28 Set, 2023

ENTRE VIOLAS E VIOLINOS

ENTRE VIOLAS E VIOLINOS

            Viola, Saúde e Paz!

É bem provável que sejamos os únicos no mundo a estudar as violas dedilhadas brasileiras a partir da contextualização com a História dos Cordofones Ocidentais.

Esta frase te incomoda, talvez até te irrite um pouco? Parece muito pretenciosa? Não se preocupe tanto, ela é mais marketing que outra coisa. O objetivo é atrair para o que escreveremos a seguir: pedimos um pouco de paciência, um voto de confiança, que explicaremos.

A afirmação é atrevida, entretanto, não é mentirosa, sequer exagerada: circunstâncias que a maioria parece ainda não saber a tornam até óbvia, só que são necessárias algumas palavras a mais que uma simples “manchete” para explicar…

Primeiro que, no mundo ocidental, basicamente só duas culturas teriam tido até hoje interesse em estudar violas dedilhadas: as de língua portuguesa, em especial Portugal e Brasil (pela obviedade de que nestes países há violas dedilhadas até hoje) e as de língua espanhola, mas parcialmente, por causa das vihuelas que teriam caído em desuso a partir do século XVII. Teria havido violas dedilhadas em território italiano, pelo menos nos séculos XIV e XV (ver, das referências, Boccacio e Tinctoris), mas não encontramos estudos sobre elas. Em mais de uma centena de fontes das principais línguas ocidentais desde o latim antigo, se muito, encontramos umas cinco frases (!) sobre violas dedilhadas brasileiras e portuguesas. Concluímos, portanto, que o mundo praticamente desconhece nossas violas, mas nós resolvemos estudá-las com base em estudos mundiais sobre cordofones, por isso, já saímos na frente.

O fato é que portugueses e brasileiros não teriam publicado estudos nos quais demonstrem ter feito paralelos entre a História dos Cordofones e as nossas violas, principalmente nos aspectos histórico-sociais e seus impactos. Um destes impactos são as variações dos nomes dos cordofones pelos séculos, estes pouquíssimo estudados. Entenda-se bem: portentosas (e, merecidamente, respeitadas) pesquisas como a do português Ernesto Veiga de Oliveira, da década de 1960, citam alguns nomes em outras línguas, mas sem aprofundamentos, chegando a considerar instrumentos bem mais antigos, e com nomes bem diferentes, como sendo simplesmente “violas” (o nome “moderno” que em português só tem registros conhecidos a partir do século XV). Sim, hoje podemos afirmar que existiram instrumentos chamados “viola” (e variações próximas em diversas línguas deste nome original em latim) desde o século XII, mas com quase nenhuma descrição sobre detalhes dos instrumentos: daí, até afirmar-se que violas sempre teriam existido, e da mesma forma, em terras lusitânicas, há um abismo de desenvolvimento e atestação científica não apontado. E pior: nós, que partimos de observações de algumas pesquisas também muito portentosas, porém de dezenas de autores em diversas línguas, sobre todos os instrumentos, desenvolvemos que não é assim que os nomes deles vêm se comportando desde os mais remotos tempos.

O melhor é que ao estudar a História dos Cordofones nos deparamos com a História toda até os dias atuais, seus curiosos e específicos aspectos sociais, os paralelos com as diversas línguas / culturas… Muitas coisas interessantes, úteis e pouco citadas!

Uma exceção que precisamos apontar é o doutoramento da espanhola Dra. Rosário Martinez, já da década de 1980: este abrangente e portentoso estudo sobre os cordofones na Idade Média é um dos poucos que apontam preocupação e estudos sobre as variações dos nomes nas diversas línguas envolvidas. Além de vasto banco de dados de registros escritos, incluindo manuscritos, também é expressivo o número de registros a partir das artes plásticas, como esculturas, desenhos, iluminuras, pinturas e similares. Alguns contextos históricos-sociais são citados, porém poucos, indicando que não fizeram parte expressiva da equação investigativa. É ótima fonte sobre as vihuelas, sobretudo pelo contexto com os demais cordofones, mas sequer cita as violas dedilhadas portuguesas e brasileiras. Por outro lado, estudiosos brasileiros e portugueses raramente citam a boa pesquisa da espanhola (entendemos que, como nós, deveriam é seguir o exemplo e até ampliar o leque de bases daquela).

Já deu para entender porque então aproveitamos as circunstâncias para “puxar a brasa para nossa sardinha”? Não é, nem de perto, tão genial e inovador quanto a invenção da roda, por exemplo: mas é um aprofundamento bem sério sobre como o Ocidente tem estudado instrumentos nos últimos séculos e, com a soma das melhores ferramentas encontradas, estudar instrumentos que ainda não teriam sido estudados.

Bom… agora que esperamos que não nos ache arrogantes (só “espertinhos marqueteiros”), vamos ao tema de hoje, que já ensaiamos parcialmente pelas redes sociais e citações feitas em nosso livro A Chave do Baú. Aqui, entretanto, nos propomos tentar ser muito, mas muito mais profundos e detalhados, talvez, que qualquer outro estudo ocidental já publicado (sim, seguimos abusando das circunstâncias, a propaganda não é a alma?). Estes Brevis Articulus semanais são para isso, aprofundamentos; e também os aproveitamos para tentar fomentar o gosto pela leitura, pela valorização de descobertas científicas e pela preservação de nossos Patrimônios (no caso, Patrimônios não apenas as violas, mas também a inteligência, a sagacidade, a capacidade dos brasileiros).

Como falamos pouco deles por aqui, vamos primeiro introduzir os violinos: são cordofones de porte pequeno, com braço, caixa cinturada com desenho e furos estilizados, fundo plano, tocados a maior parte do tempo pela fricção de um arco. Os mais numerosos nas orquestras, tem hoje distinção de importância: o líder dos violinistas, chamado spalla, é normalmente o segundo na hierarquia após o maestro, e o “naipe”, quer dizer, o conjunto dos instrumentos similares, diferentes praticamente só pelos tamanhos, é convencionalmente chamado “família dos violinos” (contrabaixo, violoncello, viola e o violino, claro).

Respeitamos a consolidação, embora não concordemos com este nome “família dos violinos”: não deveria, pois o grupo surgiu após e em função das violas (“violino”, em italiano, significa “pequena viola”). A “família das violas de arco” (melhor dizendo, então, mas com aspas) têm os mais remotos registros conhecidos na península hyspanica, sob nome de VIHUELAS, quando ainda era nome tanto de instrumentos friccionados por arco quanto dedilhados. Dedilhados, no caso, podem ser diretamente pelas pontas dos dedos, ou unhas, ou plectros, que são pequenos objetos como as palhetas modernas usadas em guitarras elétricas.

Mais remoto registro conhecido do nome VIHUELA seria no Libro de Apolônio, de autores desconhecidos, estimado ao ano de 1240, onde também haveria variações como VIUELA e VIOLA, dependendo do códice/manuscrito analisado. Variações próximas (VIHOLA, VIOLA, VIEULA) constariam alguns anos antes no poema Daurel et Beton (também sem autor conhecido), escrito em occitano, língua surgida a partir do latim popular e antecessora dos atuais espanhol e português (tudo isso pode ser conferido, por exemplo, mas não apenas, no já citado trabalho de Martinez, de 1981).

VIOLA, como dissemos, teria registros desde o século XII em textos em latim (Codex Calistinus, estimado entre 1130 e 1160), logo em seguida em occitano, catalão e até em espanhol mesmo. As evidências são de que fossem instrumentos de tamanho maior que os atuais violinos. De maneira geral, todos os cordofones teriam evoluído com o tempo a partir de três cordas, depois quatro, cinco, etc. Uma das melhores fontes para perceber isso é The History of Musical Instruments, do alemão Curt Sachs, de 1940.

O termo violines (em texto em anglo-saxão, antecessor do atual inglês) teria registros pelo menos a partir do século XVI, na publicação Sheperd’s Callendars, de certo Edmundo Spencer (segundo pesquisas de Carl Engel, do livro Early History of Violin Family, de 1883). Já “violino”, propriamente dito, teria vários registros a partir do século XVII: em latim, por Michaele Prӕtorio (Syntagmatis Musici, de 1615) e Athanasius Kircher (Musurgia Universalis, de 1650). Já escrevendo em inglês, John Playford (em A Brief Introduction to the Skill of Musick, de 1667), chamou de treble-viol (“viola aguda”), o que, pelos registros em pauta, já seriam “violinos”; entretanto, antes e como ele, vários se se equivocaram em apontar lyra-viols como “violinos”. Aquelas, assim como as chamadas “liras bizantinas”, não teriam corpo cinturado, além de terem sido um pouco maiores, como as violas.

Destacamos, por haver muitos apontamentos equivocados, que haveria instrumentos similares antes, mas que não seriam violinos pois só podem assim serem considerados os de caixa cinturada. Mais que uma simples variação, que nem tanto altera a sonoridade final, as caixas cinturadas se tornaram a escolha europeia, claramente em concorrência (ou resistência) aos abaulados e periformes instrumentos dos invasores mouros. E por nossas pesquisas serem bem amplas, mais atenção chamamos para um fato: entre o surgimento do nome e a consolidação do violino como hoje o conhecemos há um período de cerca de 300 anos (!). Muitos não atentam para este importante período.

Outro equívoco comum, cuja origem vem de textos em francês, é considerar o termo violon, introduzido por Marin Mersenne (em Harmonie Universelle, de 1636) como modernos “violinos”. Realmente o termo veio a ter este significado, porém depois. Considerar o termo violon daquela época como “violino” é ver o passado com visão do presente (erro grave). Mersenne, de fato, usou o termo como proposta de subdivisão de friccionados por arco, entre violes (mais graves) e violons (mais agudos): genéricos, inventados, mais uma vez atrapalhando os estudos posteriores, como acontece muito. Hastag “pelo fim do uso de nomes de instrumentos como genéricos”. Seria tão melhor se este senhor tivesse escolhido “gravon” e “agudon”, por exemplo… Minha mãe dizia que “Deus não dá asas a cobras”, mas às vezes duvidamos. Só um pouco…

Apesar de, portanto, já existir como nome, o violino só viria a se consolidar a partir da segunda metade do século XVIII, após longa fase de transição que normalmente não é citada em detalhes pelos que se aventuram a escrever (talvez, para economizar palavras?). Entretanto, é uma grande fase (ou a soma de fases menores) de transição que, de fato, apontam e descrevem a verdadeira origem dos violinos.

Sem preguiça, o começo do começo seria: as mais remotas lendas (argh…) remontam a desenhos das cavernas que supostamente representariam arcos de caça como instrumentos musicais… (Será que os trogloditas tentavam matar animais tocando muito mal? Só pode). Depois, a lenda de Ravana (legendário Rei de Ceylan, na Índia, aproximadamente 2000 aC.) também evoca um arco como de instrumento musical entre imagens de elefantes enormes com diversos braços… (Sem comentários). Depois, nos sincretismos mitológicos greco-romanos (que tentavam “retraduzir” lendas de vários povos invadidos), talvez Apolo ou Mercúrio fosse o inventor…

[Na boa? Uma canseira esse negócio de “lendas e mitos”, que tantos gostam de citar para impressionar e “vender” conhecimento fútil como se fosse Ciência, como se fossem verdades… Só “confunde a bagaça”, na verdade, e são os mais citados e “gostados”!].

Fato, de fato, é que se arcos chegaram ao território europeu a partir do século VIII com a invasão moura/muçulmana, só teriam registros conhecidos a partir do século X. Registros escritos, desenhos e esculturas apontados por estudiosos que teriam vasculhado tudo quanto é museu e peça pública por lá. Na sequência vamos dar as referências de alguns destes estudiosos, em estudos publicados em diversas línguas (como Engel, Sachs, Garnault, Martinez): duvidem e chequem, pois esta informação, de atestamento só a partir do século X parece ser pouco conhecida até por estudiosos atuais.

Instrumentos cujos nomes árabes seriam próximos a rabab / rabeb (“rabecas”) podem, portanto, ser considerados os primeiros a terem registros como sendo tocados por arcos em território europeu, mas é bom atentar que eles teriam sido tocados tanto “com” quanto “sem” arco, tanto é que instrumentos bem similares eram chamados mandura e seriam dedilhados (ver em mais de um artigo da Encyclopedie de la Musique, de 1925).

A bivalência (mesmo nome de instrumento tocado de duas formas), pouquíssimo citada em estudos, teria sido encampada por instrumentos europeus antes apenas dedilhados, formando um trio de ancestrais que entendemos ser melhor apontar por seus nomes mais remotos: além do rabab (árabe), a giga e a rota (estes dois últimos, em latim). Entretanto, os grandes estudiosos que citamos, (os tais “vasculhadores”), acharam por bem traduzir estes nomes em seus apontamentos. João Araújo, que atrevidamente está a questionar estes e outros comportamentos, alerta que traduzir e/ou assumir nomes genéricos modernos para instrumentos antigos é um grave equívoco, mas é importante respeitar a forma que aparecem nas, sem dúvida alguma, sérias e bem embasadas pesquisas:

rotte, geige, rebec – em inglês, por Carl Engel, em Early History of Violin Family, de 1883;

crowth, gige, rebec – em alemão, por Curt Sachs, em Real-Lexikon der Musikinstrumente, de 1913;

crouth, gigue, rebec – em francês, por Paul Garnault, na Encyclopédie de la Musique et Dictionnaire du Conservatoire, de 1925;

rota, giga, rabé – em espanhol, por Rosário Martinez, na tese Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media, de 1981.

