. Trata-se do conjunto de esforços do professor, violeiro e pesquisador Júnior da Violla, de São Paulo (SP). Artigos, TCC com revisão voluntária apresentada após cinco anos do primeiro depósito (fato raríssimo no meio) e atuação continuada, disponibilizada diariamente pelas redes sociais virtuais. Não que seja fundamental, mas agrega bastante valor também o fato de Júnior ser bacharel em Música (FAAM) e formado também em Música Antiga (EMESP).

Atestamos literalmente “palavra por palavra” o trabalho, pois tivemos a honra de fazer revisão ortográfica do TCC – que, então revisado e atualizado, foi disponibilizado em 2020; e mais honra ainda de travar com (ou seria contra?) o pesquisador verdadeiras batalhas de discussões sobre descobertas e métodos de pesquisa, desde aquela época até os dias atuais. Nós, que de bobos só temos o jeito de andar, procuramos sempre extrair e aprender ao máximo, observar bem o algumas vezes até irritante pragmatismo de Júnior quanto às análises. Isto se reflete em vários dos procedimentos que hoje adotamos, e, não à toa, citamos na grande introdução deste Brevis Articulus; porém, só amadurecemos mesmo a visão quando, nos anos seguintes, mergulhamos também à procura de dados sobre as Violas 12 Cordas pois mergulhamos atrás de cada modelo consolidado a fim de atestar nossa postulação da existência de uma Família de Violas Brasileiras. Foi então que compreendemos na prática a complexidade do assunto: conforme já descrevemos, há poucos registros, nenhuma outra pesquisa prévia específica teria sido feita, e várias armações de cordas possíveis, sendo que poucos teriam registrado estas variações em detalhes. Foi então que também viemos a reconhecer mais a importância do trabalho de Júnior da Violla, que entendemos ainda precisa ser mais valorizado publicamente, sobretudo no meio da viola.

Se estaríamos a exagerar porque falamos de um amigo? Ah, não existe qualquer possibilidade disso! Nossa relação quanto a pesquisas sempre foi muito mais pautada por “tapas” do que por “beijos” (como se diz no popular). E, em nossa visão, o trabalho de Júnior ainda está longe de ser perfeito: esperamos que possa melhorar muito quando ele resolver partir para uma dissertação de mestrado ou, até melhor, se possível, uma tese de doutoramento. E afirmamos isso, para ele e para todos, sem qualquer medo de sermos mal interpretados (como arrogantes, por exemplo) – embora quem não gosta dos fatos que apresentamos parece gostar de nos acusar de arrogante por puro prazer… e/ou, no caso, por parecerem achar mais fácil atirar no mensageiro, ao invés de ler e conferir a seriedade e exatidão da mensagem (os dados levantados). Faz parte? Se faz não sabemos, mas que é “um saco”, é…

Desabafos à parte, fato muito mais importante, seguindo na argumentação, é que agora existe à disposição um banco de dados muito maior e muito mais organizado do que existia cinco anos atrás. Só a ampliação de fontes em diversas línguas, já retraduzidas e reinterpretadas à exaustão, que contextualiza as violas com a História ocidental do cordofones, já pode municiar e embasar bem melhor a já excelente visão pioneira de Júnior da Violla. Isto, naturalmente, se ele quiser utilizar o que disponibilizamos, pois passa longe de ser garantido: como dissemos, e agora exemplificamos, o mais provável é que Júnior da Violla não aceite nossas sugestões. “Apesar dessas teimosias” (escrevemos entre risos, como se não fôssemos também teimosos), a ele se deve respeito e até gratidão, pois entendemos que “o justo é o justo” – e infelizmente são raros os trabalhos honestos quando se trata de violas no Brasil.

A Júnior da Violla devemos, entre outras, a atestação via instrumento remanescente (além de fotos e até vídeos): uma Viola 12 Cordas, em seis duplas de cordas, que foi utilizada pela dupla Mandy & Sorocabinha, na década de 1930. Sim: curiosamente, no meio do caipirismo existia a utilização do modelo (conforme dissemos, que depois foi “esquecido” por conveniência), sendo que é possível que outras duplas também utilizassem, à época (conforme letra de música destacada no início). Além disso, um acervo considerável de fotos e dados de instrumentos similares, nacionais e estrangeiros, parece estar sendo preparada pelo pesquisador – coleção que certamente seria inédita no mundo (ops… isso talvez seja spoiller – foi mal!).

Em recente entrevista, Júnior revelou que uma de suas motivações iniciais – que remontam ao ano de 2011 – teria sido a procura por um instrumento que fosse capaz, ao mesmo tempo, de executar peças típicas tanto para violão quanto para viola, para facilitar as aulas que ministra há décadas (Júnior é pioneiro, por exemplo, em aulas pela internet). Suas primeiras referências de utilização similar teriam sido: uma viola de Heraldo do Monte – que curiosamente teria sido sugerida ao guitarrista em 2004 pelo Dr. Ivan Vilela, pesquisador e grande formador de opinião no meio da viola que, entretanto, não se pronuncia a respeito da comprovada existência histórica do modelo; outra viola, de Zeca Collares – confirmada em postagem do ano de 2009, no Youtube, onde se lê que o músico buscava poder utilizar tanto a afinação Cebolão quanto a Rio Abaixo em um mesmo instrumento – e ainda teria sido referência para Júnior o pequeno modelo de violão estadunidense Mini-Maton.

Atualmente, além do pernambucano Heraldo do Monte e do mineiro Zeca Collares, utilizam regularmente Viola de 12 Cordas os também mineiros Luiz França e Francisco Furtado Filho; os paulistas Ricardo Vignini, Bruno Sanches, Thiago Paccola e Diogo Matias; e o gaúcho Valdir Verona. Já fabricaram Violas de 12 cordas, entre outros: a fábrica de Instrumentos Rozini e os luthiers paulistas Luciano Queiroz e Levi Ramiro – este último, especialista em Violas de Cabaça, teria chegado a mesclar modelos ao criar em 2017 uma Viola de Cabaça com 12 cordas, inclusive uma encomendada recentemente e já incorporada aos shows dos paulistas André Moraes e César Petená. Este recente espetáculo didático é o primeiro a utilizar em cena, ao mesmo tempo, todos os modelos da Família de Violas Brasileiras.

Já a contextualização histórica do modelo Viola de 12 Cordas é bastante vasta (bem maior que a do modelo Viola Caipira, por exemplo) e, em si, já é uma explanação resumida sobre a História das violas dedilhadas e cordofones correlatos. A mais remota referência de relação com seis ordens de cordas viria dos alaúdes, estimada desde o século XIV (no caso, como até hoje, os alaúdes utilizam 11×6, ou seja, com uma das ordens singela); a mesma armação de cordas continuaria, a partir daquele século até fins do século XVI, nas vihuelas espanholas – comprovada por vários métodos de autores como Bermudo, Milan, Fuenllana e Amat. Este último, em catalão, não citou para as seis ordens a vihuela, mas chamou de vandola – e ao método dele é creditado o início da queda de uso das vihuelas – porém, na Itália, há registros no século XV (pelo musicólogo belga Johannes Tinctoris, no tratado De inventione et uso musicӕ) que “violas” seriam tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco, exatamente como as vihuelas; que no século XVI, seis ordens duplas (ou “geminadas”) seriam utilizadas em instrumentos chamados violone no século XVI (por Lanfranco e Ganasi) e “viola, o mesmo que alaúde” (por Milano). Muito provavelmente, por causa destas últimas evidências na Itália, teriam sido também de seis ordens as primeiras violas portuguesas, com registros no século XV – pois ainda no citado século XVI, em Portugal, o Regimento dos Violeiros especificaria esta armação como “a oficial” para violas. Depois, durante a fase de transição que apontou o retorno do uso de seis ordens em cordofones europeus, historicamente mais justificável a partir da Espanha (entre 1760 e as primeiras décadas do século XIX, quando se consolidou o atual violão 6×6), as guitarras 12×6 (também chamadas pelos portugueses de “violas”) teriam tido seu auge no ano de 1799 (apontado, entre outros, por Romão) e teria registros de uso pelo menos até o ano de 1826 (conforme método de Dionísio Aguado & Garcia, manuscrito apontado por Tyler & Sparks). Seis ordens duplas também surgiriam e ainda resistem nas chamadas guitarras portuguesas – inspiradas nas english guitars, hoje extintas – embora estas duas últimas seriam cistres, ou seja, de caixa arredondada e não cinturada como as violas e guitarras.