Como já explanado, nenhum destes acima seriam ainda “violinos”. A partir do século XII começariam surgir evoluções deles com nomes próximos ao termo “viola”, variações como: VIOLA, VIELLA, PHIALA, FIGELLA (em textos em latim), VIOLLE, VIELE (em francês); FIDIL / FIDLI (em irlandês), VIDELE, FITHELE, FIDELE, PHIGILE, VIGELE (em variações de dialetos alemães), VIOLA (em catalão e occitano) e VIHOLA, VIEULA (também em occitano) – isso para citar apenas variações semelhantes observadas até o século XIII (!). E sim, pode-se dizer que aqui “o buraco é mais embaixo”, e mais profundo, em quantidade de dados, por isso somos tão atrevidos, espertinhos, provocadores…

A mais remota citação de uso de arcos, nas então “violas”, seria do século XIII, pelo manuscrito Summa Musicӕ, creditado a certos “Perseus e Petrus”. Em latim, arcus dat sonitum phiale – porém, na mesma frase o instrumento teria sido descrito como rotule monochorde, então a tradução completa seria “O arco [é usado para] gerar som na phiala, um monocórdio com roda”. Este mesmíssimo texto, além de interpretações similares, teria sido replicado por séculos, tendo sido inclusive “creditado” a outros autores… Resultado? Vários estudiosos ainda sustentam que, por isso, phiala teria sido “viola”, e que seria tocada só por arco, por todo o território europeu, “pelos séculos e séculos amém”. É a questão de desconhecimento da possibilidade de violas dedilhadas, e de estudar e descobrir que um nome pode significar algo diferente em cada língua.

É também um grande equívoco. Talvez por confundirem com a organa, que neste caso não poderia ter sido “monocórdio com roda”. Ela realmente teria sido ancestral dos friccionados: cinturada, tocada por uma manivela, esta que girava uma roda, e aquela roda friccionava cordas. Só que a organa não teria tido descrição, nem faria sentido, ter uma corda só (conforme já desenvolvemos aqui em outro Brevis Articulus). E pior: teriam existido instrumentos monocordes, tocados por arco, mas tão grandes (cerca de dois metros de comprimento) que as citadas “rodas” então serviriam para locomoção. Aquelas phialas teriam sido “trombas / trombetas marinas”, citadas pelos pesquisadores acima e outros conforme suas línguas (trumscheit / trumbscheit em inglês e alemão, monochordo em latim e italiano, marine trumpet em inglês, trompette marine em francês, trompeta marina em espanhol). Para confundir mais um pouco os menos atentos, o mesmo nome seria citado depois também para um instrumento de sopro, por Virdung (em 1511) e Bonanni (em 1722).

Violinos teriam começado a surgir após clara fase de transição iniciada na península itálica, onde são observadas propostas de classificação das “violas”, após inicialmente serem conhecidas por lá por dois tamanhos: da braccio (“de braço”) e da gamba (“da perna”, indicando serem estas maiores). Esta fase, entretanto, só fica bem clara ao analisarmos o histórico de registros em várias línguas e épocas, por autores que entendiam e praticavam música, instrumentos musicais (faz diferença).

Depois de Johannes Tinctoris, que ainda identificava “violas” em Napoli tanto como cum arculo como sine arculo, mas as diferenciava das rebecum (“rabecas”) pelo fundo plano e formato cinturado de caixas (inclusive confessando serem ambos instrumentos que preferia tocar, conforme seu De inventione et uso musicӕ, ca.1486), seguiriam os registros de época que apontam mais de 100 anos de caminhos trilhados bem antes da atual classificação (considerar sempre do mais grave ao mais agudo dos instrumentos):

– a proposta de Martinus Agricola (Musica Instrumentalis, 1529), que em texto em alemão considerava todos friccionados como “geige” (genérico, a partir das gigas antigas, lembra?) e onde já se via a comparação com a classificação de vozes dos coros: bassus, tenor, altus, discantus;

– a proposta de Giovani Lanfranco (Scintille di musica, 1533), que em italiano as considerava todas como “violetta da braccio e da arco”: violono, violone, violoni (os mais graves) e basso, mezzana, canto (os mais agudos);

– a proposta de Silvestro Ganasi (Regola Rubertina, 1542), também em italiano: basso, tenor, alto, soprano;

– a já citada divisão de Mersenne, em 1636, em francês: violes e violons;

– a proposta apontada, inclusive por desenhos, por Athanasius Kircher (Musurgia Universalis, 1650), que em latim considerava todos como “chelys” ou “viola”: dodecachorde, hexacorde, maioris ou violone, minor, linterculus;

– a proposta de Christopher Simpson (The Division-Violist, 1659), em inglês: consort-basse, viol e lyra-viol;

– a proposta do citado John Playford, em 1667, em inglês: basse-viol, tenor-viol e treble-viol.

Além de não se observar um consenso, como dissemos cada autor traduzia ou inventava para suas línguas os nomes, o que facilita confusões até os dias atuais. Nenhum dos instrumentos acima pode ser considerado como o “violino” moderno, mas muitos equivocadamente assim apontam. Bem depois, mas ainda numa fase final do período de transição, antes da consolidação, teria havido clara disputa de espaço entre violinos e diversos outros instrumentos menores que as violas da época, no início do século XVIII. Esta fase foi apontada por alguns estudiosos, sendo o mais completo apontamento que observamos pelo já citado Paul Garnault, em 1925, que em francês listou e detalhou as diferenças entre: Viola di Bordone, Fagotto, Baryton de viole, Viola di Pardone, Viola Pomposa, Viole d’amour, Quinton, Pardessus de viole e Violettta marina.

O último nome citado não deve ser confundido com a Trombeta Marina citada antes, mas pode ser que o sobrenome tenha sido por inspiração nele. Segundo pesquisas da Dra. Martinez, “marina” não se referiria a “do mar”, mas aponta ter sido a partir de “de Maria”, pelo uso por freiras, religiosas que seriam “filhas de Maria”.

Violetta Marina (em italiano) ou English Violett (em inglês) aponta capítulo especial ao fim da fase de transição, ainda antes da consolidação dos violinos, ao qual fomos mais a fundo por termos detectado informações desconexas nos estudos. A criação é creditada ao músico italiano Pietro Castrucci (1679-1752), em período que este teria trabalhado em Londres (por isso o nome bilingue) como líder da orquestra do compositor alemão George Frideric Handel. Handel teria utilizado o novo instrumento a partir de 1730, assim como Johan Sebastian Bach. Violetta também seria “diminutivo de viola”, em italiano, e é talvez o campeão em equívocos de estudiosos. Entendemos que confundam porque elas utilizariam “cordas simpáticas” (isto é, cordas extras, que vibrariam junto com as cordas normais sem serem tocadas diretamente), assim como as Violas d’Amore, mais antigas. Entre as inúmeras fontes que pesquisamos, nesta que aparentemente é descoberta inédita nossa (detalhada em outro Brevis Articulus, específico) apenas Joseph Majer (Music Saal, 1741) teria atentado que, embora ambas utilizassem cordas simpáticas, violetta não seria exatamente uma viola d’amore, pois as distinguiu em alemão como Violinen (“violino”) e Brazzen oder Violen (“viola de braço”).

Na verdade, violetta não teria sido nem viola d’amore nem viola: seria menor… Mas não ainda como o violino. Entretanto, poucos indicam perceber estes tipos de pormenores, principalmente quanto a desenvolvimento específico de nomes de instrumentos, assunto ao qual nos dedicamos. É por isso que desenvolvemos, aprimoramos e divulgamos com ênfase nossa metodologia, nossos estudos inéditos que atrevidamente se propõem até revolucionários (e haja brasa…).

Portanto, só da segunda metade do século XVIII para cá teria ocorrido a consolidação não apenas dos violinos, mas de praticamente todos os cordofones como hoje os conhecemos. Não por coincidência, teria sido em paralelo com a consolidação das fases da Revolução Industrial… Mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, cujos aprofundamentos aponta às terças e quintas nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG – Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João; VIREDAZ, Rémy (supervisor de traduções). Chronology of Violas according to Researchers. [artigo independente]. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

AGRICOLA, Martinus. Musica Instrumentalis. Wittenberg: Georg Rhau, 1542 [1529].

BOCCACIO, Giovani. Decameron. Milano: Giuseppe Reina, 1849.

BONANNI, Fillippo. Gabinetto Armonico. Roma: Placho, Intagliatore e Gettatore, 1722.

CORRETE, Michael. Les Dons D’Apollon, Methode pour apprendre facilement à jouer de la Guitarre par Musique et par Tablature. Paris: Bayard, Kach. e Castagnerie, 1762.

ENGEL, Carl. Researches into the Early History of the Violin Family. London: Novello, Ewer & Co., 1883.

GANASI, Silvestro. Regola Rubertina. Veneza: s/n, 1542.

KIRCHER, Athanasius. Musurgia Universalis, sive Ars Magna Consoni et Dissoni. Libre Sextus, Musica Organica sive de musica instrumentali. Roma: Typografia Corbelletti, 1650. 

LANFRANCO, Giovani.  – Scintille di musica. Brescia: Ludovido Britanico, 1533.

LAVIGNAG Albert; Encyclopédie de la Musique et Dicciotionnaire du Conservatoire. v. 4, 6, 8. Paris: Librarie Delagrave, 1920

MAJERS, Joseph F. Bernhard Caspar. Music Saal. Nurenberg: Jacob Cremmer, 1741.

MARTIN, Darryl. The early wire-strung guitar. In: The Galpin Society Journal, United Kindom, nº 59, p. 123-137, maio 2006.

MARTINEZ, Maria do Rosario Alvarez.  Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos. 1981. Tese (Doutoramento em História da Arte) – Fac. de Geografia e História, Univ. Complutense de Madrid. 1981.

MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle, contenant la théorie et la pratique de la musique. Paris: Sebastien Cramoisy, 1636.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 [1964].

PLAYFORD, John.  A brief introduction to the Skill of Musick in threee books. London: W. Godbid, 1667PRӔTORIO, Michaele. Syntagmatis Musici. [Wolfenbuttel]: Johanis Richteri, 1615

SACHS, Curt. Real-Lexikon der Musikinstrumente. Berlin: Julius Bard, 1913.

SACHS, Curt. The History of Musical Instruments. New York: W.W & Company, 1940.

SIMPSON, Cristopher. The Division-Violist. London: W. Godbid, 1659.

TINCTORIS, Johannes. De Inventione et usu musicae. [Naples]: EMT [internet], [1486]. TYLER, James; SPARKS, Paul. The Guitar and its Music: from the renaissance to the classical era. Nova Iorque: University Press, 2002.

VIRDUNG, Sebastian. Musica getutscht und ausgezogen. Basel: Michael Furter, 1511.

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OLHANDO PELO LADO DAS GUITARRAS

OLHANDO PELO LADO DAS GUITARRAS

            Viola, Saúde e Paz!

Normalmente, tanto em nosso livro A Chave do Baú quanto aqui, nos Brevis Articulus, o foco é nas violas dedilhadas… Mas já tivemos que ampliar estas bases desde o início, vez que concluímos que o mais esclarecedor é estudar violas dedilhadas e friccionadas ao mesmo tempo. Não apenas pelo nome igual: suas histórias também estão interligadas desde que o nome surgiu, lá no século XII, embora a maioria dos estudiosos ocidentais ainda não teria percebido, desprezando as evidências de dedilhados nos registros (ver nosso artigo Chronology of Violas according to Researchers).

Também temos demonstrado, por meio de nossa metodologia (que soma à musicologia aspectos linguísticos, históricos, sociais e outros), que a origem das violas dedilhadas vem de uma peculiar ação nacionalista portuguesa, ao chamar de “violas” o que na verdade seriam outros instrumentos, e depois manter este nome e algumas poucas alterações a um formato abandonado pelos espanhóis a partir do início do século XIX para suas chamadas “guitarras barrocas”. Isto são prosas passadas e repassadas por aqui.

            Outrossim, apontamos um curioso paralelo entre “guitarras e violas” desde cerca de 4000 anos atrás (!), a partir de variações próximas dos nomes e características organológicas. Por evidências que alargam bastante o antes observado principalmente por Curt Sachs (1940) apontamos que desde que os assírios resolveram renomear como kethara o tricordiano pan-tur, dos subjugados sumérios, os descendentes daqueles cordofones vêm paralelamente disputando espaços no Ocidente. Uma boa prosa passada, que é das primícias do rebanho de pioneirismos que já detalhamos por aqui.

            As guitarras, portanto, também fazem parte da história das violas. Em alguns períodos, mais diretamente – em outros, um pouco mais afastadas, mas, sempre estiveram “ali por perto”, como um irmão ou primo com quem temos contato pela vida toda. Por isso, desta vez resolvemos trazer um aprofundamento um pouco maior sobre as “guitarras”, desde as origens até as hoje consolidadas com os nomes “violão”, guitarra elétrica e “guitarra” portuguesa (aspas em “violão” porque é um apelido português das guitarras espanholas; e as aspas na versão portuguesa, vamos deixar para explicar um pouco mais à frente aqui).

            Dando apenas uma pincelada no começo do começo dos cordofones, os mais remotos registros escritos, sumérios e egípcios, indicam desde cerca de 6000 anos atrás a existência de vários tipos de cordofones, que podem ser listados como numa linha evolutiva. Utilizando nomes que se consolidaram depois, mas com consciência, podemos apontar primeiro as “harpas” (nome tardio, de origem grega); depois, quando menores e portáteis, as “harpas” seriam “liras” (outro nome tardio dado pelos gregos); e estas “liras”, quando mais tarde passaram a apresentar caixas de ressonância ao longo das cordas seriam “saltérios” (este, um nome originado já no latim).

Depois desta fase, a evolução apontaria os tais braços destacados das caixas de ressonância. Além dos dois primeiros nomes (sumério e assírio) que citamos, o remoto termo nefer também surgiria, entre os egípcios. Até a época da influência grega (entre os séculos VIII e II aC.) teria ido tudo relativamente bem: teria surgido o kellys, latinizado depois como chelys e apelidado testudo (os três nomes significam “tartaruga”), muito provavelmente porque já se morria de inveja dos árabes e seus bem feitos instrumentos abaulados (como cascos de tartaruga). Para ficar seguro nesta parte, sugerimos conferir excelente artigo de Carin Zwilling (brasileira que sabe muito de musicologia, História e até de linguística, coisa rara no meio).

A bagunça teria começado com os romanos: para demonstrar que eram “os tais”, começaram a querer que tudo fosse traduzido para o latim. O problema é que textos antigos em latim apontam uso de vários nomes sem critério, sem observar diferenças entre os instrumentos. Não que esperássemos que todos conhecessem de organologia (ciência que ainda nem existiria), mas, por exemplo, o filósofo Marcus Tullius Cícero citava exemplos com música / instrumentos musicais com tanto cuidado que até nos ajudam hoje a atestar que fides e seus diminutivo fidicula eram termos genéricos (sugerimos ler dele pelo menos o texto De Legibus II). Poucos, entretanto, leram Cícero com olhar musicológico.

Em textos romanos surgiram variações como guiterna e, a partir de cithara, variações como cedra, cetula e outras próximas. É compreensível que quisessem substituir nomes antecessores, mas para nós, que vamos depois pesquisar, é exigida muita atenção. Infelizmente o péssimo hábito não durou só pelos primeiros séculos da era Cristã: até os dias atuais muitos ainda fazem e até acham bonito. Entendemos que o generalismo e as traduções e invenções pouquíssimo acuradas tornam mais difícil entender reflexos histórico-sociais que os instrumentos testemunharam por séculos, e que está também nos nomes. É uma canseira, e uma pena que tantos não percebam isso.

Pitangas já devidamente choradas, sigamos com o andor: depois da queda de Roma, nas línguas não-latinas (chamadas “germânicas”, mas não são só as alemãs), a partir da citada variação em latim quinterna / guiterna surgiram citterns e gitterns que mais tarde apontariam para instrumentos com caixas redondas, antecessores da hoje chamada “família dos cistres” (bandolins, “guitarras” portuguesas, etc.). As aspas continuam, mantenhamos o suspense um pouco mais, enquanto vamos proseando…

O formato redondo das caixas é um meio termo, mas assim como o formato cinturado também indica rejeição aos instrumentos abaulados árabes. Assim, “guitarras” ainda não seriam cinturadas como hoje em “quase todo” o ocidente, mas também arredondadas, até o século XVIII. Pode-se dizer que até aquela época era uma grande bagunça, “liras gregas” seriam as sem braço, “liras bizantinas”, com braço e tocadas por arco, “cítaras”, só Deus sabe o que seria em cada texto… Nomes de instrumentos parecem “terra sem lei”, não à toa poucos têm a (in)sanidade de estudá-los com profundidade musicológica, e sobram “chutes” feitos até por linguistas respeitados.

Não por coincidência, mas por um reflexo histórico-social relacionado à Revolução Industrial, foi naquela época a consolidação das guitarras espanholas e da chamada “família dos violinos”, das orquestras (estes a partir da Itália, mas já com apoio de orquestras e compositores famosos na França, Inglaterra, Alemanha). Resumidamente, o que aconteceu é que, como a maioria das coisas, instrumentos passaram a ser vistos também como “produtos” – e produtos precisam de bons nomes e investimento (estudos, aprimoramentos, divulgação) para serem melhor vendidos.

Entretanto, desde pelo menos o século XIV já se observaria tendência de separação, na Espanha, entre “guitarras latinas” e “guitarras mouriscas” – e assim teria surgido a preferência europeia pelo formato cinturado de caixas. A rixa com os mouros é claramente apontada, por exemplo, por Juan Ruiz em seu Libro de Buen Amor. Crawford Young (2015) fez uma boa análise documentada de nomes, mas como vários outros, não incluiu nas equações os contextos histórico-sociais, que são claros: árabes muçulmanos, chamados “mouros”, foram invasores do território europeu entre os séculos VIII e XV. Eles teriam levado para lá cordofones dedilhados de formato periforme, com caixas de fundo abaulado, especialmente em dois tamanhos que seriam chamados, numa adequação à nossa língua, algo próximo de mandura e al’ud (alaúde).

Em reação aos instrumentos dos invasores, após alguns séculos surgiriam cordofones já europeus com caixas cinturadas e fundo plano (e demais características quase idênticas aos dois anteriores, mouros), chamados respectivamente: guitarra e vihuela (ver, por exemplo, Juan Bermudo e sua Declaracion de los Instrumentos Musicales, de 1555).  

As guitarras traçaram (a partir do século XVI, portanto), uma história de sucesso: primeiro, pequenas, com 4 ordens de cordas, concorrendo claramente com bandurrias (nome espanhol para as citadas manduras árabes), guitarras já chegaram a ficar “famosinhas” por outras terras além das espanholas; depois, a partir do século XVII, as pequenas cairiam em desuso, assim como as vihuelas, maiores, quando então ambas teriam sido substituídas por guitarras com 5 ordens, a tal “guitarra barroca” (nome inventado depois, e muito citado até hoje, porque que se tornaram bem famosas). À época, fora do território espanhol, há inúmeros registros, inclusive métodos, de guitare (em francês), Guitarre e/ou Gitarre (em alemão), chitarra (em italiano) e até guitar, gittern e cittern (em inglês), no caso, cinturadas concorrendo com as arredondadas de lá.

Atente que, mesmo com as traduções, a Europa da época teria se rendido ao nome espanhol / catalão “guitarra”, mas apesar de vizinhos, os portugueses não teriam ido “na mesma onda”. Uma boa fonte para visualizar este panorama geral é o livro The Guitar and its Music: from the renaissance to the classical era, de Tyler & Sparks (2012).

É importante salientar que o que caiu em desuso, na prática, foi a utilização do nome guitarra para dedilhados cinturados pequenos, e vihuela para os maiores. Instrumentos similares continuaram existindo pelos séculos, fora do território espanhol, com outros nomes. Por exemplo, para os menores, o nome castelhano charango e os portugueses rajão, braguinha, machinho, machete, cavaquinho e até a versão hawaiana ukulelê (os dois últimos, já a partir do século XIX). Na Itália, desde o século XIV, e em Portugal, desde o século XV, haveria registros de violas, que eram correspondentes às antecessoras vihuelas espanholas (uma evidência disso é que nas três culturas os nomes eram bivalentes, ou seja, o mesmo nome era usado para dedilhados e para friccionados por arco). A diferença é que na Itália, a partir do XVII, acompanhando vários outros vizinhos, o nome dos dedilhados cinturados mudou, surgindo as chitarras – e em Portugal, isso nunca aconteceu, a bivalidade inclusive ainda continua.

Como apontamos, as histórias se entrelaçam, é preciso ter sempre “um olho no peixe, outro no gato”. Um exemplo é que, como o charango (que com o tempo teve mais cordas acrescentadas), “machete” viria a se tornar a nossa Viola Machete, não sendo, portanto, por coincidência que estes instrumentos, cinturados de tamanho menor, tivessem tido armações com 4 ordens e hoje armem em 10×5 (exatamente a armação das guitarras barrocas).

  Finalmente, as guitarras espanholas mudariam mais uma vez, na virada dos séculos XVIII e XIX, passando a armar com 6 ordens (seis cordas simples), que é o “violão” atual, e que acabou por “dominar a zorra toda” de lá pra cá. Não foi “do dia para a noite”: durante o período de transição entre a “guitarra chamada barroca” e o “violão” (aproximadamente entre 1760 e 1830), teriam surgido também versões com cinco cordas simples e de 12×6 (uma revisitação à antiga armação das vihuelas e também dos alaúdes). Poucos, além dos citados Tyler & Sparks (2012), teriam observado registros de todas estas variações durante a fase de transição.  

Lembrando que as guitarras seriam simplesmente chamadas de “viola” em Portugal, por lá há registros também, no mesmo período, de armações em 12 cordas em 5 ordens (onde, portanto, duas ordens seriam triplas) que, diferente das guitarras espanholas, apontariam de uso de cordas metálicas (ver Paixão Ribeiro e Pita Rocha).

É bom prestar atenção em alguns detalhes pouco observados por outros: as violas 12×5 portuguesas seriam afinadas e tocadas exatamente como as guitarras espanholas da época (o citado método de Pita Rocha é tradução equivalente à parte referente à cinco ordens do famoso método de Amat, de cerca de 150 anos antes). A armação 12×5 teria sido citada pelo francês Michel Courrete depois disso, em 1762 e, sabe lá Deus porquê, ele apontou que seria chamada “a la Rodrigo”. Muita gente boa, até hoje, acredita que por isso a invenção da armação teria sido portuguesa, mas não se atesta (já esclarecemos isso por aqui, em um Brevis Articulus específico). Também já denunciamos que ordens triplas com cordas de metal seriam utilizadas em chitarras italianas desde o século XVI (ver Martin).

Não teria sido, portanto, uma “grande criação” portuguesa, mas as violas portuguesas 12×5 seriam de fato as primeiras “violas” da História daquele país com diferenças significativas das guitarras espanholas e de outros cordofones existentes. Esta é a nossa descoberta sobre a origem das violas dedilhadas, que até então teriam sido apenas “um nome preferido” utilizado pelos portugueses para cordofones existentes. Também não é nenhum “grande feito” nosso, apenas olhamos por ângulos diferentes e mais amplos alguns registros e contextos que outros já poderiam ter percebido.

Outra constatação só nossa é que, historicamente, o comportamento português se demonstra diferente: pelo menos entre os cordofones populares, ainda não encontramos um que eles tenham inventado a partir do zero, ou tenham implementado modificações e evoluções expressivas, só nos nomes (e apenas nomes diferentes não tornam diferentes os instrumentos em si, pela História). Os portugueses podem até ficar chateados conosco, mas é o que a História aponta e aqui nem cabe crítica, antes ao contrário: entendemos que seja uma forma peculiar de nacionalismo, de patriotismo deles, que é até admirável. Há que ser contextualizado que em 1755 aconteceu o chamado Grande Terramoto, que praticamente teria destruído Lisboa: a comoção social teria sido grande, por longo período (a reconstrução não teria sido rápida, nem fácil), e colaboraria para diversas mudanças históricas do país. Como sempre, tais eventos são refletidos de alguma forma nos cordofones populares.

Além disso, àquela época já se evidenciariam reflexos da Revolução Industrial, com as grandes mudanças de comportamento social também observadas. Por exemplo, aliado ao potencial financeiro / comercial intrínseco, ter um instrumento diferenciado ajudaria a destacar um país ou região. Os espanhóis já estariam a explorar e lucrar com esta visão há tempos, os italianos já apontavam estar a fazer o mesmo com seus instrumentos de orquestras, em especial os cordofones friccionados por arco (que apontam mudanças significativas, consolidadas exatamente e não por coincidência naquele mesmo período, entre meados do XVIII e início do XIX). Métodos para aprendizado, aprimoramentos de fabricação e aumento do interesse geral são atestados, dando destaque para espanhóis e italianos à época, em cada um dos dois casos.      

Tecnicamente, instrumentos com diferentes armações de cordas seriam “instrumentos diferentes”. Sim: tamanho, número de ordens e de cordas são diferenciadores, embora alguns estudiosos parecem ainda não entender assim, pelo mundo. Uma evidência são diversos métodos publicados onde o número de cordas era indicado desde o título, obviamente para que o cliente não tivesse dúvida sobre a qual instrumento “diferente” se referia. Destacamos o já citado método de Amat, onde no extenso título fez-se questão de indicar Guitarra española y vandola [que teria seis ordens], de cinco órdenes y de quatro. Outra evidência que não deixa dúvida que são diferentes estaria no tocar, mas infelizmente, muitos que estudam instrumentos não desenvolvem também este tipo de habilidade, prazer e honra. Se não forem considerados os detalhes de números de ordens e de cordas, junto a outros contextos, grande parte da História das guitarras, violas e outros cordofones simplesmente passa despercebida.

Eram portanto instrumentos diferentes, mas chamados originalmente de “guitarra” (que teria sido o investimento espanhol, como numa “marca”). Já “violão” e “viola francesa” são apelidos criados pelos portugueses, que sempre foram adversários dos espanhóis e demonstram historicamente não gostar de “dar palco pra inimigo” pelo nome dos instrumentos. Por que aqueles apelidos teriam surgido? Muito provavelmente porque os portugueses já chamavam as antigas guitarras (de 5 ordens) de “viola” … A “nova guitarra”, com 6 cordas simples, evoluiu para caixas um pouco maiores, se tornando mais diferentes ainda e com mais sucesso pelo território europeu… Entendeu o princípio de ação e reação, dentro do contexto de nacionalismo português? Entendeu até certo pejorativismo no aumentativo “violão” e na tentativa de disfarçar a verdadeira origem pelo nome “viola francesa”, sendo que o nome “guitarra” já era utilizado há séculos pelos espanhóis? Entendeu como a História das guitarras se cruza com a das violas? Percebeu porque é importante estudar os nomes nas línguas originais e estar atento a fenômenos circundantes, como a História de culturas/regiões vizinhas?

Portanto, a origem das guitarras se deve aos espanhóis, até por reconhecimento aos esforços que empreenderam por tanto tempo. Mas e as tais das aspas que ficamos devendo?