Todo este lastro histórico não deixa dúvidas de porque teria surgido (a partir de Portugal, naturalmente), e depois se consolidado no Brasil, o modelo Violas de 12 Cordas – violas que seriam ilustres desconhecidas se não fosse o teimoso talento científico e grande dedicação inicial de Júnior da Violla.       

            Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

REFERÊNCIAS:

AMAT, Joan Carles. Guitarra española y vandola… Valência: Augustin Laborda, [1596].

BERMUDO, Juan. Declaracion de los Instrumentos Musicales. Madrid, s/n, 1555.

FUENLLANA, Miguel. Libro de Musica para Vihuela – Orphenica Lyra. s/l: s/n, 1554.

GANASI, Silvestro. Regola Rubertina. Veneza: s/n, 1542.

LANFRANCO, Giovani.  – Scintille di musica. Brescia: Ludovido Britanico, 1533.

MILAN, Luis. El Maestro. [Valencia]: s/n, 1536.

MILANO, Francesco. Intavolatura de Viola o vero Lauto. Napoli: s/n, 1536

MORAIS, Manuel. A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789). Nassare Revista Aragonesa de Musicología XXII, Zaragoza [Espanha], v1, nº1, p. 393-492, jan./dez. 1985.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 [1964].

ROMÃO, Paulo César Veríssimo. 1799 – O Ano dos Métodos para Guitarra de Seis Ordens. In: V Simpósio Acadêmico de Violão da Embap, 2011, Curitiba, Anais […]. Curitiba: Embap, 2011.

TYLER, James; SPARKS, Paul. The Guitar and its Music: from the renaissance to the classical era. Nova Iorque: University Press, 2002.

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25 Mai, 2023

“GUITARRAS” X “VIOLAS”: UMA DISPUTA ANCESTRAL

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[…] The author has suggested a western Asiatic origin of the word: Ossetic fandir (related with pandur), Tawgy féandir, Jenissei dialect of Samojedic jedilo, Old Nordic fidlu, Anglo-Saxon fidele. Later on, the word lost its dental between the two vowels and became fele in Norwegian, viéle in Old French and viola in Italian.

 

“O autor [Sachs] sugeriu uma origem asiática para a palavra: fandir osseta [região do Cáucaso], (relativo a pandur), féandir Tawgy [samoiedo, Montes Urais russos], jedilo dialeto samoiedo Jenissei, fidlu nórdico antigo, fidele anglo-saxão. Mais tarde, a palavra perderia o dental entre duas vogais e se tornaria fele em norueguês, viéle em francês antigo e viola em italiano”.

(Curt Sachs, The History of Musical Instruments, 1940, p. 274-275)

 

Viola, Saúde e Paz!

Já ouviu falar que é bom manter “um olho no gato, outro no peixe”? Em nossas pesquisas este se tornou um exercício constante. Neste tipo de “olhar” também conhecido como “de soslaio”, como na chamada “direção defensiva” de veículos, mantemos o foco nas violas, mas tentarmos não perder nunca de vista o que acontece à volta, pela História – principalmente com outros cordofones similares. Já começando com o próprio nome “viola”, por nós usado para dois instrumentos bem diferentes. Nós descobrimos porque isso acontece e vamos revelar aqui – mas é segredo… ou melhor: é “tesouro”!  

Foi por estes olhares que nos deparamos com uma curiosa “disputa” ancestral, entre dois cordofones com caixa e braço que nos últimos séculos passaram a ser os mais conhecidos e praticados em todo o mundo, e estão consolidados em “duas categorias distintas”: “guitarra” (e nomes parecidos nas diversas línguas) representa instrumentos dedilhados (tocados diretamente com os dedos, ou via pequenos objetos como dedeiras e palhetas); e “viola”, também com suas variações pelos idiomas, na maior parte do mundo representa instrumentos friccionados (tocados) com arcos.

Como já descrevemos várias vezes, a partir do nosso livro A Chave do Baú, a única exceção conhecida desta “ordem mundial” seriam as nossas violas dedilhadas (que deveriam ser chamadas “guitarras”, como praticamente no resto do mundo) – causada por uma anômala ação nacionalista portuguesa, e que é a verdadeira origem das nossas queridas violas (só não espalhem muito isso, pois os estudiosos ainda não querem aceitar… então, como eles é que “mandam” nas violas, fica sendo segredo nosso também, ok?).

Bem separadinhos, pela forma de tocar, estariam então “guitarras” e “violas”… Mas… desde quando? Como teria se dado isso?

 Nosso ponto de partida passa pela visão destacada no início, do grande musicólogo alemão Curt Sachs (1881-1959) – mas já avisamos que foi só o começo, não é para pegar só a citação inicial e parar de ler e refletir. O trabalho todo de Sachs é incontestável, mas chama a atenção que, entre tantos nomes de destaque histórico, não se encontra pela internet tantas fontes sobre sua biografia… Entendemos certo desprezo ao valor deste alemão por ele ter lançado, em 1914, com o austríaco Erich Moritz von Hornbostel (1877-1935), a proposta de classificação de instrumentos musicais mais famosa (e mais contestada) da História – a chamada “Hornbostel-Sachs”. A ousadia deles foi propor uma classificação organológica de todos os instrumentos musicais conhecidos em todo o mundo. Não encontramos tradução completa deste importante trabalho em português, só algumas análises – mas fizemos questão de analisar o original completo em alemão e algumas traduções, versões e estudos a respeito em francês, inglês e espanhol. O mais importante é que o trabalho de Sachs vai muito além da Hornbostel-Sachs – e atestamos isso desde o livro Real-Lexikon der Musikinstrumente – de 1913, onde já propunha zugleich ein Polyglossar für das gesamte Instrumentengebiet (“ao mesmo tempo um poligrossário para instrumentos de todos os tipos”) – até a “História dos Instrumentos Musicais”, de 1940, destacada aqui. Foram décadas em que Sachs pesquisou esculturas, desenhos, manuscritos deste a extinta língua suméria, passando por fontes e citações em aramaico, hebreu, egípcio, grego e latim até as línguas modernas. Não, não podemos deixar de louvar e elogiar seus esforços e descobertas. Se dá uma “invejinha”? Ah… pode colocar “invejona” aí, por nossa conta!

Além da Hornbostel-Sachs, chegamos ao alemão pela citação em interessante estudo da Dra. Julieta de Andrade, do livro Cocho Mato-grossense: um alaúde brasileiro – publicado em 1981. Nele, Andrade creditou Sachs junto a outros estudiosos: os franceses Albert Lavignac (1846-1916), Andre Schaeffner (1895-1980) e Lionel Laurencie (1861-1930) – além do alemão Hugo Riemann (1849-1919) e do português Mário de Sampayo Ribeiro (1898-1966). Curiosamente publicado também em 1981, mas sem citação à Julieta de Andrade, a espanhola Rosário Martinez, em sua tese Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: los cordófonos apontou o que chamou de “teoria de Sachs” como la más acertada entre cerca de 15 estudos de linguistas, historiadores, filósofos e musicólogos que pesquisou. E, por fim, não a “teoria”, mas análises similares foram observadas na tese A Guitarra na Galiza, da Dra. Isabel Rei-Samartim, depositada em 2020 – esta que, por sua vez, indicou fontes bem diferentes: a italiana Ella B. Nagy e o galego Antonio Uxio Mallo.

Listamos as principais fontes para denotar que diversos estudiosos apontaram Sachs a partir de fontes diferentes, sem conhecerem os trabalhos umas das outras.