Os portugueses teriam começado a investir em algumas diferenças para as violas, mas não teriam seguido no projeto, mesmo quando não haveria mais “concorrência” com as guitarras espanholas, que mudaram. Entendemos que a estratégia realmente não poderia ter sido a melhor, porque “instrumentos chamados de viola” existiam também Brasil, a enorme ex-colônia (já que exatamente no fim daquele período, em 1822, libertou-se). A comoção social em Portugal mais uma vez teria sido grande, pela perda, e novamente nestas ocasiões é normal o nacionalismo ficar exacerbado, e instrumentos apontarem reações. Isso teria levado ao surgimento da “guitarra” portuguesa (e finalmente vamos desvendar o motivo das nossas aspas).   

Pra começar, afirmamos (e que os portugueses um dia possam nos perdoar), que a origem das guitarras portuguesas aponta ser a partir das english guitars (ou english gitterns), “guitarras inglesas” de caixas arredondadas, com registros até o início do século XIX. Guitarras portuguesas, de caixas arredondadas, claramente em reação ou concorrência às cinturadas guitarras espanholas (já vimos este filme antes, certo?). Tudo aponta coerência com um povo que não tem histórico de surgimento de instrumentos novos, sofrendo grande comoção social e com nacionalismo aflorado, enquanto vizinhos demonstravam investir em instrumentos como produtos de identidade nacional.

Gostamos de dizer, brincando, que os portugueses pareciam estar “a tirar sarro” dos espanhóis, ao finalmente passarem a utilizar abertamente o nome deles, “guitarra”, porém para um instrumento bem diferente, de caixa arredondada. Naturalmente, é possível que tenha sido apenas uma coincidência, vez que uma tradução natural de guitar / gittern para o português seria “guitarra”. Só que, em termos de histórico de nomes de instrumentos, sempre desconfiamos de “coincidências”: se existiram, são raras.   

Entretanto, portugueses como Nuno Cristo (2021), afirmam que não: por grande número de registros realmente atestados, ele, mais que outros, desenvolveu que guitarras portuguesas teriam vindo de antigas cítaras, não das guitarras arredondadas inglesas. O que observamos, entretanto, é que o exaustivo número de fontes apontado por Nuno, por si atesta que muito raramente os portugueses teriam utilizado o nome “guitarra” antes do século XVIII (ao contrário do que grande parte do continente fez). Nuno também ajuda a atestar como os “gajos” expressam seu nacionalismo de forma peculiar, até os dias atuais, em especial a considerar que os nomes que utilizam seriam soberanos quanto aos de outras línguas. É assim, inclusive, o entendimento do próprio Nuno sobre as origens do cavaquinho e dos portugueses em geral sobre as violas: não se considera paralelos com outros países, assim como pouco se embasa em contextos histórico-sociais. Talvez, quem sabe, porque seria sofrido demais relembrar tantos episódios infelizes da História portuguesa?

Para ser muito sincero, entendemos que é bonito, nobre e elogiável o nacionalismo português, quem dera os brasileiros tivessem herdado isso dos patrícios. E quem dera tivéssemos pesquisadores brasileiros com tanta dedicação no levantamento e apontamento de fontes como Nuno Cristo.

Só que, em termos de nomes de instrumentos, a História dos Cordofones Europeus nos aponta por padrão evoluções coletivas, paralelas, por várias línguas e culturas ao mesmo tempo. Apesar do grande banco de dados apontado, Nuno, por exemplo, não cita o desenvolvimento por séculos do termo “guitarra” na parte espanhola da mesma península, que destacamos aqui, e que teve reflexos em grande parte da Europa conhecida enquanto o termo, entre outros nomes de cordofones dedilhados, era rejeitado em Portugal, que chamava a todos de “viola” (esta mesma constatação teria sido apontada pelo respeitado pesquisador português Manoel de Morais, em 1985).

Estudiosos portugueses raramente consideram, por exemplo, o que descreveu o também respeitável musicólogo alemão Athanasius Kircher, escrevendo em latim em 1650, sobre o que chamou de cytharas: germânicas, gálicas e italianas seriam arredondadas e as hyspanicas, cinturadas (sem citar portuguesas). Mais importante ainda é dar uma boa olhada no excelente doutoramento da espanhola Rozário Martinez (de 1981), onde são feitas análises amplas de registros de nomes por séculos, em várias línguas, atestando a evolução, a partir do século XIII, do latim quinterna / guiterna até guittern e cittern nas línguas germânicas (alemão, inglês, etc.). Ou seja, a ligação mais ancestral do nome com instrumentos de caixas arredondadas não aponta para espanhóis e portugueses. Também em tempo, e para citar fonte em português, “cítara”, em Portugal, no século XVIII, seria nome também de “violas”, cinturadíssimas (ver nos importantes dicionários de Bluteau, publicados em Lisboa por todo aquele século).

É fácil perceber que o termo “guitarra”, das guitarras portuguesas, estaria ligado ancestralmente ao mesmo latim cithara, assim como este ao anterior grego kithara. A questão é o florescimento do termo “guitarra” em Portugal a partir de fins do século XVIII sem evidências de um desenvolvimento contínuo pelos séculos anteriores, como se atesta que teria acontecido em terras britânicas e outras de línguas germânicas (quinterna, guiternaguittern, cittern). Inúmeros outros exemplos assim apontamos aqui, pela História dos Cordofones europeus, é um padrão atestável.

Se os portugueses quiserem se basear no desenvolvimento em várias línguas ao mesmo tempo, atestável pelos séculos, tem que explicar porque só eles não teriam aderido ao termo espanhol guitarra (ou variação próxima) para instrumentos dedilhados, como tantos fizeram, inclusive os próprios ingleses após o século XVIII (a english gittern, arredondada, caiu em desuso, após a ascensão da guitarra portuguesa, enquanto as guitars cinturadas ainda existem). Só portugueses seguiriam chamando dedilhados cinturados de “viola”, só portugueses chamam um instrumento de caixa arredondada de “guitarra” até hoje … Por que?

            Quando acrescentamos à equação investigativa contextos histórico-sociais amplos, há quadros bem esclarecedores: a evolução em paralelo das culturas “germânicas” e “latinas” nem precisa explicar, vai muito além da intensidade de influência do latim nas línguas. São rixas antiquíssimas, assim como as existentes entre Portugal e Espanha. Outro contexto importantíssimo é a reaproximação de Portugal com a Inglaterra, apoiadora de Dom Pedro I, vencedor na Guerra dos Dois Irmãos, ocorrida entre 1832 e 1834 (sim: foi mais um evento de grande comoção social para os portugueses, ao final do mesmo já tão destacado período, quando é de se esperar alguma reação nos instrumentos populares).

Tudo aponta que, apesar de poder ter havido anteriormente em Portugal instrumentos chamados “citara” (e variações próximas deste nome), é após o expressivo retorno da influência inglesa ao país que surgiu a “guitarra portuguesa”, para depois vir a se tornar uma “expressão de identidade nacional”, junto com ao fado (outro “filme que já vimos antes”, investimentos nacionais em determinado tipo de músicas e instrumentos). Portugueses apontariam historicamente uma forma (possivelmente única) de expressar nacionalismo pelos nomes dos cordofones populares – atestável pelo surgimento de anomalias exclusivas como as “guitarras” portuguesas arredondadas (entendeu agora as aspas?), assim como, séculos antes, a continuidade de “violas” como nome bivalente (para dedilhadas e friccionadas por arco), quando praticamente o mundo todo separa os instrumentos por nomes diferentes. Lembra que lá no início citamos o paralelo histórico pan-tur / kethara? Não seria à toa que o padrão seria quebrado apenas por portugueses.       

O fato, pela análise mais ampla, é que nomes de instrumentos tem enorme histórico de que, quando mudam, surgem ou desaparecem, é possível atestar a coerência com contextos histórico-sociais e rastros das transições por longos períodos.

Por falar em nomes que permanecem, guitarras elétricas sempre mantiveram o nome espanhol (!) embora tenham surgido nos Estados Unidos em meados do século XX, já com o Capitalismo mais que consolidado. Muito provavelmente pela grande comoção social causada pelas duas grandes guerras, de onde depois teria também evoluído movimentos pela paz como o hippie (ação/reação). A música reagiu pelo surgimento do rock, onde as guitarras elétricas aparecem com destaque de contexto, junto com evoluções eletrônicas, o que inclui aprimoramento de comunicações e trocas de informações mais globais. Todos estes contextos se relacionam, por exemplo, ao fenômeno Beatles (e não seria coincidência), mas aí já são outras prosas.

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Autor do livro A Chave do Baú, cujos aprofundamentos aponta semanalmente nos portais VIOLA VIVA e CASA DOS VIOLEIROS).

ARAÚJO, João. Linha do Tempo da Viola no Brasil: a consolidação da Família das Violas Brasileiras. 2021. Monografia (Premiação Pesquisas Secult MG – Lei Aldir Blanc). Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2021.

ARAÚJO, João; VIREDAZ, Rémy (supervisor de traduções). Chronology of Violas according to Researchers. [artigo independente]. Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2022.

AMAT, Joan Carles. Guitarra española y vandola, de cinco órdenes y de quatro, la qual enseña a templar y tañer rasgado todos los puntos naturales y B mollados, com estilo maravilhoso. Valência: Augustin Laborda, [1596].

BLUTEAU, Rafael. Vocabulario Portuguez, e Latino. [v.1 a 8]. Coimbra: Collegio das Artes da Cia de Jesu, [1712 a 1720].

BERMUDO, Juan. Declaracion de los Instrumentos Musicales. Madrid, s/n, 1555.

CORRETE, Michael. Les Dons D’Apollon, Methode pour apprendre facilement à jouer de la Guitarre par Musique et par Tablature. Paris: Bayard, Kach. e Castagnerie, 1762.

CRISTO, Nuno. Em defesa da cithara lusitânica: celebrando a prática da cítara em Portugal desde o século XVI. Cong. Organologia ANIMUSIC, Fundão, Portugal, 2021.

MARTIN, Darryl. The early wire-strung guitar. In: The Galpin Society Journal, United Kindom, nº 59, p. 123-137, maio 2006.

MARTINEZ, Maria do Rosario Alvarez.  Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos. 1981. Tese (Doutoramento em História da Arte) – Fac. de Geografia e História, Univ. Complutense de Madrid. 1981.

MORAIS, Manuel. A Viola de Mão em Portugal (c.1450-1789). Nassare Revista Aragonesa de Musicología XXII, Zaragoza, v1, nº1, p. 393-492, jan./dez. 1985.

OLIVEIRA, Ernesto Veiga de. Instrumentos Musicais Populares Portugueses. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000 [1964].

ROCHA, João Leite Pita da. Liçam Instrumental da Viola Portuguesa. Lisboa: Oficina de Francisco Silva, 1752

SACHS, Curt. The History of Musical Instruments. New York: W.W & Company, 1940

TYLER, James; SPARKS, Paul. The Guitar and its Music: from the renaissance to the classical era. Nova Iorque: University Press, 2002.

ZWILLING Carin. Os instrumentos musicais na República de Platão. Artigo independente. São Paulo: ed. da autora, 2015.

YOUNG, CRAWFORD. Cytolle, guiterne, morache – a Revision of Terminology. In: The British Museum Citole: New Perspectives. Londres: British Museum, 2015.

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14 Set, 2023

À BEIRA DA FOGUEIRA, MAS AINDA NA CAVERNA

À BEIRA DA FOGUEIRA, MAS AINDA NA CAVERNA

“A educação seria […] a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão [o olho], não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe meios para isso.”

[Platão, em Politeia ou “A República”, ca. 350 aC.].

Viola, Saúde e Paz!

Antes de qualquer coisa, se considerar como velho e ultrapassado o Mito da Caverna de Arístocles (vulgo “Platão”), talvez deva repensar: a alegoria atravessou os séculos e é tanto estudada seriamente até hoje, por vários ramos da Ciência, quanto influencia obras de ficção como o livro Admirável Mundo Novo (de Aldous Huxley) e, no cinema hollywoodiano, de filmes como Matrix, Show de Truman e Avatar.

Já se for daqueles que desprezam livros e filmes, cuidado: pode ser que esteja ainda algemado no fundo de uma caverna, ou esteja no máximo desfrutando do conforto da beira de uma fogueira, mas sem nunca ter conhecido o sol – a maior e mais verdadeira fonte de luz e calor… Ficção nem sempre é apenas divertimento.

O Mito da Caverna foi relatado no livro VII da obra hoje mais conhecida, nas línguas latinas, como A República.  É mais citado como relativo à filosofia geral, ou à filosofia política. À filosofia geral, pode-se entender que sim, porém no mais amplo sentido possível, já que à época de Platão não existia ainda o significado que hoje damos à scientia (latim para “ciência, conhecimento”), portanto, φιλοσοφία (“filosofia”, em grego) seria todas as Ciências, seria philo (“amor” ou “amizade”) à sophia (“conhecimento, sabedoria”).

Já sobre as interpretações políticas, “república” (termo hoje entendido como um sistema de governo), teria surgido só cerca de 400 anos depois (!), a partir do romano Cícero, um admirador de Platão que escreveu o texto Da Republica, seguido e citado em seu outro texto De Legibus – ambos sobre política romana dos primeiros séculos da Era Cristã (no caso, a república romana). A influência em Cícero era tão latente que, assim como Platão, escrevia em forma de diálogos, como foi o caso destes dois textos citados. Platão, por sua vez, escrevia diálogos pela principal defesa de seu mentor, Sócrates: dialogar como meio para evolução intelectual. E colocou Sócrates, figurativamente (pois já teria sido assassinado) como o personagem principal do texto a que nos referimos, mas seria só a voz figurativa das ideias de Platão, que notadamente teria ido além do que desenvolveu seu mentor.