Todos estes estudiosos (Sachs, Andrade, Martinez, Rei-Samartim), e vários outros tentaram apontar possíveis origens das “violas”; todos eles buscaram ligações ou paralelos com a etimologia – a ciência que estuda a evolução histórica das palavras, e que, como todos os estudos linguísticos, ainda não aponta explicação de consenso para o termo. Em nossa opinião, não solicitada, acrescentamos que dificilmente conseguirão fazê-lo. Sim, acredite: nós buscamos nos aproximar também de estudos linguísticos modernos, para tentar somá-los aos estudos musicológicos e até conseguimos boas descobertas – mas nossa conclusão é que aqueles estudos, assim como os sociológicos em geral, embasam-se por característica (e, talvez, por comodidade?) em teorias postuladas por estudiosos indiscutivelmente talentosos dos últimos séculos. Nada contra teorias, procuramos estudá-las também, mas nossa visão é que os dados ou registros existentes (ou “resistentes”) não precisam de teorias para nos contar a História dos cordofones. Eles, por si, já nos apontam informações suficientes, só é necessário que se organize um número suficientemente grande e representativo (o que não vimos ter sido feito por nenhum entre centenas de estudiosos pesquisados e por isso nos dedicamos a colecionar e organizar).

O que praticamente todos os estudiosos observaram é que os nomes dos instrumentos apresentam muitas variações, pelos séculos e pelas diversas culturas / línguas envolvidas – aparentemente sem nenhuma ligação lógica. Nomes diferentes para instrumentos similares, nomes iguais para instrumentos diferentes, nomes de uma língua utilizados em outras, às vezes para instrumentos similares, às vezes totalmente diferentes… enfim, uma “bagunça”, parecendo ser aleatória, não é mesmo? Sim… mas não quer dizer que, por parecer ser bagunçado, não tenha nenhuma “gerência”.

A “gerência”, que nos referimos de forma brincalhona, cientificamente se expressa por padrões observáveis (a partir do citado e considerável banco de dados). Há coerências relativamente claras e que, ao nos apoiarmos em estudos históricos, sociais, estatísticos e outros (além dos musicológicos, obviamente), acreditamos sejam incontestáveis. Uma delas é que instrumentos musicais sempre estiveram em “evolução” (não apenas no sentido de “melhoras”, mas, sobretudo, de “mudanças, alterações”) – daí, as variações de nomes se justificam não apenas por surgirem em línguas diferentes, mas também pelas diferenças evolutivas dos instrumentos.

Em nossa equação investigativa alguns fatores se destacam e entendemos que mereçam atenção mais aprofundada do que já teria sido indicado em estudos pelo mundo, entre eles: os ciclos evolutivos levam muito tempo, não sendo exatamente correspondentes às variações de nomes – e estes ciclos sempre coincidem com mudanças histórico-sociais, ou seja, eventos de grande impacto social em significativo número de pessoas, ao mesmo tempo. Só podemos afirmar que estes fatores são observáveis em cordofones de origem europeia – embora seja matéria muito observada na História de todas as Artes – e que estudos linguísticos não costumam considerá-los, assim como a outros fatores de múltiplas ciências e/ou visões.

Não, não estariam ligados à etimologia pura os registros que Sachs observou com tanta profundidade e que tantos também tentaram relacionar: registros apontam ter muito mais sentido em uma análise multidisplinar, uma ciência que ainda não teria nome e que brincamos de chamar de “onomato-organologia” (em homenagem à tradição de usar termos oriundos do grego). Tivermos algum dia apoio acadêmico, poderíamos aprofundar o estudo e até postular esta “nova ciência”, mas não há problema: o que interessa é que nos baseamos em dados, em registros de época contextualizados histórico-socialmente, por todas as línguas envolvidas. Não é em “uma” ciência, mas em verdades atestadas por várias ciências. E preferimos não nos basear em nenhuma “teoria”.

  Um dos padrões cuja profundidade teria escapado a Sachs (e aos demais pesquisadores consultados) é que nomes de instrumentos similares (lembrando que estavam sempre em evolução de formatos e características organológicas) apontam tendência a se bifurcarem em nomes de pronúncias e grafias parecidas, apesar das diferentes línguas envolvidas (que também tem, em paralelo, seu histórico próprio de evoluções). Sachs teria observado a variação de nomes iniciados pela letra “f” e, posteriormente, o surgimento de vários nomes de instrumentos similares, porém iniciados pela letra “v” (ao que atribuiu a origem do termo “viola”, considerando-o, entretanto, apenas para friccionadas por arco). Esta evolução seria fato em algumas línguas chamadas “germânicas”, em especial nas variações de dialetos alemães, mas a Sachs faltou considerar que não só destas línguas dependia a História dos cordofones, mas ao ciclo evolutivo de várias línguas ao mesmo tempo (fato incontestavelmente atestado pela significativa influência social dos Trovadores, com auge entre os séculos XII e XIII, sequer citado pelo musicólogo).

Também teria faltado a Sachs considerar que os termos em latim FIDES e seu diminutivo FIDICULA (ambos iniciados pela letra “f”), embora genéricos (ou seja, dos quais não se pode apontar a qual instrumento específico se referia, e sim a uma categoria), também entraram no caminho histórico de nome e com considerável importância, dado o longo e violento histórico da dominação pelo Império Romano – este que tentou impor o latim a seus dominados, além daquele mesmo latim ter predominado por mais de mil anos com os religiosos. Também teria distraído Sachs o fato de quê, assim como em dialetos alemães, em latim a utilização da letra “v” é tardia, só vindo a existir para distinguir palavras com a letra “u” e que “f” e “v” tem, em algumas línguas a mesma pronúncia.

A evolução espontânea de “f” a “v” é uma teorização baseada em visões etimológicas, mas falta aos ilustres estudiosos aceitar o fato, comprovado pelos registros, de que nomes de instrumentos não seguem estas regras… Para aceitar isso, porém, é preciso aceitar que entre todas as artes, a música é a mais influenciada e mais influenciadora com relação à Humanidade, reagindo diretamente às mudanças sociais. Pelo visto, poucos no mundo já “estariam preparados” para encarar este fato com a profundidade científica que merece – inclusive musicólogos. Uma das muitas provas é que os instrumentos continuaram a ser chamados por nomes iniciados pela letra “f” em várias línguas, até os dias atuais, indicando uma das muitas bifurcações observáveis nos registros históricos.   

Apontamos como não recomendável a utilização, tanto por Sachs quanto por vários outros estudiosos, de nomes que teriam sido de instrumentos específicos para apontar categorias de instrumentos; Sachs, por exemplo, escrevendo em inglês, até o fim classificou os cordofones em categorias (ou “famílias”) denominadas zithers (“cítaras”), lutes (“alaúdes”), lyres (“liras”) e harpes (“harpas”). Só criticamos o uso de nomes não genéricos, que para este caso entendemos seria o mais adequado: a classificação, em si, é bastante didática: “harpas” seriam cordofones de tamanho maior, sem caixa de ressonância nem braço destacados para variações de notas musicais (a ressonância se dava por estruturas tubulares, como bambus e chifres, ao redor das cordas); “liras”, versões em tamanho menor das harpas, portáteis e que começaram a ser observadas com as primeiras caixas destacadas das cordas, como as de formato de tartaruga de instrumentos chamados CHELYS (em grego) e TESTUDO (em latim); “cítaras” estariam um pouco antes na ordem histórico-evolutiva, por apontarem as primeiras caixas de ressonância, porém ainda ao longo (abaixo) das cordas; e “alaúdes” representariam a última fase, quando braços e caixas de ressonância se destacam no instrumento – como as atuais guitarras e violas. Sachs ainda apontaria divisão entre “alaúdes” (que seriam todos os dedilhados) e fiddles, que seriam todos friccionados por arco na visão dele, na década de 1940.

Apenas para o termo fiddle (e suas variações fidle, em alemão, e fidula, em textos em espanhol e português) não encontramos registros ancestrais. Há dúvidas sobre a origem mais remota, mas harfe (em alemão) e harpa (em latim) são bem antigos; lira é observado em latim a partir de λίρα (grego) – assim como cithara, a partir de kithara (κιθάρα) – neste caso, a substituição da letra “k” por “c” observada em várias palavras em latim. E lute (“alaúde”), de al’ud (“bastão ou vara flexível, normalmente de madeira”, em árabe), também bastante antigo. A questão é que estes seriam nomes de instrumentos específicos, com características nem sempre similares em cada momento histórico e língua onde teriam tido registros observados. E pior: ao utilizar fiddle e variações como genéricos para friccionados, mascara-se que teria havido naquela cadeia de registros o termo latino FIDES, sempre utilizado para cordofones dedilhados, e de várias formas (fides, para instrumentos musicais, remete simplesmente a “cordas”).

É curioso (para não dizer lamentável) que tantos estudiosos, apesar de se declararem preocupados com evoluções etimológicas, não atentem para a utilização correta dos nomes em suas formas originais, e entendam ser adequado utilizar traduções para suas línguas próprias e utilização de nomes pré-existentes como genéricos.

Todas estas análises críticas de fontes e estudos nos foram muito positivas, pois nos ajudaram a fortalecer o entendimento sobre os padrões observáveis e nos levaram a curiosa constatação de um “dueto” histórico que prevalece até os dias atuais, entre “guitarras” e “violas” – finalmente, o tema proposto neste brevis articulus… Pedimos desculpas, mas era preciso explicar, pois não se pode rebater e até desdizer tantos estudiosos respeitados levianamente.

 A origem não se pode constatar antes dos escritos sumérios, os mais remotos que se tem notícia em todo o mundo: teria havido instrumentos com braço e poucas cordas por lá que, traduzidos para nossa língua, teriam sido chamados PAN-TUR; a mesopotâmica e muito desenvolvida civilização Suméria teria sucumbido aproximadamente em 1900 aC., após sucessivas dominações por diversos outros povos, onde se destacam os Assírios – e dos quais se obtiveram registros de cordofones similares chamados KETHARA. A substituição do nome é bastante compreensível – variação em função de usar a língua do dominador – e estabeleceria o mais remoto registro conhecido de bifurcação de nomes, que seria atestado mais tarde, não muito longe dali, na região do Cáucaso: por termos ido além dos estudos e nomes levantados por Sachs (citados na abertura) e dos demais estudiosos, na busca por atestações, observamos na edição de 1897 da Armenische Grammatik (“Gramática Armênia”), do filólogo alemão Johann Hübschmann (1848-1908), que naquela região pertencente ao Cáucaso outra bifurcação teria surgido, claramente a partir do antigo PAN-TUR sumério: as variações PANDUR / PANDIR e FANDUR / FANDIR seriam atestáveis por registros, assim como o atual PANTURI. Próximo da KETHARA assíria, o nome KIT’ARR (կիթառ), enquanto na Pérsia teriam sido observados vários registros de TÃR, como SETÃR, que significaria “três cordas”. 

A re-bifurcação pelas iniciais “p” e “f” seguiria com reflexos posteriores em textos dos grego – exploradores do Cáucaso desde o século VIII aC. Julieta de Andrade e Rosário Martinez, por suas fontes e pesquisas, já tinham observado: παμντόρα (“PANDURA”) e φαντούρα (“PHANDURA”) teriam seus registros, mas também sobreviveria uma variação da antiga KETHARA assíria: a KITHARA (κιθάρα) grega.

Dos gregos aos romanos, a partir de II aC., ao invés de KITHARA seria observado CITHARA e algumas poucas vezes GUITERNA / QUINTERNA. De CITHARA teria surgido mais tarde a bifurcação CISTRO / CEDRA, que algumas vezes dava a impressão de dividir os instrumentos entre os de caixa arredondada e os de caixa cinturada – mas as variações CETULA e CITOLA também apareceriam, utilizados indistintamente quanto a formatos. A partir de PANDURA, teríamos PANDORION e alguns poucos registros de TAMBURA; só PHANDURA não parece ter sido entendido assim pelos romanos, porém estes introduziriam os já citados genéricos FIDES e seu diminutivo FIDICULA, que entrariam para a lista das bifurcações iniciadas com som de “f”. Mais tarde, nos séculos IX e X, dois registros isolados de FIDULA (muito provavelmente uma redução de FIDICULA), até que no século XI teriam sido observados PHIALA e VIDULA – este último, o mais remoto registro conhecido da nova bifurcação que nos traria até “VIOLA”...

Entretanto, enganar-se-iam os estudiosos que apontam que a bifurcação pela inicial “v” anularia a outra vertente iniciada em “f” – que a esta altura, já viria de mais de 15 séculos! O já citado “auge do Trovadorismo” (séculos XII e XIII) traria uma avalanche de nomes parecidos para cordofones também similares, em diversas línguas claramente em evolução pelo território europeu, mas podem ser observadas as bifurcações se mantendo. Depois da citada PHIALA, vê-se no século XII: FIDIL ou FIDLI (em anglo-saxão ou irlandês), FIGHILE (em alemão) e FIGELLA (em texto em latim); no século XIII: FIÐELE, transcrito FIDELE ou FITHELE (em anglo-saxão); no século XV: FIGEL (em alemão), FIDELLA (em latim). A este caminho, juntariam-se a partir do século XVII os já citados genéricos fiddle, fidel e fidula e finalmente FIOLA, observado em latim no século XIII e que é nome de violas de arco ainda utilizado no País de Gales.  Como se demonstra, a bifurcação ainda segue representada, sem ter sido substituída, basta observar as diversas línguas relacionadas.

E o caminho das iniciais em “v”? Pela ordem, após VIDULA teria sido observado também um grande caminho. No século XII: VIOLA e depois VIELLA (em Latim), VIOLLE e VIELE (em Francês), VIDELE (em Alto-Alemão médio), VIOLA (em Catalão), VIHOLA, VIOLA, VIEULA (em Occitano). No século XIII: VITULA (em Latim), VIELLE (em Francês), VIELLA e VIULA (em Catalão); VIULHA (em Occitano), VIHUELLA, VIOLA e variações (em Espanhol), VIOEL (em texto em Latim, por belgas). No século XIV só teriam sido observadas duas novas variações: VIOLE (em Francês) e VIUOLA, depois VIOLA (em Italiano). No século XV: VIULE (em Catalão), VIOLA, VIOLLA (em Português); VIOL, VIALLE e variações bem próximas, em inglês, só teriam sido observadas a partir do século XVI. Este é o caminho que se consolidou e que hoje aponta para um reverso, com o nome VIOLA passando a ser usado no original cada dia mais em diversas línguas, sem traduções – assim como “violino” (original italiano) e… “guitarra” (original espanhol).

Sim: o “concorrente mais antigo” das violas também continuou seu caminho até os dias atuais (atestando que a tendência é de continuidade das bifurcações), desde o mais remoto registro que se tem conhecimento, no século XIII (Libro de Apolonio). No século XIV uma proposta de bifurcação por procedência e formato feita por Juan Ruiz (Libro de Buen Amor) ficou famosa: GUITARRA MOURISCA / GUITARRA LATINA, que acabou culminando na preferência pelo formato cinturado. A partir do século XVII, quando GUITARRA foi escolhido como nome preferido para dedilhados na Espanha, teve variações como GITTERN e GUITAR (em inglês); GUITERRE ou GUITARE (em francês) e GUITARRE ou GITARRE (em alemão) e a variação um pouco diferente, CHITARRA (em italiano). A bifurcação que levou até GUITARRA teve também um caminho diferente, não em termos de nomes, mas de formatos, antes da citada ascenção das guitarras espanholas: após os termos em latim CETULA e CITOLA, surgiriam em línguas não latinas as variações CITHERN / GUITTERN como nome de instrumentos de caixa arredondada (de onde teria vindo a Guitarra Portuguesa). Esta temporária bifurcação de significados se normalizou, chegando os instrumentos arredondados a serem chamados hoje de cistros ou cistres (como bem antes teria sido, em latim), menos em Portugal, que aproveitou a rivalidade com a Espanha para permanecer com sua única “guitarra” não cinturada que se saiba.