O título original de A República é Πολιτεία (“Politeía”, em grego), e embora o radical polis seja, não de todo equivocadamente, relacionado a “cidade”, antes e acima disso significaria “vários, diversos”. Sim, a cidade teria sido o núcleo político-econômico grego, mas também significava “coletivo, grupo de pessoas” (no caso, seria o principal coletivo, o mais importante polis). Politeía é sobre a cidade, sobre como poderia ou deveria ser uma “cidade ideal” à luz do Conhecimento mais amplo. E também não nos foge (nem a outros estudiosos, mas poucos), a percepção que aquela “cidade” fictícia também poderia ser um paralelo com o indivíduo, com a governança que cada um deve ter de sua própria vida…

Complicou um pouco? Pois é… Trata-se de um dos textos mais discutidos em todos os tempos, e há poucos consensos a respeito. Humildemente (ou com grande dose de coragem, talvez?) ousamos afirmar que não teria sido escrito para deixar tudo claro a todos que o lessem. Sim, que Platão teria deixado claro, logo no início, que falava da cidade, física, afastando a possibilidade de estar a usar metáforas neste particular… porém… lembra que citamos que o texto todo (10 livros!) seria narrado por alguém que já teria morrido, à época? Isso é metafórico… Além disso, também já citamos que aqui vamos falar sobre um dos vários “mitos” utilizados por Platão… Entendeu? O cabra falou de coisas sérias, palpáveis, mas sem assumir diretamente a autoria. Criticou a consolidada visão poética da época, que segundo ele poderia às vezes ser muito ilusória, imitativa – mas usou mitos, alegorias (verdadeiras parábolas) para exemplificar seus raciocínios…

Nossa experiência como escritor / compositor nos alerta que “aí tem” (ou “tinha”). Algo teria por detrás das palavras escritas… E alguns analistas, pelos tempos, embora poucos, também teriam tido a mesma impressão. A nós, fica claro na leitura completa do texto. Neste caso, em português, mas confiamos em traduções e análises sérias a partir do original em grego, das quais escolhemos as de Maria Helena da Rocha Pereira, de 1949. Ela teria consultado um respeitável conjunto de fontes, e acrescentou generosas notas de rodapé, inclusive com termos originais e análises das opções de tradução. Naturalmente, conferimos também algumas outras traduções e citações em inglês, espanhol e francês, além de checar que a portuguesa Maria Pereira é muito respeitada pelo que publicou, além de apontar ser pesquisadora bem metódica. Recomendamos a leitura.

A República, podemos dizer, é na verdade sobre justiça, sobre buscar a mais alta expressão do Bem, como citava Platão (“bem” que seria a somatória das maiores virtudes, o bem viver, o bem entender a Humanidade e a Vida). Entendemos que abrangeria a busca por praticamente todos os tipos de Conhecimento. Não teria sido por acaso que, a partir da crítica ao modelo de educação da época (baseado em “ginástica” e “música”), estas duas ciências e várias formas e noções de matemática, sociologia e até astrologia foram listadas e analisadas pormenorizadamente no texto. E a conclusão foi que os mais aptos a governar seriam os… “filósofos” – os “amigos de todos os Conhecimentos”!

Tudo, naturalmente, conforme os entendimentos daquela época, na Grécia – e tudo também num contexto de apontar “a melhor forma de governança de uma cidade ideal” (nesta última frase, entendam que estamos a piscar um olho para quem nos lê, coisa típica de mineiro). Sim: desconfiamos até de nós mesmos…

Ora, nos permita o atrevimento de irmos além do que a maioria aponta: o tempo todo é apontado um paralelo entre como as pessoas e como deve ser a cidade ideal – portanto, ambos os assuntos são ao mesmo tempo dissecados, explicados, contextualizados – mas o tal modelo de governança de Platão sempre teria sido bem diferente do praticado, por exemplo, na Monarquia e na Democracia: Platão discorreu sobre a formação de uma parte da sociedade, selecionada até com algum eugenismo e preparada desde cedo com educação (formação científica, “filosófica”) mais ampla que a usual na época. Deste grupo de pessoas especialmente selecionadas e preparadas é que deveriam ser escolhidos os governantes… Não temos certeza em outras culturas, mas no Ocidente nos parece que este modelo nunca teria sido colocado em prática! Utopia pura, portanto, enquanto reformulação social e política… Mas e quanto à reformulação dos indivíduos, será que foi útil?  

Talvez considerando o laço consanguíneo ou alegadas iluminações Divinas como suficientes para seleção, vê-se pela História, em muitos tipos de monarquias e impérios, herdeiros sendo doutrinados num conjunto de Ciências, conforme proposto por Platão… Também, ainda hoje há um formato de ocidental de preparação educacional que, na totalidade, também seria similar em tempo previsto e disciplinas sugeridas por Platão, inclusive a preparação física (infelizmente, só o ensino curricular de música teria caído de uso em algumas nações).  

É possível que o aprendizado de música possa levar o povo a pensar demais, como vemos aqui agora: um músico a pensar além das caixinhas! E isso talvez não seja interessante a alguns governantes…  A música era importante não apenas até aquela época, quando era a “arte das Musas”, onde as palavras (poesias) seriam indissociáveis dos sons e, junto com a ginástica, seriam a base principal da formação das pessoas das classes mais altas. Platão, que sem dúvida considerava a música muito importante, segundo vários de seus textos, em A República ainda teria proposto o alargamento de conceito, com análises pormenorizadas sobre “palavras, harmonias e ritmos”. As palavras, quando muito ilusórias, seriam alvo de crítica por Platão, mas, no entendimento moderno, refletiriam as melodias – e daí temos o conceito muito respeitado até os dias atuais, que é da música ser entendida como uma somatória de “melodia, harmonia e ritmo” (estes três conceitos formadores básicos estando hoje com contextos bem mais modernos que na época).

Como curiosidade, e para não dizer que desta vez não falamos de flores (ops, de flores, não, de instrumentos!), Platão teria preferência por instrumentos “com menos cordas e harmonias” que harpas, sugerindo praticamente apenas o uso de λίρες (“liras”), σαντούρι (“citaras”) e instrumentos de sopro como αυλός (“aulos”, tipo de oboés) e συριγξ (“siringe”, tipo de flautas de Pan).     

Naturalmente, contextualizações específicas de política (como as de Cícero), sociológicas (como as de Max e Engels, já no século XIX), entre outras, não seriam completamente equivocadas: a visão de Platão abrangeria estes particulares também – só não entendemos que fosse exclusiva sobre nenhum segmento, mas a todos, em conjunto.  

O desenvolvimento apresentado por Platão nos parece muito claro sobre a ampliação do Conhecimento ao máximo possível, só que esse nível de complexidade não teria sido totalmente entendido, causando vários entendimentos superficiais (isso, na nossa humilde-atrevida visão). Neste caso, há muitos além de nós que também entendem que até poder-se-ia analisar pormenores, porém sempre com o máximo possível de observação aos chamados “fenômenos circundantes” de cada objeto de estudo.

Se Platão teria tido coragem de questionar o sistema na época dele, mesmo após Sócrates ter sido assassinado pelas mesmas razões, por que nós não teríamos coragem de questionar até Platão, e os entendimentos que terceiros fizeram sobre o que ele disse? Nos baseamos que vários nos parecem ser os exemplos no texto, como o Sol como fonte maior de luz, calor e conhecimentos a serem estudados, citado em vários dos “livros” (ou “capítulos”, em nossa leitura moderna) – além da citação no importante conceito Dialético, a maior das filosofias desenvolvidas por Platão, onde ele teria apontado ser necessário elevar aos poucos os olhos “do lodo bárbaro” para “as alturas”.

Falando em altura, a esta altura precisamos pedir desculpas por alongarmos a análise sobre o texto todo, e não apenas ao Mito da Caverna, que a princípio seria nosso tema aqui. Já que nos aprofundamos, aplicando inclusive nossas metodologias na análise histórica dos termos (do grego, passando pelo latim até chegar ao português) e ainda inserimos pitadas de nossas experiências com textos e música, não podemos deixar de apontar alguns detalhes que pouco vimos serem abordados antes, principalmente nos resumos encontrados pela internet, até em preparatórios para vestibulares (sim, o Mito da Caverna costuma cair nas provas!).

Para quem já leu ou vai ler mais sobre o tal Mito, avisamos que estamos a inserir algumas percepções que não observamos muito por aí, mas que entendemos estariam de acordo com nossa checagem atenta ao texto completo onde o Mito está inserido.

Para começar, Platão (usando a fictícia boca de Sócrates), inicia o livro VII deixando bem claro que a seguir falariam sobre a educação formal e a falta dela. Descreveu homens que seriam algemados “de pernas e pescoços” desde a infância, no fundo de uma caverna. Haveria uma fogueira, e entre ela e os algemados, um muro. Entre a fogueira e o muro, pessoas desfilariam carregando sobre as cabeças “toda espécie de objetos”, mas são explicitados apenas “estatuetas de homens e de animais, feitas de pedra e de madeira”. As sombras destes objetos (e só deles) seriam projetadas pela luz da fogueira no fundo da caverna, à frente dos algemados. Os carregadores, alguns falariam algumas coisas, conversariam, outros não – e estas vozes seriam ouvidas pelos algemados (achamos interessante que Platão considerou até o eco, comum mesmo em cavernas) …

Pausa para uma risada que demos quando estávamos a ler… Glaucon, que seria um dos irmãos de Platão e estaria na posição de dialogar diretamente com Sócrates neste trecho, a esta altura deu uma “tirada” sensacional: “Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses que tu falas…” – ao que Sócrates, bem menos moleque que nós, só teria respondido sério: “Semelhantes a nós!” (dando a conotação de que, a princípio, quando novos, todos seríamos como os algemados).

Então, “Sócrates via Platão” (ou vice-versa) seguiu descrevendo que, portanto, os algemados só conheceriam sombras, e suas vozes – não seres de verdade (esta seria a condição de quem estaria algemado, a vida inteira, na semiescuridão da ignorância, da falta de Conhecimento).

Seguindo na narrativa, foi proposto que um alguém fosse solto, e obrigado a se endireitar, andar e olhar para as figuras e para a fogueira: este ficaria aparvalhado, os olhos doeriam por causa da luz da fogueira e, olhando para as estatuetas, não as reconheceria por serem, então, mais nítidas que as sombras que conhecia. Este liberto custaria a entender a “farsa” (diríamos nós). Após, se então o arrastassem para fora da caverna, onde a luz do sol seria ainda mais desagradável à visão dele, levaria mais tempo que da primeira vez até poder vislumbrar tudo, o mundo real…

[Achamos estranho que a primeira reação não fosse brigar com os que os mantinham presos e nem procurar alguma ferramenta para ir quebrar os grilhões dos companheiros, mas… a alegoria não é nossa, então, que siga o “estranho quadro, de estranhas pessoas”].

Platão deu ênfase ao que aconteceria com a visão, com os olhos daquele “selecionado” que teria tido contato com o mundo exterior à condição de algemado: continuando a narrativa, se aquele voltasse ao fundo da caverna, novamente sua visão seria prejudicada, pela readaptação após ter visto a luz do sol. Com tal visão “cheia de trevas”, se novamente fosse julgar ou descrever as sombras, como fazia antes, causaria risos e seus colegas considerariam que não valeria a pena sair da caverna, pois isso estragaria suas vistas (como teria estragado a vista do selecionado). Se alguém tentasse soltá-los e arrastá-los para fora também, se pudessem, matariam quem tentasse demovê-los (de suas “visões tradicionais” sobre o que era verdade ou não, diríamos, mas ninguém nos está a perguntar nada…).

[Podemos, entretanto, provar que, figurativamente, o mesmo teria acontecido pelos séculos até hoje, basta que se perceba que é o que normalmente acontece com os que não descobrem a “luz do sol”, que é o Conhecimento, e se baseiam nas “sombras do fundo da caverna”, que é a falta de Conhecimento].

A conclusão de Platão é muito interessante, posto que exorta aos que tiverem contato com a verdadeira luz que sejam inteligentes para entender a complexidade do processo todo, inclusive as fases necessárias para adaptação dos olhos na “passagem da luz à sombra e da sombra à luz” – isso, se quiserem fazer o Bem, ajudar, educar os outros. E, conforme destacamos na abertura, entender que a educação (o Conhecimento, a inteligência) não é uma dádiva que introduzimos a quem não a tem, mas que apenas se auxilia a quem já teria olhos a olhar de forma para os lugares certos e forma mais adequada.

É belo, coerente, verdadeiro e muito útil o tal Mito da Caverna, afinal.

Acabamos, então? Ainda não. Pedimos licença para ir um pouco além, mas na mesma alegoria (dificilmente pesquisamos alguma coisa sem acrescentar reflexões e cruzamentos com mais dados). Acontece que à época de Platão ainda não haveria, entre outras coisas, a ganância institucionalizada que tomou conta de alguns ocidentais a partir da Revolução Industrial (consolidada entre os séculos XVIII e XIX). A visão de produção e comercialização em série, o chamado Capitalismo, sem dúvida mudou o mundo – e nós, atrevidos, entendemos que por isso um adendo é possível na alegoria original…  

Nossa colaboração na extensão da reflexão é que, aproveitando a alegoria já existente de uma “fogueira”, na caverna, diríamos que de uns tempos para cá motivações políticas, ególatras e/ou financeiras nos trariam uma situação a mais: as algemas até poderiam ter sido retiradas, mas muitos prisioneiros são como se tivessem sido levados apenas até a beira da fogueira. Ali, no quentinho, teria muito mais luz que no antigo fundo da caverna, e já não teriam os desfiles: então, até ali já estaria bem melhor… “Pra que buscar o sol? Luz demais, besteira isso querer demais. Temos que ser mais humildes!”.  

Isso porque, hoje em dia, as pessoas já saberiam ler algumas coisas, superficialmente, e até escrever “malemal” o nome – não está bom? E eles, agora tão mais sábios que antes, e consultando-se entre si, pela sabedoria popular concordam que já está ótimo! Já dá pra assinar cédula de eleição, e o contracheque da “merreca” que a eles fosse destinada. Já pensou? Quem antes só conheceria sombras e ecos confusos, agora trabalha e até ganha salário! E sabe até ler e escrever? Tá bom demais! Que não venham com essa de querer conhecer um tal de “sol”, que só serve para atrapalhar as vistas, agora que já estão vendo muito melhor que antes…

É isso que nós vemos hoje em dia, também quanto aos estudos sobre instrumentos musicais (que interrelacionamos a várias outras ciências) – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).  

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6 Set, 2023

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Viola, Saúde e Paz!

O hábito de se chamar de “orquestra” grupos de violeiros tocando um mesmo tipo de instrumento e quase sempre da mesma maneira “poderia talvez” ser considerado um atestado público de falta de Conhecimento. Uma vez que já estamos a alertar há alguns anos, e que alguns grupos já começam a evitar a gafe, seguir insistindo talvez pudesse ser considerado atestado público de escolha por ignorar o Conhecimento.

“Poderia, talvez”. São palavras carinhosamente escolhidas porque, à princípio, parece uma ação inocente, que simplesmente teria “brotado” no meio do povo. Um exemplo bem expressivo vem de nossa experiência como consultor para evento que postulou em 2017 e efetivamente conquistou em 2018 o Recorde Mundial de “maior grupo de violas tocando junto”. Explico: os organizadores e participantes gostariam que o recorde fosse, e assim seguem divulgando, de “a maior orquestra de violas do mundo” – mas, na verdade e oficialmente, os ingleses do Guiness, nem outra instituição séria pelo mundo engoliria o disparate: a importante marca é de fato de The largest viola caipira ENSEMBLE (“maior ensemble [grupo, naipe] de viola caipira”).

Alguns chegam a defender que usar o nome orquestra faria parte da “tradição”, o que é curioso: o que significaria “tradição”? Se é que se pode questionar este conceito usado de forma tão conveniente, e que parece ser entendido como “sagrado”… Mais curioso ainda é defender o uso de um conceito difuso com outro conceito mal aplicado – isso não seria, talvez, um atestado de “pós-graduação” em ignorar Conhecimento?

Já para o que é sério, a Ciência, na prática nunca houve conceitos indiscutíveis, nem os que seriam mesmo “sagrados” conforme alguma religião – lembrando que, a princípio, apesar de vários comportamentos se assemelharem, não entendemos que o caipirismo seja oficialmente uma religião (ainda?) – só, com certeza, não é uma cultura ancestral comprovável. Optamos por definir como um entendimento coletivo, a partir de uma interpretação particular de uma possível cultura, que agrada a muitos egos e bolsos desde o início do século XX. O respeito ao caipirismo, entretanto, é o mesmo que temos por qualquer religião: cada um creia no que quiser, afinal, nossas leis protegem a chamada “Liberdade de Credo”.

Já tendo desenvolvido e divulgado em prosas passadas as incoerências científicas do caipirismo, com fartas bases em fatos e dados (tanto aqui, em diversos Brevis Articulus, quanto em nosso livro A Chave do Baú), nos pareceu um desafio interessante aprofundar desenvolvimento sobre as orquestras e seus contextos históricos. Bora fazer limonada boa, a partir de um limão podre?

A começar, como sempre, com o histórico da palavra: orchestra seria a versão em latim de orkhestra (ὀρχήστρα, em grego). Em ambos os casos significaria o lugar, o espaço físico onde se posicionava o grupo de músicos que acompanhava óperas, peças de teatro, etc. Alguns teatros ainda mantem este reservado, logo a frente do palco, às vezes como um “fosso”, um pouco mais abaixo, às vezes no mesmo piso do público. Antes destes grupos serem observados assim, ainda na Grécia antiga, teria sido o nome do espaço em semi-círculo (!) onde se posicionavam grupos de cantores e dançarinos (orkheomai, em grego, já seria “dançar”). Curiosamente, aqueles grupos mais antigos seriam chamados khoros (em grego), chorus (em latim), que após passar pelas línguas antecessoras chega ao português como “coro” ou “coral”, mas tendo assumido o significado apenas de “grupo de cantores”. Os dançarinos, portanto, “teriam dançado nessa”, assim como pelo nome “orquestra”, que nos chega, por convenção linguística séria, coerente com registros musicais e históricos, como “grupo de músicos” – mas não “qualquer grupo de quaisquer músicos”

Além de ter um significado bem específico, não é uma convenção linguística só popular, muito menos regional. Pode-se dizer que a partir da segunda metade do século XVIII, o modelo das orquestras veio se desenvolvendo com reconhecimento e seguimento em, talvez, todo o mundo, principalmente pelos eruditos. Esta ascensão e consolidação se deu principalmente a partir da Itália (violas de arco e da gamba, século XV), seguidas pelo surgimento e uma longa fase de transição até a definitiva ascensão do violino, a partir da citada segunda metade do XVIII. Esta história de cerca de 300 anos, inclusive, teria sido pouco aprofundada nos estudos ocidentais até agora (pelo menos, nós fizemos vários aprofundamentos que nunca tínhamos visto serem citados antes) e, por ter relação direta com as violas, se não contamos ainda, seria uma boa a ser contada num próximo Brevis Articulus…  seriam outras prosas…        

Um fato é que praticamente “o mundo todo” sabe que orquestras são grupos de músicos e instrumentos bem diversos, que tocam música estudada, chamada “erudita”. Um dos principais períodos da música erudita (entre 1730 e 1820) foi denominado “Clássico” e, como em algum tipo de “maldição do uso equivocado de nomes para coisas musicais”, popularmente se vê muito as pessoas chamarem de “música clássica” a qualquer música tocada por orquestras…  O “ser clássico”, na boca do povo, tomou o sentido de “ser especial, tradicional, sofisticado” – mas, naturalmente, só é utilizado para música por quem não tem conhecimento e tem muita preguiça de estudar pelo menos um pouco…    

Os instrumentos das orquestras são agrupados por semelhança, no que em português chamamos “naipes”: tem o naipe das cordas (violino, viola, cello, baixo), o naipe das madeiras (flauta, oboé, fagote, etc.), o naipe dos metais (trompete, trompa, trombone, tuba, etc.), naipe das percussões…

Uma orquestra poderia até ser entendida como um conjunto de naipes… “naipe”, palavra que possivelmente teria sido originária a partir de língua árabe (os etimologistas ainda não apontam com certeza), é uma palavra boa, pois só em português seria utilizada, figurativamente, para a música: em espanhol, catalão e na possível origem árabe estaria relacionada apenas aos naipes das cartas dos baralhos.

Chatíssimos em sempre querer ir um pouco além, só criticamos a alcunha “naipe das cordas”, e a chamamos, quando podemos, de “naipe dos arcos”, pois há outras “cordas” possíveis, como as harpas e, talvez, até os pianos, pois na essência entendemos que pianos sejam cordas percutidas por teclas – mas isso é assunto para outras prosas…

O que importa agora: as “orquestras de violas”, como se apresentam até então, seriam, no máximo, um “naipe”. Mesmo assim, os naipes de verdade denominam grupos de instrumentos semelhantes, mas não todos iguais: observa-se que há variações, no mínimo dos mais graves aos mais agudos. Esta variação graves-agudos, que é característica de toda orquestra, também não teria se consolidado assim por acaso – na verdade, já viria desde antes de se chamarem “orquestra” os grupos de instrumentos / instrumentistas que existiram.

Quer falar de tradição de verdade? Então vamos falar de séculos passados, com registros atestáveis, sem nada inventado por conveniência.

Por exemplo, podemos começar dos textos bíblicos: no livro profeta Daniel (capítulo 3, versículos 5, 7, 10 e 12) há quatro vezes a descrição de um grupo de instrumentos da época do Rei Nabucodonosor. Checando a Vulgata Online (versão atual em latim da Bíblia católica), se observa: […] in hora qua audieritis sonitum tubæ, et fistulæ, et citharæ, sambucæ, et psalterii, et symphoniæ, et universi generis musicorum, cadentes adorate statuam auream, quam constituit Nabuchodonosor rex (“… quando ouvirdes o som do [tipo antigo de] tromba, e do [tipo antigo de] oboé, e da cítara, e da sambuca, e do saltério, e da sinfonia, e de toda espécie de instrumentos, prostrai-vos e adorai a estátua de ouro que o rei Nabucodonosor ergueu”).

Apesar do foco em cordofones, acabamos por estudar bastante todos estes nomes, daí chegamos a esta tradução e ao entendimento sobre esta sequência de instrumentos: teria se referido não a um desfile, mas à forma mais usual de execuções musicais antigas (desde a época dos sumérios, 4000 anos antes de Cristo). A saber: abre-se com dois sopros de diferentes tamanhos (grave/agudo), depois três cordofones também diferentes entre si e quanto à sinfonia, entendemos seria uma referência à descrição feita em seguida, “toda espécie de instrumentos”, juntos (provavelmente, também alguns tipos de percussões).

O trecho já teria sido estudado por vários estudiosos, pelo menos desde o século VI, alguns com opiniões sem muito sentido à luz dos atuais conhecimentos. Concordamos com análises de musicólogos do porte do inglês Francis W. Galpin e, principalmente, do alemão Curt Sachs, que chegou a apontar uma versão com os nomes dos instrumentos em aramaico (uma das muitas línguas antigas que ele teria pesquisado, para entender melhor os instrumentos musicais). É do livro dele The Hystory of Musical Instruments (na edição de 1940, ver linhas 83 a 85) que indicamos conferir análise bem embasada (apesar que precisamos discordar do entendimento dele sobre sambuca). O citado trecho: […] as soon as you hear the sound of the qarnay the masroqitay the qatros the sabka the psantrin the sunponiah y and all kinds of zmaray you shall prostrate yourselves (a tradução para português seria a mesma antes apontada, a partir do latim).

Um outro exemplo que escolhemos viria do século IX, de livro-poema do religioso alemão Otfried de Weissenburg (Liber Evangeliorum – “Livro dos Evangelhos”), escrito em dialeto alemão antigo, com títulos e algumas inserções em latim. Apesar do tema ser o mesmo bíblico, com sua liberdade artístico-poética ele inseriu os versos: […] Sih thar ouh ál ruárit, thaz organa fuárit, lira ioh fidula, ioh mánagfaltu suégala, harpha ioh rotta, ioh thaz io guates dohta – que, contrariando traduções convencionais, após consulta a diversas fontes e somando nossa visão musicológica, traduzimos como “[Em si], nessa altura todos chegavam perto, a organa conduzia, lira e fidula, e uma suégala múltipla, harpa e rota, a glória sempre boa”.

Ao século IX, portanto, a figura da organa já apareceria – um cordofone grande, de caixa cinturada, tocado por duas pessoas: um acionaria, por uma manivela, uma roda que friccionaria três cordas; das três, uma apenas teria notas modificadas em um braço longo, via um sistema de teclas controlado por uma segunda pessoa. Já escrevemos sobre este antecessor das violas aqui nos Brevis Articulus, são prosas passadas… mas possivelmente este nome organa teria surgido nesta poesia por uma interpretação equivocada de Otfried quanto aos termos sambuca ou mesmo sinfonia citados por Daniel – realmente, mas bem depois, aqueles nomes viriam a ser sinônimos de organa, mas não antes, à época de Nabucodonosor. Equívocos de contexto histórico assim infelizmente são mais comuns do que se imagina.

Depois, na sequência dos versos de Otfried, mais dois cordofones – lira e fidula, esta última que afirmamos sem medo, embora pareça que só nós tenhamos observado, que seria uma contração métrico-poética de fidicula, termo genérico usado pelos romanos para cordofones pequenos; depois, suégala (que seria um tipo de flauta com três tubos), e depois mais dois cordofones: harpa e rota (esta, um tipo de harpa portátil, sem caixa). Não se teria evidência ainda de instrumentos tocados por arco em território europeu, embora muitos estudiosos entendam que aquela fidula poderia ter sido a ancestral mais direta da viola de arco (e sim, somos chatos, sempre apontamos estes equívocos).

Outro exemplo, também um longo poema, seria o Libro de Buen Amor (“Buen Amor” referia-se à um governante, como Nabucodonosor foi). Escrito pelo padre castelhano Juan Ruiz, Harcipreste de Hita, a narrativa de um desfile, na verdade, não acreditamos que possa ser real, posto que muito extensa e variada, mas é uma das fontes mais ricas em citações de instrumentos musicais antigos. Alguns detalhes acrescidos, descontados os contextos poéticos, ajudam a entender muito da história dos cordofones. É dele, por exemplo, que observamos a narrativa diferenciatória vihuela de arco / vihuela de pendola que, somada a outras fontes, apontam a origem da atual bivalidade do nome “viola”, em português, tanto para dedilhados quanto para friccionados por arco (que seria uma curiosidade que só portugueses e brasileiros manteriam viva até os dias atuais, além da ajudar a apontar a origem de nossas violas dedilhadas). Isso também são prosas já contadas aqui…

Citado e transcrito por diversas fontes, indicamos especialmente o doutoramento de Rosário Martinez Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos, de 1981, pelo vasto acervo de fontes citadas, as quais pudemos conferir e atestar praticamente na totalidade. Na verdade, nenhum estudo que conseguimos descobrir teria sido suficientemente abrangente, principalmente quanto a violas dedilhadas: espanhóis não costumam citar portugueses, alemães e ingleses pouco citam fontes em línguas latinas (ou se as citam, traduzem mal), etc. Desta forma, perdem não apenas as colocações dos demais estudos, como o acesso das fontes daqueles. É por isso que conseguimos descobrir verdadeiros tesouros, pois juntamos tudo em um único banco de dados, e conferimos cada tradução em cada língua desde os registros mais antigos que conseguimos, somando outros tipos de visões científicas e ainda nossas vivências, que também são variadas. Ah, sim, claro: também submetemos ao crivo de nossa obsessiva chatice pessoal.