As últimas bifurcações observadas teriam se originado na Itália: nomes de violas em várias línguas passaram a apontar os grupos de letras “alt” e “brac”, relativos a ALTO (de contralto) e BRACCIO (“braço”, em italiano). Tendo as violas de arco evoluído bastante a partir da Itália, estes dois nomes antigos influenciaram outras línguas – assim como a bifurcação que dá nome a outros cordofones do mesmo naipe nas orquestras: violino e violoncello. Os nomes com sobrenome mais remotos observados na Itália, a partir do século XV, seriam viola da braccio e viola da gamba. Gamba significa “perna”, daí se constatam os dois tamanhos mais remotos das violas. Apesar de ter-se tornado o mais famoso, VIOLINO só teria registros a partir do século XVI e só se consolidaria a partir do século XVIII.

Também sem se bifurcar pelo nome, VIHUELA significava tanto dedilhados quanto friccionados pelo menos desde o século XIV até o século XVI, na Espanha – assim como VIOLA, na Itália, no século XV e, em Portugal, do século XV até os dias atuais. Esta, pois, a origem da bivalidade que ainda temos no Brasil.

            Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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O SEGREDO POR TRÁS DA CHAVE DO BAÚ

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EXCEÇÕES QUE ATESTAM A REGRA

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19 Mai, 2023

VIOLAS HOJE: RIO DE VIOLAS (RJ)

VIOLAS HOJE: Rio de Violas (RJ)

[…] A rua das Violas, hoje Teófilo Ottoni, antes denominou-se de Domingos Coelho e dos Escrivães. O nome de Rua das Violas lhe adveio da circunstância de habitarem nela fabricantes desse instrumento musical.

[Rodolfo Augusto de Amorim Garcia (1873-1949), historiador potiguar, em Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 1937 – p. 218].

Viola, Saúde e Paz!

Foi em 2014: fomos convidados para um encontro com o grupo Caipirando – então, “Alma carioca de Viola”, em Jacarepaguá (RJ). Tocamos juntos, mostramos alguns números com o poeta matuto Geraldo do Norte, palestramos, comemos comida boa, demos boas risadas juntos… Na palestra, foi repetido o que já tinha sido falado em Natal (RN), Sapiranga (RS), Campo Grande (MS) e outros lugares: “Vocês deveriam procurar o que teria de mais autêntico de viola em suas regiões, seus Estados – e não tentar seguir o que outros Estados já fazem bem feito, há mais tempo e com propriedade. Dá menos dinheiro e notoriedade que o caipirismo, sem dúvida: porém, teria mais valor a novidade, a defesa genuína de raízes regionais – e viola tem por todo o Brasil, basta procurar que acha”.

Estavam, entre outros, o saudoso Sebastião Victor, com sua esposa Iara Cristina, Henrique Bonna… O encontro foi em propriedade que parece seria do Júlio, sobre o qual infelizmente não temos ouvido falar ultimamente (talvez tenha se afastado) – mas vários outros, ficamos felizes de reconhecer os violeiros cariocas hoje mais atuantes.

Talvez não seja agradável nem usual de ser citado, mas sobre afastamentos: já peleamos há alguns anos pela viola (tanto para ganhar dinheiro quanto sendo mentores ou participantes voluntários de eventos que beneficiem toda a classe) e sempre alertamos sobre ser incompleta a visão embasada em apenas um dos modelos (o modelo Viola Caipira), num país cuja verdadeira tradição é ser multicultural. Isso incomoda pessoas que tem ligação afetiva muito grande com o caipirismo (além de interesses comerciais/financeiros), que se afastam como se pedras tivessem jogadas na “Cruz”… Não só estes, mas, de forma geral, pessoas não gostam de quem questiona, critica, traz novas visões – e sempre defendemos (admitimos, com palavras nem sempre bem escolhidas, às vezes indevidamente irônicas e/ou sascásticas) o que hoje comprovamos cientificamente, com dados, e colocamos de maneira bem mais adequada: é preciso repensar o que tem sido dito e defendido já há algumas décadas sobre as violas, muita coisa está mal entendida, mal interpretada ou talvez tenha passado despercebida na História. Naturalmente, não mantemos rancor contra ninguém (posto admitirmos erros nossos também, durante o processo), nem mesmo de quem eventualmente tente nos prejudicar com atitudes, digamos, “mais fervorosas”: somos um povo de DNA de religiosidade exacerbada, somos passionais. Só podemos esperar que o tempo passe e a compreensão (via leitura e reflexão) e/ou a tolerância vença afinal no coração de todos nós (nós, os que temos bom coração, de amor à viola).

Mas falando de coisas boas, o que interessa é que os cariocas tem sido atuantes mesmo: de 13 a 21 de maio de 2023 acontece a 5ª (!) edição do “Encontro de Violeiros do Rio de Janeiro”, com programação totalmente gratuita que incluiu shows, recitais, oficinas, rodas de violas e outras atrações. Se já não bastasse, o movimento sempre reserva espaço para participação de pessoas ligadas à viola de várias outras regiões brasileiras – e o evento encampa não apenas o modelo Viola Caipira, mas vários dos atuais modelos da Família das Violas Brasileiras.

Sem dúvida, é dos mais significativos movimentos regionais da viola no Brasil e aponta estar “namorando” (ou “sintonizando”) com a atual fase de mudança (ou ampliação) de visão sobre as violas brasileiras. Um dos ilustres pesquisadores convidados de uma edição passada chegou a afirmar publicamente que seria “o maior” movimento regional já feito – mas teria sido apenas um arroubo de entusiasmo, pois sendo grande pesquisador, ainda mais nascido em Minas Gerais, não poderia “fazer de conta” ou “esquecer” que não aconteceu, por exemplo, o encontro de mais de 600 violeiros em Uberlândia, em 2017 (recorde mundial concedido pelo Guiness Book em 2018) ou o Reconhecimento Oficial como Forma de Expressão válida ao Registro nos Livros de Patrimônio Imaterial (o único Estado brasileiro até agora a conseguir e que também foi firmado em 2018) – só para citar dois eventos recentes ocorridos em Minas Gerais. Sem querer ser covarde, é importante lembrar (não ao colega pesquisador mineiro, que o sabe, mas deve ter esquecido, em seu entusiasmo), mas aos demais que nos lêem, que também vêm de nascidos em Minas Gerais iniciativas infelizmente já encerradas, como o Festival Nacional Voa Viola (2010 e 2012) e o Prêmio Nacional de Excelência da Viola (2011 e 2013) – estes que não seriam movimentos regionais, mas nacionais.

O movimento carioca tem, sem dúvida, grande valor histórico e torcemos que continue para sempre; mas há alguns outros Estados que também tem tentando se organizar pelos tempos que valem citação:

Em Caxias (RS), os Violeiros da Serra Gaúcha já vem há alguns anos com boas realizações – onde se destaca Valdir Verona, de atividade intermitente e variada, inclusive com o quarteto Violas ao Sul, que junta violeiros de Porto Alegre e outras regiões do Rio Grande do Sul. Isso, sem contar as sementes lançadas por Luciano dos Santos, de Sapiranga: além das “orquestras” que ajudou a implantar, de 2004 a 2011 seu Grupo de Viola Gaúcha espalhou shows de violas tocando música gaúcha (!) pelo Estado, a partir de Sapiranga.

No Paraná – que teve entre 2004 e 2009 o grande projeto educativo Viola Lindeira (mais de 1200 alunos!), coordenado por membros da chamada Orquestra Paranense de Viola, onde se destacou Ricardo Denchuski – houve em 2017 o 1º Encontro Paranense de Violas: um grande encontro, que reuniu representantes das várias vertentes de viola atuantes no Estado, onde se destacam pela iniciativa e visão Maikel Monteiro e José Cândido de Morais. Sem contar que no litoral (e incluindo aí também o litoral paulista), verdadeiros herois como Rodolfo Vital pelejam há décadas pelas Violas Brancas (Caiçaras / Fandangueiras), o que não deixa de ser um certo “movimento”.