A Dra. Martinez, que teria investigado nada menos que três diferentes códices (manuscritos) com segmentos do poema, também apontou que Juan Ruiz aparentava ter tentado fazer, de fato, uma lista de todos os instrumentos musicais utilizados na época (pelo menos, todos que citou foram observados também em outras fontes). A relação em forma de poesia também não teria sido aleatória: embora não no formato dos atuais naipes de orquestra, Ruiz teria organizado, por estrofes do poema, instrumentos que se “acoplariam” bem (pegando emprestada uma expressão espanhola utilizada por Martinez). Primeiro: atambores, guitarra morisca, laud (“alaúde”), guitarra latina, rabé (“rabeca”), rota, saltério, vihuela de pendola; depois: canno (tipo de flauta), arpa, rabé morisco, tamborete, vihuela de arco; seguiriam: panderete, organa, dulçema (“dulcimer”), albogon (tipo de flauta), baldosa, mandurria (cordofones dedilhados pequenos) cinfonia, odreçillo (possivelmente gaitas grandes, ou organas); e ainda: trompas, annafiles (tipo de flauta), atarabales (atabaques, tambores).

Observamos outras listas, em diversas línguas, além de dezenas de citações que investigamos, onde “violas” (e variações nas diversas línguas), na maioria das vezes foram citadas junto a outros instrumentos bem diferentes. A conclusão mais tranquila de se apontar é que instrumentos musicais sempre foram agrupados por suas diversidades tímbricas, de texturas e de formas de execução. É por isso que não nos estranha nada que as orquestras de verdade tenham evoluído desta forma, pois é comprovadamente mais agradável ao ouvido humano que graves, agudos, texturas e outras diferenças se completem, se misturem. Este é, por exemplo, um dos principais tipos de estudos que fazemos para criar arranjos para orquestras e podemos citar, entre nossos “livros de cabeceira”, o Orchestration, de Walter Piston, publicação de 1969.

Já o que nos estranha, e muito, principalmente ao confrontar conhecimentos e registros históricos, é por que alguém chamaria de “orquestra” um grupo homogêneo de instrumentos… Seria para dar a impressão de ser “chique”? Seria algum tipo de arrogância, um “se acharem” tão bons quanto uma orquestra? Não temos como comprovar. Só podemos afirmar que, por tradição de verdade, não haveria evidência de ser – restaria portanto, talvez (sempre talvez), inventar uma “tradição”.

Em defesa dos caipiristas, podemos dizer que até teriam de onde herdar este tipo de uso indevido de um nome, posto que portugueses até hoje tem o hábito cultural de não levar “ao pé da letra” alguns. Eles têm o que entendemos como péssimo costume, por exemplo, de há séculos usarem genéricos como “moda” (para qualquer tipo de música) e “viola” (para qualquer tipo de cordofone) – este último que, inclusive, entre os séculos XV e XVIII contextualizamos como a verdadeira origem de nossas violas (inicialmente, apenas um nome genérico, por opção nacionalista) – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).  

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30 Ago, 2023

REFLEXÃO DE MANO

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Devemos nosso aprofundamento de hoje a prosas sempre muito produtivas que temos com um amigo “mais que irmão”: Jefferson Cária, violeiro mineiro, ganhador de festivais de música caipira, que enquanto não tem seu maior talento dignamente reconhecido vai se divertindo como profissional e professor universitário da área de Engenharia Eletrônica.

O leitor acha que estas prosas são sempre de concordância mútua? Engana-se ledamente, muito longe disso… As prosas mais construtivas são sempre quando colocações são discutidas, discordadas, duvidadas. Está nos relatos Históricos, pode conferir: a Ciência sempre evolui mais quando é questionada, pois é obrigada a se explicar, a se expressar melhor, a se aprofundar em argumentos e dados.

Uma questão surgida foi: “Por que a dupla Cacique & Pajé seria das poucas a se apresentar com duas violas, quando a maioria usaria viola + violão?”

É uma boa pergunta. “Cabe pesquisa”, como costumamos dizer – mas pesquisa leva tempo, investimento. Podemos, entretanto, trazer aqui alguns apontamentos como um resumo ou levantamento “pré-pesquisa” – ou seja, vale pelo menos um Brevis Articulus como este (lembrando que, portanto, este assunto não foi levantado no livro A Chave do Baú, só alguns dos dados que vamos apontar também estão por lá). Um ensaio de resposta ao desafiador Jefferson, a quem agradecemos pela atenção, consideração e apoio, já de anos…

Para começo, utilizamos já na apresentação da questão a expressão “das poucas” ao invés de afirmar que seria a única dupla a fazer assim. Na verdade não conhecemos outra que também o faça, mas sem um amplo levantamento sobre todas as duplas que já passaram por este Brasil, afirmar não seria cientificamente correto (nem honesto).

Uma primeira reflexão lógica, básica, é que não existe nenhuma lei contra fazê-lo, e assim sendo, a arte é livre. Seria uma escolha pessoal, particular da dupla. Somado a isto, há uma noção de mercado bem comum, até intuitiva, de que, para sobressair-se em qualquer ramo é bom investir em alguma característica de diferenciação. Isso, pensando que a opção foi tomada desde o início da dupla, que hoje não precisa mais de subterfúgios, pois é das mais longevas ainda em atividade. Não esquecemos o impacto causado por se apresentarem com grandes cocares na cabeça e outras caracterizações indígenas, coerentes com o nome escolhido para a dupla: sem dúvida, são únicos, diferenciados. Desde que tivemos a honra de selecioná-los, em 2010, quando coordenávamos o Prêmio de Excelência da Viola, já percebemos que ali havia uma noção de marketing artístico, mesmo que talvez seja visceral, intuitiva. O fato de serem realmente descendentes de indígenas é irrelevante: a questão é que optam por explicitar isso, de utilizar como diferenciador no mercado.

Naturalmente, por atuarem no estilo chamado “caipira”, há de aparecer alguém com alguma história sobre a origem da opção de uso de duas violas nas performances. Alguém que vá alegar que conhece a dupla, que sabe a “verdadeira verdade”, que eles teriam confessado em alguma conversa ou entrevista – o que pode ser mesmo verdade, os dois podem ter confessado, ou até interpretado o que os teria levado a fazer tal escolha. Quando relatos assim tem certo jeito de “lenda”, ficam famosos e são amplamente divulgados como verdade (mesmo se não forem), entrando para a grande coleção de relatos semelhantes em que se baseia a chamada “cultura caipira”. Esta que, pela total ausência de comprovações históricas anteriores a 1910, em si não passa de uma grande lenda, surgida de uma interpretação genial de um empresário visionário. Ele percebeu um que embalar bem uma lenda gera bom interesse de público – um tipo de destaque que significa ótimas vendas (de apresentações, palestras, livros, discos, etc.). Como se vê, cientificamente há coerência e jurisprudência da presença de marketing visceral no estilo, desde sua invenção, no início do século XX – só que àquela época já seria habitual o uso de “viola com violão”.

Curioso, portanto, que Cacique & Pajé não obedeçam à risca a chamada “tradição”… E mais curioso ainda é que não parecem nunca ter sofrido retaliações por isso! Normalmente, só duplas muito famosas parecem ter direito de alterar alguma coisa na considerada “tradição sagrada”, como Pena Branca & Xavantinho, cujas versões de músicas da MPB passaram a ser muito bem aceitas – mas só depois que se tornaram nacionalmente famosos, por meio de uma grande gravadora, pois antes por “trair a tradição”… E Tião Carreiro (maior artista de uma grande gravadora), o único até hoje que teria criado um ritmo novo, mas aceito sem discussão entre outros ritmos que seriam todos de uma “tradição ancestral”, que remeteria aos primórdios brasileiros: a chamada “raiz”…  

No caso de Tião, o entendimento coletivo reza que ele teria sido um super “extra-classe”, um exímio cantor e instrumentista – quase divino, talvez, para alguns? Bom, isto justificaria tudo – e então, pela lógica, Cacique & Pajé estariam entre os “divinos” (pois tão famosos nacionalmente nunca teriam sido). Quanto ao fato de que o ritmo inventado por Tião – o “pagode de viola” – deu e continua dando até hoje muitos dividendos financeiros, é pouco citado no meio – mas aqui e ali se ouvem relatos de “professores de viola” que a grande maioria de seus alunos são atraídos, no começo, pelo pagode de viola (e que muitos só tocariam isso, se pudessem)… Definitivamente, portanto, podemos considerar a presença marcante de ações de marketing no estilo, o que não é ilegal nem incomum em nenhum segmento de mercado – afinal, somos um país capitalista. Está tudo certo.       

Até aqui, o leitor já deve ter percebido que partimos de uma premissa para exemplificar comportamentos de análise e pesquisa mais comuns, corriqueiros, óbvios, que qualquer pessoa pode fazer. Acrescentando, ainda no sentido de pré-pesquisa, alguns dados históricos menos conhecidos, podemos chamar a atenção para curiosos fenômenos que observamos desde os mais remotos registros da História dos cordofones europeus. São muito curiosos, embora não sejam, de forma alguma, lendários, mitológicos (ou seja, não tem o mesmo atrativo comercial).

Ciência não é marketing, não se faz para atrair, distrair ou enganar pessoas com histórias agradáveis e distorcidas para conseguir algum destaque de vendas. Além disso, dá muito mais trabalho pesquisar verdades do que inventar lendas… Ao contrário, uma coisa que afasta as pessoas é se ater apenas ao que seja comprovável – que é a principal diferença entre a Ciência e as lendas, invenções, mitos, interpretações e similares.

O apontamento de verdades comprovadas causa às vezes algum desconforto, principalmente a quem tem foco em vender algo, ou desenvolveu com o tempo afinidade quase religiosa por um assunto, e vê suas lendas mais queridas serem questionadas, desmentidas, “descomprovadas”… Mas entendemos ser apenas uma má impressão inicial, a Ciência historicamente não costuma atrapalhar vendas. Senão, por exemplo, como continuaríamos a ter a época de Natal como a mais lucrativa do ano, se nunca foi comprovado cientificamente qual o dia de nascimento do Cristo? Na verdade, o próprio Aniversariante se torna secundário no processo, e o que se planta é o curioso (e lucrativo) costume de se presentear todo mundo, exatamente na data de aniversário de Um que pregava, entre outras coisas, o desapego aos bens materiais…

Assim é o marketing capitalista, historicamente, e assim tende a continuar. E ele pode se adaptar, ou seja: com o tempo, a tendência é que até dados históricos corretos possam entrar no contexto (assim esperamos), e até ajudar a alavancar mais vendas. Num meio de tanto marketing visceral e intuitivo, estima-se que espertamente, logo alguns observarão que a verdade pode vender melhor, e talvez até mais do que o costumeiro embasamento em lendas criativas, agradáveis, mas sem registros.

Voltando aos curiosos fenômenos históricos que observamos, entre eles está a característica dos cordofones populares sempre poderem “contar suas histórias”, contar as fases que já teriam vivido, fomentando a descoberta científica de dúvidas às vezes ainda não respondidas, mas que podem ser (se mergulhamos fundo nos fatos e registros).

As duas violas de Cacique & Pajé, por exemplo, nos despertam que teria havido um período histórico em que o violão ainda não existiria, quando, portanto, seria comum serem utilizadas duas violas (ou “dois instrumentos chamados de viola”, que na verdade era o que mais acontecia). O surgimento do violão no Brasil a partir de 1820 está cientificamente apontado por alguns pesquisadores, tendo se consolidado como cordofone portátil mais utilizado a partir de 1840 (aqui, assim como praticamente em todo o mundo ocidental). As evidências foram apontadas, por exemplo, pelo Dr. Carlos Azevedo & Souza, em pesquisa feita em 2003 sobre anúncios de aulas; pela Dra. Márcia Taborda, em pesquisa de 2004 sobre a história do violão, onde levantou peças remanescentes de museus, literaturas e anúncios de jornal; pelo Dr. Renato Varoni, em artigo publicado em 2015 sobre incidências dos termos “violão” e “viola” em 10 romances do século XIX e até por gaúchos como Cezimbra Jacques, que apontou que a viola desapareceria dos registros por lá a partir de 1840, em função da ascensão da sanfona.

A partir destes e outros apontamentos, atestamos as origens de cada informação e acrescentamos mais algumas centenas, como matérias de periódicos de todo o Brasil, do acervo da Biblioteca Nacional, hoje disponíveis para consulta pela internet. Não temos dúvida, antes de 1820 não haveria ainda violões no Brasil. Somado ao fato de que o cavaquinho também só tem registros a partir de 1820, e que outros tipos de cordofones possíveis, se existiram por aqui antes, não teriam registros conhecidos, podemos apontar que duplas semelhantes, anteriores a esta data, provavelmente só usariam “viola com viola”, como Cacique & Pajé teriam resolvido fazer mais de um século depois.