Sempre lembrando que de Pernambuco, nos anos de 1960, veio o nem sempre corretamente lembrado pelos violeiros Movimento Armorial, onde se destacaram violeiros como Heraldo do Monte e Antônio Madureira, em 2020 aconteceu a 1ª Mostra de Violas Instrumentais Nordestinas – um grande encontro multi-estatal, capitaneado por Rainer Miranda Brito, que lançou a semente para uniões futuras na região (oxalá!). Na Bahia, desde que o Samba de Roda do Recôncavo conseguiu Reconhecimento como Patrimônio Imaterial (inclusive mundial, em 2005), levando consigo “de tabela” (ou, oficialmente, como “bem associado”) as Violas Machetes, sempre há realizações em certa continuidade pelos anos, dentro das limitações de herois como Milton Primo.  

Mineiros e paulistas não demonstram historicamente grandes indícios de verdadeiros “movimentos de união” da classe por objetivos comuns – mas algumas realizações são de valor inegável, como os já citados em Minas e, em São Paulo, os espaços para shows de viola mantidos há décadas pelos sistemas SESI e SESC, além de eventos como o Prêmio Inezita Barroso e o festival Revelando São Paulo.

Entendemos que ainda falte “consciência de classe”, principalmente consciência nacional – por exemplo, nossa proposta de batalhar todos juntos pelo Reconhecimento Nacional da Viola como Patrimônio Imaterial não encontrou ecos e se encontra arquivada, sem que a classe demonstre se importar (nem mesmo os mineiros, embora pudessem testemunhar que há benefícios por terem já conseguido o mesmo citado Reconhecimento Oficial no âmbito Estatal). A maioria dos mineiros parece continuar sendo “solidário só no câncer” (como teria dito Otto Lara e imortalizado por Nelson Rodrigues). Já os paulistas que acreditarem que seriam herois conquistadores, que depois teriam se travestido em humildes “caipiras” (um milagre da genética, talvez?), quem sabe então não devessem finalmente assumir também a dívida social dos crimes cometidos pelos bandeirantes? Naturalmente, estas últimas são só brincadeiras provocativas: por favor, não atire neste atrevido mensageiro, combata (se puder) os registros históricos – como já há alguns que o fazem nas “redes fake sociais” e “grupos de zap das famílias”…

Falando sério, o ideal seria que cada um se visse como não mais do que morador de um dos Estados da Nação, cercado de irmãos (e não concorrentes) por todos os lados. E tentassem juntar forças em prol de todas as violas, por todo o Brasil.    

Entretanto, mesmo com as críticas, entendemos ser extremante louvável que eventos e movimentos significativos estejam a acontecer: significa que a fase de transição está em processo – ou, no popular: “enquanto há vida, há esperança”, “onde há fumaça, há fogo” e similares.

Não: os violeiros cariocas ainda não teriam se dado conta da importância histórica de violas registradas em abundância no Rio de Janeiro “Capital do Império” (séculos XVIII e XIX), antecessoras do samba, do choro, das modinhas – apesar de sempre citarmos em nossas publicações e de ter existido até uma “Rua das Violas” por lá, àquela época… Uma excelente “Viola do Rio” a ser lembrada, já que o Brasil parece tê-la “esquecido” (talvez por ter sido “Viola Preta”, como gostamos de citar)… Mas os cariocas estão no bom processo, entendemos que com coração puro – e há representantes no movimento que merecem todo o respeito, com destaque para os queridos de perfis inclusive acadêmicos como Andréa Carneiro e Bruno Reis – e até Henrique Bonna que, mesmo não sendo “acadêmico”, está sempre antenado com as pesquisas e tudo o mais que rola sobre a viola pelo Brasil. Cariocas ainda não teriam percebido (ou dado o devido valor) à ligação de violas com outros cariocas importantíssimos historicamente como o Padre Mestre José Maurício Nunes Garcia, Domingos Costa Barbosa, Joaquim Manoel, o “Chalaça” (o amigo de D. Pedro I), entre vários outros pretos de destaque.

Há uma dificuldade a ser vencida, não apenas por cariocas, mas por quase todos os brasileiros, pois os registros de época mais importantes (e numerosos) seriam de estrangeiros, no início do século XIX – que de fato relataram “guitarras” (e termos similares, em suas diversas línguas originais). Muitos interpretaram e traduziram equivocadamente aqueles instrumentos como “cavaquinho” ou “violão” – mas em nossos estudos já atestamos, com base em centenas de dados e contextualizações histórico-sociais, que, na verdade, teriam sido cordofones chamados de “viola” por portugueses e brasileiros. Pode-se se dizer que não teriam sido “violas”, de fato… mas era assim que eram chamadas, assim se consolidaram e foi assim que nasceram as nossas violas dedilhadas. Se aquelas não eram, então as atuais também não o seriam – então, melhor não dar tiro em ninguém, muito menos nos registros históricos.  

Nosso sonho profético? Um dia, uma grande escola de samba carioca fazer um desfile de homenagem-denúncia sobre as violas dos escravizados, predecessoras dos cavaquinhos e violões (e do samba, e do choro, e das modinhas…); um grande desfile com todos estes pretos maravilhosos sendo lembrados e reverenciados, para que o Brasil possa finalmente vislumbrar um pouco do que o preconceito velado deixado como esquecido nas últimas décadas… Já vemos em sonho até os carros alegóricos – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

Principais Referências:

Sobre as violas antigas (antecessoras) citadas no Rio de Janeiro mas também e outros Estados, checar principalmente publicações de visitantes estrangeiros do início do século XIX, entre outras como:

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. v.1, 2, 3. Paris, Firmin Didot Fréres, 1834 / 1835 / 1839.

FREYREISS, Georg Wilhelm. Reisen in Brasilien. In: Monograph Series – Staten Etnografiska Museum (Sweden), Publication 13, p. 431-554, Stocolmo, 1968

FREYREISS, Georg Wilhelm. LOFGREN Alberto (trad.). Viagem ao interior do Brasil nos anos de 1814-1815. Revista do Instituto Histórico e Geographico de São Paulo, v. XI, p. 158-228, São Paulo, Typographia do Diário Offcial, 1907.

KOSTER Henry – Travels in Brazil. Londres: PATERNOSTER-ROW, 1816

LINDLEY, Thomaz. NEWLANDS NETO Thomas (trad.). Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969.

LINDLEY, Thomaz. SOULÉS François (trad.). Voyage au Brésil. Paris: Leopold-Collin, 1806.

NEUWIED, Prince Maximillian. Travels in Brazil in 1815, 1816, and 1817. London: R. Philips,1825.

RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Mulhausen, 1835.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil). Orleans: H. Herlusion, 1887.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage aux sources du Rio de S. Francisco et dans la provence de Goyaz. [Tomos 1 e 2]. Paris: Artus Bertrand, 1847-1848.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil. [Tomos 1 e 2]. Paris: Libraire Gide, 1833.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais. [Tomos 1 e 2]. Paris: Grimbert Et Dorez, 1830.

SAINT-HILAIRE Auguste de. Voyage dans les provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine. [Tomos 1 e 2]. Paris: Artus Bertrand, 1851.

WELLS, James W. Exploring and traveling three thousand miles through Brazil: from Rio de Janeiro to Maranhão. v. 1 e 2, 2ª ed. Londres: Sampson Low, Marston, Searle & Rivington, 1887.

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11 Mai, 2023

INSTRUMENTOS: MEDIADORES SOCIAIS

Instrumentos: mediadores sociais.

[…] os instrumentos musicais são artefatos mediadores de relações sociais e percorrem ao longo do tempo carreiras simultaneamente musicais e sociais. São os usos dos instrumentos e as crenças dos grupos sociais acerca do valor destes objetos que ora exigem sua presença, ora os dispensam ou repudiam. O recuo de um instrumento ou sua substituição por outro tem ligação imediata com os idiomas musicais aos quais servem; estes, por sua vez, ligam-se a contextos sociais determinados.

[Elizabeth Travassos, artigo “Como a viola se tornou caipira”, 2006]

Viola, Saúde e Paz!

O nome formal, para usar em textos acadêmicos, seria algo como “estratégia metodológico-científica” – mas, no popular, nada mais é do que um caminho seguido, a partir de bases científicas comprovadas, até o estudo apresentado; ou seja: demonstrar que não estamos a “reinventar a roda”, muito menos a falar da própria cabeça (invenções ou corrupções). Não deixa de ser uma demonstração de humildade, honestidade e compromisso com a verdade que só os melhores estudiosos têm coragem de citar e seguir em suas publicações. Infelizmente, o mais observado é estudiosos se perderem da base metodológica, quando adotada, e afirmarem coisas sem citar de onde teriam tirado, nem apresentar desenvolvimentos.

De maneira audaciosa, ainda chegamos a citar o tal caminho também de forma lúdica, fantasiosa: “A Chave do Baú” – exatamente o título de nosso livro, num paralelo com uma caça ao tesouro (como nos filmes). Sim: a “chave” nada mais é do que a metodologia científica desenvolvida, seguida à risca e demonstrada em detalhes, com fartas referências listadas ao fim de cada capítulo – tudo totalmente às claras. Achamos que talvez pudesse ser atraente ao público em geral tratar de Ciência numa linguagem menos formal e, enquanto também (e principalmente) artista, usar a fantasia e a leveza como facilitador das “prosas”.

Como já dissemos, não estamos a inventar nada – apenas sugerindo um passo além do que vimos ter sido feito, para outros curiosos que possam ler; e deixando o banco de dados (estudos e fontes), bem maior do que encontramos nos estudos pesquisados. Estes dados, que foram colhidos em centenas de fontes, foram checados, retraduzidos, organizados cronologicamente e reanalisados no contexto do novo e grande conjunto formado – pois foi assim que a estratégia (ou metodologia, ou “chave”) nos indicou que precisaria ser feito. Não observamos que já tivesse sido feito assim antes e principalmente por isso o fizemos.

            O principal ponto de partida foi o texto destacado no início, da antropóloga carioca Elizabeth Travassos – infelizmente falecida em 2013. Aquele artigo de rara lucidez, profundidade e honestidade científica sobre o assunto, à época (2006), foi encontrado no livro Artifícios e Artefactos. Este livro nos foi presenteado por um dos grandíssimos doutores colaboradores de nossa monografia – e de quem, num erro grave nosso, não nos lembramos quem tenha sido, para agradecer devida e nominalmente, mas que possa se sentir agradecido e aceitar nossas desculpas. É uma pena que aquele artigo parece não ter influenciado em nada os estudos sobre violas que vieram depois, pois a História das violas brasileiras talvez já tivesse sido vista de forma diferente antes… Mas não sabemos se, mesmo que tivessem tido acesso, os principais pesquisadores / “formadores de opinião” abririam mão de seu compromisso com o caipirismo – um entendimento coletivo sem fundamentação em registros de época, ou seja, totalmente contrário ao procedimento adotado no citado artigo.

Voltando à “vaca fria” (ou, antes que ela esfrie), no tal artigo de poucas páginas (mas com tantas quanto, ou até mais referências que algumas teses acadêmicas que já tivemos o desprazer de ler), em um único trecho a Dra. Travassos não facilitou nosso trabalho: como outros fazem às vezes, não citou as fontes de suas (para nós) importantíssimas afirmações, exatamente deste trecho destacado. De outros autores, consideraríamos (entre palavrões proferidos) que teria sido alguma “sacação”… Mas, após atestar a profundidade e coerência geral do artigo, e checar as dezenas de referências sem encontrar um equívoco ou inconsistência sequer, não restou qualquer dúvida: aquela jovem senhora saberia, e muito, sobre o que tinha escrito! Uma consulta rápida ao currículo dela no Google confirmou isso também.

Por que ela, então, não teria indicado as referências? Talvez nunca saberemos… Uma possibilidade seria: o trecho ser um resumo, sobre um emaranhado tão grande de fontes antropológicas que não seria fácil listar todas sem apresentar junto um desenvolvimento; e este desenvolvimento precisaria talvez ser tão extenso quanto o próprio artigo curto que a Dra. estava a escrever, além de extrapolar o tema proposto. Isso acontece: veja quantas palavras precisamos utilizar só para tentar explicar nossa hipótese! Em minerês seria muito mais fácil: “o pobrema é que o trem era muito é dos cabeludo…”.

            Por falar em não fugir ao tema, o que interessa é que mergulhamos nos conceitos apontados pela Dra. Travassos e, pesquisando e costurando bases científicas, descobrimos a Metodologia Dialética. Os fundamentos deka são creditados ao filósofo grego Platão (ca. 428 aC. – ca. 328 aC.) e hoje é aceita para aplicação em pesquisas científicas, desde desenvolvimentos acrescentados no século XIX por sociólogos alemães. Viu como funciona? O grego importante teve uma ótima “sacada” (como se fosse no voley), alemães “mataram no peito, arredondaram a bola e colocaram no chão” (como fosse no futebol) e, a partir de então, outros vem “usando a mesma jogada”… Quem é íntegro e elegante dá todos os créditos devidos e segue as regras básicas da tal “jogada” – podendo, até, inserir umas pitadas de talento a mais (em esportes e em ciências, por exemplo, brasileiro dá show fácil, se quiser).

Por isso, não apenas em estudos sociológicos encontramos vestígios de aplicação da Metodologia Diáletica: em vários outros tipos de estudos, incluindo os musicológicos (que mais estudamos), citar mais remotos registros encontrados é largamente utilizado como argumento de fundamentação – mesmo que os digníssimos pesquisadores não citem a metodologia (confira a partir de hoje, é mesmo muito usado!).

Ah, sim: caso a esta altura esteja a pensar que descrever a metodologia esteja fora do assunto “instrumentos musicais, mediadores sociais”, por favor, lembre-se que tudo aqui partiu de reestudos sobre as VIOLAS BRASILEIRAS (!) – que estariam, pela primeira vez, colocadas em mediação na História dos cordofones ocidentais, em várias relações sociais. E que o início desta pesquisa inédita se deu por causa da pandemia (um evento de enorme impacto social no mundo todo)… Entendeu ou precisa que desenhe?     

A Metodologia Dialética aponta, em resumo, que “nenhum objeto de estudo deve ser analisado à parte de seus fenômenos circundantes”… Ora, para descobrir as “relações sociais” que a Dra. Travassos citou, entendemos ser necessário identificar e analisar a época e o local que os instrumentos teriam sido utilizados (relações sociais dependem disso, mas não apenas…). Somando as coisas, concluímos: “objeto de estudo”, instrumentos musicais – “ok, tá fácil”; “fenômenos circundantes”… “hum…”… Seriam, entre outros: dados históricos, sociológicos, diferentes línguas utilizadas, análise de discurso de diferentes tipos de textos (tratados musicais, poesias, prosas, lendas…), estatística analítica (pela quantidade de textos não técnicos) e outros “fenômenos”… vários outros… “Putz!…”

            Neste ponto, deveríamos ter percebido que a tarefa era inglória, que talvez nunca teria sido feita por ser muito complexa e que, portanto, a tendência é que ninguém iria dar valor. Certamente pensariam (pensam?): “Ninguém fez antes, de onde você tirou isso?”… Infelizmente não percebemos a tempo e, também por sermos muito teimosos, seguimos pesquisando. O que interessa é que os caminhos existem – já tinham sido intuídos e/ou indicados há séculos, por vários grandes estudiosos, em várias culturas diferentes. Então, pensamos sobre quem desdenhar: “Pára de encher o saco e vai estudar; desminta as fontes e embasamentos apresentados, antes de vir criticar” (aqui, até para xingar usamos rima!). O que não falta na História são malucos que acrescentaram novas visões ao antes existente: o tempo é o juiz, ele indicará até que ponto é válido (ou não).

            Também nos ajudou a ter segurança alguns vestígios encontrados em estudos sobre as violas dedilhadas (nosso ponto de partida), um deles em particular: o capítulo “Cronologia”, encontrado entre as páginas 112 a 121 da dissertação de Mestrado em Música Viola – do sertão para as salas de concerto: a visão de quatro violeiros, de Andréa Carneiro de Souza, depositado em 2002. Por que? Porque àquela altura, já tínhamos vislumbrado que a organização cronológica dos dados é fundamental para analisar bem as relações sociais e outros fenômenos circundantes – pois todos eles costumam se estender por grandes períodos, fases de transição que ultrapassam, às vezes, séculos. Estudar apenas curtos períodos de maior citação de um instrumento seria pouco eficaz: o ideal é buscar o mais remoto registro conhecido e vir analisando pelos séculos o que foi acontecendo – se possível, analisar antes e depois da história daquele instrumento, e de outros aos quais possa estar relacionado. Para tanto, portanto (e ainda rimando), era preciso montar uma vasta cronologia de dados, de registros históricos fundamentados e também de estudos publicados – estes últimos, para observar como pesquisadores teriam analisado os dados antigos. Esta parte faz muita diferença, pois estudiosos costumam secundar-se em cadeia (um péssimo costume, diga-se de passagem): se um se equivoca (por exemplo, numa tradução ou interpretação rasa), é grande o risto de outros virem se equivocando pelos tempos, se não conferirem as origens (seus contextos, principalmente). De fato, a aplicação de cronologias já nos chamava a atenção antes que soubéssemos postular sua importância: nossa monografia é uma “Linha do Tempo da Viola no Brasil”, depositada em 2021 – mas que tem base em estudos específicos começados em 2015!

Partimos, então, daquele capítulo “Cronologia” (e outros trabalhos que também listavam fontes em ordem cronológica) para incrementar mais dados – e foi muito grata a nossa surpresa ao descobrir que o tal capítulo havia sido, de certa forma, “exigido” pela orientadora da dissertação de Andréa Carneiro (violeira carioca, a quem agradecemos pelo atendimento a nossas consultas, por telefone). E quem foi essa tal orientadora de Andréa? Ninguém menos que a nossa ídola, Dra. Elizabeth Travassos…

Coincidências à parte, entendemos estar no caminho certo por vários outros indícios. O vasto estudo histórico-social está exemplificado (em resumo) nas primeiras páginas do livro “A Chave do Baú”, onde apontamos o paralelo: “Eventos de Grande Impacto Social” / “Reflexos em Instrumentos Musicais”. Não é novidade – afinal, nos estudos sobre História da Arte já existe até a consolidada separação por períodos, como “renascimento”, “barroco” e outros, que parte do mesmo princípio; nós apenas organizamos e buscamos aprofundar no que poderia ter tido reflexos diretos nos instrumentos musicais populares (como indicou Travassos), focando nos cordofones (só temos uma vida, não dá pra abraçar tudo!).

À luz do expressivo banco de dados levantado, observamos evidências atestáveis: sempre que um número expressivo de pessoas sofria mudanças sócio-culturais (como guerras e dominações, por exemplo, mas não somente), instrumentos apontaram mudanças, principalmente organológicas e nos nomes – assim como outras mudanças, em outros segmentos da sociedade, são observáveis.

As mais óbvias alterações talvez fossem as variações de nomes, posto haver diversas línguas envolvidas – mas aí vislumbramos uma complexidade que talvez não tenha sido bem observada antes (possivelmente, nem pela Dra. Elizabeth Travassos): a língua talvez seja a maior expressão cultural de um povo – quer seja por imposição de dominadores quanto por resistência de oprimidos. Não: de forma alguma as variações de nomes por diversas línguas devem ser analisadas superficialmente, como por exemplo: “Ah… as vihuelas espanholas eram chamadas de violas pelo portugueses, era um simples bilinguismo, uma tradução óbvia do espanhol para a língua portuguesa…”.

Além da (mais óbvia ainda) questão de que portugueses não citavam guitarras grandes e pequenas, que coexistiam com as vihuelas (só “violas”), há muito mais embutido: a disputa histórica Espanha-Portugal é longa, inclusive com guerras que acarretaram consideráveis impactos sociais em ambos os povos. Além disso, abrindo-se (como proposto) o leque de observação, um pouco mais a frente (séculos XVII e XVIII) descrições de “violas” portuguesas apresentam detalhes praticamente idênticos aos das guitarras espanholas daquela outra época, em que guitarras eram praticadas em quase todo o território europeu e chamadas por nomes bem similares, como guitare (em francês), Guitarre e/ou Gitarre (em alemão), e até chitarra (em italiano) – entre outros. Não se conhecem registros de vihuelas naquela época posterior (teriam caído em desuso) e os portugueses continuavam a chamar apenas de “violas” seus dedilhados portáteis, desprezando guitarras e até alaúdes (estes também presentes na sociedade europeia, com diversos registros em textos de outras línguas menos em português e espanhol, por todas as épocas até o século XVIII, pelo menos). Bilinguismo? Tradição portuguesa de se agarrar a um nome antigo e não perceber diferenças claras dos instrumentos? Invenção, bobagem ou loucura nossa?

Ou, quem sabe… talvez… a complicada relação histórica com mouros e espanhois possa ter influenciado uma tácita reação patriótica / nacionalista dos portugueses, em não citar os nomes originais dos instrumentos?… Mais que apenas não citar: “fazer de conta” que eles seriam todos “violas” – um nome relacionado ao latim e, portanto, também ao italiano (línguas bem mais “simpáticas”, historicamente, aos portugueses). Esta opção seria, inclusive, válida para todos os tempos – desde o século XIV até os dias atuais… Quem sabe?

Contextos histórico-sociais assim foram observados em vários períodos conturbados,  como o da dominação grega, depois da romana, o de domínio da Igreja Católica, o da invasão moura na Ibéria, os da Revolução Industrial entre outros – sempre com reflexos nos instrumentos musicais. Várias outras áreas da Ciência apontam também mudanças observadas nos mesmos contextos / períodos.

Com relação aos instrumentos musicais (especificamente aos cordofones, que foram a “delimitação” de nossos estudos), pudemos observar, em resumo, dois comportamentos que entendemos ser importante apontar (ou “postular”):

1 – cordofones reagem historicamente a eventos sociais de significativo impacto social via alterações em seus nomes e formatos, surgimento e/ou caída em desuso e outras reações;

2 – apesar das mudanças, alguns resquícios históricos costumam permanecer por grandes períodos, quer seja nos nomes ou em outras características. Este fato torna bem complexo o estudo, mas ao mesmo tempo pode e deve ser atestado e pesquisado, até mesmo para melhor entendimento e confirmação das peculiaridades.     

Sobre o primeiro comportamento, já demos exemplo aqui. Sobre o segundo, entendemos, por exemplo, que não seria por acaso que instrumentos europeus (como vihuelas, guitarras e as diversas violas) tenham surgido e/ou se consolidado com formatos cinturados e fundos paralelos de caixas, enquanto instrumentos árabes, surgidos antes, sempre apresentaram formatos arredondados: a reação em rejeição aos árabes é notória; mas, apesar disso, a armação de cordas em seis ordens e até afinações em quartas (constatadas em alaúdes antigos) sobrevivem em instrumentos de origem europeia até os dias atuais.

Ainda, para confirmar a regra (inclusive, de que o tema é sempre complexo), não seria por acaso que nossas violas dedilhadas, procedentes das primeiras portuguesas, hoje apresentem cinco (e não seis) ordens de cordas e, diferente do resto da Europa, nome igual ao das friccionadas: a disputa Portugal/Espanha contextualiza e a peculiaridade de ser fato ocorrido apenas em Portugal denuncia a quebra de padrão, que só acontece em casos especiais… A regra geral ajuda muito a identificar e atestar exceções – mas tudo depende de análises bem amplas sobre os fenômenos circundantes (sempre eles).

Estes princípios dão margem a várias outras prosas… Mas, por enquanto, muito obrigado por ler até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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JOÃO ARAUJO

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