Será por isso que sempre foram bem aceitos, apesar de diferentes – porque eles valorizariam uma tradição anterior? Não cremos, pois o que apresentamos é uma das postulações científicas contextualizadas pela primeira vez em nossos trabalhos, sequer os pesquisadores listados teriam somado suas informações coincidentes para intentarem checar tudo e ir além no desenvolvimento. Mas que é um embasamento muito melhor do que não citar nenhum, ou alegar alguma “divindade” aos artistas, achamos que é…

E por que ambos tocariam, e por que não uma viola com uma flauta, ou rabeca, por exemplo? Ou até um violão e um saxofone, como a dupla Jararaca & Ratinho, que em 1922 já fazia muito sucesso no Rio de Janeiro, com o mesmo estilo de anedotas, patacoadas e canções rancheiras imortalizado por Cornélio Pires?

Esta reflexão complementar já nos traz vários aspectos históricos bastantes interessantes. Como sempre, funciona mais ou menos assim: “pergunte às violas, que elas são capazes de responder, por são testemunhas da História”…

A começar, nas execuções específicas de modas-de-viola, o comum é apenas um dos instrumentistas tocar, fazendo na viola as dobras melódicas em terças que espelham o canto, tudo sincronizado. Sobre esta técnica, que as lendas rezam (ajoelhadas no milho) que seria invenção brasileira, já discorremos aqui em outro Brevis Articulus que ela já existiria, pelo menos, desde o século XII, ao norte da península britânica, segundo relatos bem detalhados do historiador Giraldi Cambrensis (ca.1146-ca.1223), em seus manuscritos chamados Descriptio Kambriae.

Não seriam apenas modas-de-viola a serem tocadas no repertório, mas sem dúvida era o jeito de tocar mais antigo e peculiar. Destaca-se entre os demais ritmos. Cornélio Pires, inteligentíssimo e já muito atento a detalhes de marketing, não apenas as introduziu nas primeiras gravações em disco, como, se não tiver inventado, enfatizou o nome “moda-de-viola” (outra prova de grande visão de marketing, que é usar boas marcas, e investir na divulgação delas). Assim, forçou-se a presença de pelo menos uma viola na formação (se não, não seria moda “de viola”, concorda?). Ainda outra profunda noção de marketing é que o estilo precisava ser o mais exclusivo possível, então toda a interpretação passou a indicar contextos que apontariam para o interior paulista (como a viola, diferente do que usavam os nordestinos Jararaca & Ratinho). Não interessava que a moda-de-viola já existisse há séculos, ou que o termo “caipira” já fosse usado com outros significados e nem fosse indígena originalmente: interessava que tudo fosse apresentado, “embalado” no contexto de um produto exclusivo, diferenciado. Desde os primeiros livros o resultado foi excelente, e Cornélio manteve a defesa da ideia em publicações e até ampliou seu conceito para outros produtos (afinal, seria uma “cultura”, algo muito abrangente). Fez assim durante cerca de 35 anos.   

Agora há pouco indicamos de que seriam dois cantores em dueto, por uma verdadeira tradição, milenar – e a partir de Cornélio, as “regras da cultura” (mesmo as que não tem registro de terem existido antes), passaram a ser ditadas pela interpretação que ele defendia. Entre elas, a de ambos tocarem e cantarem. Poderia ter havido de fato, no início do século XX, uma tradição do chamado “canto de mano”? Sim, naturalmente – a sobrevivência desta expressão popular, inclusive, aponta isso e faz sentido cientificamente, pois vozes de “manos” (irmãos) tendem, por semelhança de DNA, a serem mais fáceis de serem timbradas juntas – sendo que a timbragem de praticamente qualquer tipo de voz ou instrumento musical pode ser adaptada para soar bem em conjuntos, via bastante treino. Esta ação instintiva também foi citada naquela mesma fonte, do século XII, e hoje é estudada cientificamente, em aulas de interpretação musical.

Ao largo dos séculos anteriores, entretanto, não teria sido tradição que dois instrumentos semelhantes tocassem em dupla. Ao contrário, instrumentos de timbragem e tipo de execução diferente se complementavam, possivelmente já desde os gregos. Pelo menos desde os tempos de Plautus (230 aC. e 180 aC), passando depois por Cícero e diversos outros romanos, já haveria fartas citações de duetos instrumentais de fides (cordas) e tíbias (sopros) – pode-se afirmar que àquela época seria esta a “tradição”. Já nos também fartos registros de poesias trovadorescas (entre os séculos XII e XIII), em diversas línguas, observa-se constante emparelhamento de dedilhados e friccionados por arco, que seguiu do século XIV ao XVI inclusive com estes dois tipos diferentes de instrumentos tendo o mesmo nome em algumas línguas (como geige, vihuela e viola). Esta última descoberta já denunciamos com nossos estudos inclusive de ser a origem das bivalentes “violas” que temos até nossos dias, em português – e que seriam a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas, não chamadas assim em outras partes do ocidente desde o século XVII. Já no Brasil, conforme citamos, não conhecemos registro de dois instrumentos iguais em performance de dueto anterior ao início do século XX, já sob a batuta de Cornélio Pires; pode haver, mas duvidamos que sejam muitos, senão pesquisadores teriam observado, como nós apontamos as “tradições” desde cerca de 2000 anos atrás. Quando é mesmo tradição, e não uma criação de marketing, há numerosos registros – escritos, esculpidos, desenhados, etc. No caso do século XX, há centenas de jornais disponíveis para consulta, onde atestamos a atuação de Cornélio – mas só a partir dele – para vários detalhes.  

A introdução do violão, após 1840, atesta mais uma vez a força do carácter comercial na equação, posto que conseguiria desbancar uma das violas das modas-de-viola (é muito significativo). Na verdade, o violão alçou lugar de cordofone portátil preferido para quase todos os estilos, já ascendeu com herança das chamadas “guitarras barrocas” de grande apelo comercial, como técnicas de construção apuradas, métodos, grande fama pela Europa, etc. Na verdade, “violão” ou “viola francesa” são apenas nomes que os portugueses criaram para as guitarras espanholas, numa estratégia contrária às de marketing, que também seria instintiva, que é a de desvalorizar uma marca.   

O mais interessante, e que nunca vimos ninguém citar, é que o domínio do violão no estilo caipira também aponta um sentido de recuperação, mesmo que tímido, da verdadeira tradição histórica, que é de instrumentos se complementarem por timbragens diferentes: o violão complementa com seu timbre mais grave as notas mais agudas da viola. Esta tendência não seria aleatória, assim como a diversidade tímbrica das orquestras (as verdadeiras orquestras, não os grupos de violas assim chamados): também desde os mais remotos registros de instrumentos tocados em grupos (até na Bíblia) se observa continuamente que a variedade de timbres sempre pareceu ser o mais agradável ao ouvido humano (constatação científica recente), e podemos até detalhar o assunto em outro Brevis Articulus – assim como outra parte da mesma excelente “reflexão de mano” com Jefferson Cária: instrumentos escavados em peça única, desde as violas de cocho até os charangos… mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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24 Ago, 2023

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“[…] para uns é uma vihuela, para outros uma guitarra […] Para um português esta contenda não faz qualquer sentido, já que, tanto no séc. XVI como actualmente, se designa este instrumento simplesmente por viola…”

[Manuel de Morais, artigo A Viola de Mão em Portugal, 1985, p. 418] 

Viola, Saúde e Paz!

Em homenagem à primeira vez que demonstramos nossos estudos em ambiente acadêmico (no projeto Viva Música, da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, em 23 de agosto de 2023), resolvemos trazer para este Brevis Articulus um resumo, complementado, do recorte que lá apresentamos: propriamente dito, foi uma resposta à pergunta que, se já teria sido feita, ainda não teria sido respondida com atestações científicas: “por que se consolidaram na língua portuguesa dois instrumentos musicais tão diferentes – um dedilhado, outro friccionado por arco – mas ambos com o mesmo nome viola?”.

O primeiro aspecto para o qual chamamos a atenção é que, no desenvolvimento de nossa metodologia, amadurecemos um olhar múltiplo, não apenas de pura abrangência musicológica-organológica, mas que, entre outras técnicas e ciências, agregamos conceitos de História e Sociologia (chamado “contexto histórico-social”) e um significativo banco de dados de nomes de instrumentos (nas línguas pertinentes, desde o latim do século II aC.).

Esta somatória nos permite, por exemplo, ir além da atual falta de consenso mundial de estudos linguísticos e organológicos, com descobertas como reflexos atestáveis de mudanças em instrumentos musicais em situações históricas de grande impacto social, como invasões, guerras, imposição de línguas, manifestações culturais como o Trovadorismo e outros. Isso, só vimos ter sido intuído, mas não desenvolvido como o fazemos, pela antropóloga carioca Elizabeth Travassos, no artigo O destino dos artefatos musicais de origem ibérica e a modernização no Rio de Janeiro, de 2016.

A mesma somatória de visões também nos leva a tratar os nomes de instrumentos com muito mais cuidado e atenção que praticamente todos os estudos que investigamos (e não são poucos): para nós, um nome de instrumento musical tornou-se nunca aleatório – ao contrário, assim como outras características organológicas, a análise histórica do nome pode trazer informações importantíssimas, que normalmente teriam passado despercebidas pela maioria dos pesquisadores. Análise histórica que significa descobrir o mais remoto registro conhecido daquele nome, na língua original, para estimar aquele período histórico e as comoções sociais a que estaria sujeito – e seguir acompanhando pelos séculos os contextos histórico-sociais em paralelo a possíveis alterações dos nomes em outras línguas e de características musicológicas gerais. Os nomes de instrumentos já teriam sido vistos de maneira similar, mas também não de forma aprofundada e contextualizada como desenvolvemos, pelo musicólogo alemão Curt Sachs, no The History of Musical Instruments, de 1940.

Por este motivo nos chama tanto a atenção o paradoxo “viola ou viola” só na língua portuguesa, e nos atrevemos a investigar o que não teria sido talvez sequer cogitado por estudiosos muito mais experientes que nós – mas que não teriam argumentos como os que cientificamente apresentamos, embasados na metodologia desenvolvida e até hoje semanalmente confirmada.

“Metodologia científica” parece um troço chato, complexo, difícil, não? Pois é… não à toa, em nosso livro A Chave do Baú figuramos o assunto como uma “caça ao tesouro”, onde a metodologia nada mais é que a tal “chave” que abre baús…

Para chegarmos ao “tesouro”, que seria uma resposta atestável e bem explicada do paradoxo, precisamos primeiro contextualizar que “violas dedilhadas” é assunto pouco citado em estudos além da língua portuguesa e, em parte na língua espanhola, por causa das vihuelas – estas que, entretanto, caíram em desuso no século XVII. Neste ponto, precisamos lembrar que poucos teriam observado e citado que o nome “viola”, após ter aparecido no século XII em textos em latim, depois em occitano e catalão, apareceu no século XIII (ca.1240) em espanhol, no cancioneiro Libro de Apolonio, de autor desconhecido. Na verdade, neste mesmo texto teriam aparecido as variações VIHUELA, VIUELA e… VIOLA – que vários autores até citam, mas sem contextualizar que, portanto, “vihuela” e “viola” seriam equivalentes, pela somatória de línguas antecessoras e influenciadoras diretas do espanhol (e do italiano, e do português, entre outras).

Destacamos “na língua italiana” pois é nesta que, após os registros em espanhol do século XIII que acabamos de citar, segundo a cronologia que revela e atesta (e por isso é base científica nossa), é pelos italianos que “viola” teria o próximo registro, no século XIV (por Giovani Bocaccio, no Decameron, ca.1350) e seguiria sendo citada por Tinctoris, no século XV em Nápolis (De inventione et uso musicӕ, entre 1435 e 1511), e no século XVI por Giovanni Lanfranco (Scintille di musica, 1533), Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto, 1536) e Silvestro Ganasi (Regola Rubertina, 1542).  Enquanto que na língua portuguesa, só a partir do século XVI apareceriam registros de “violas” (em cartas do Rei D. Afonso V).

Atesta-se não somente que a ordem de uso do nome “violas” para cordofones partiu da Espanha, depois Itália até chegar a Portugal, mas principalmente por características apontadas nestas e outras fontes que a maioria dos estudiosos não teria percebido, por não terem em mente que desde as vihuelas, “viola” era nome comum a instrumentos dedilhados e friccionados por arco. A maioria dos estudiosos ocidentais só teriam em mente as violas friccionadas, que se tornaram famosas e muito estudadas por participarem do circuito erudito, das escolas, das orquestras.

Os registros, nas várias línguas e épocas distintas, e até desenhos apresentados em métodos são muito claros: vihuelas teriam sido de pendola (“plectro, paleta”) e de arco, segundo Juan Ruiz (Livro de Buen Amor, entre 1283 e 1350); “violas” teriam sido sine arculo (“sem arco”, ou seja, dedilhadas) e cum arculo (“com arco”), segundo o já citado Tinctoris, e seguindo citações já feitas, teriam sido ao mesmo tempo o vero lauto (“como alaúdes”), ou seja, dedilhadas, segundo Milano e da braccio (“braço”) e da gamba (“perna”), friccionadas por arco, segundo Lanfranco e Ganasi.

Isso sem contar pelo menos duas outras curiosidades que observamos em outras línguas: geige seria o nome tanto para dedilhados quanto e para friccionados, em latim e em alemão, segundo Hanz Judenkuning (Utilitis et Compendiaria Introducto, 1523) e em inventários do Rei Henrique VIII, a citação de Gitterons […] caulled Spanishe Vialles  (“chamados Vialles na Espanha”), onde Gitterons aponta para “guitarras”, instrumentos dedilhados. Esta citação faz parte de fontes levantadas pelo grande musicólogo inglês Francis Galpin (Old English Instruments, 1911), que entretanto, como tantos outros, não teria considerado existência de violas dedilhadas, apontando equivocadamente aquelas vialles como friccionadas por arco.

Há também evidências de que o uso de arcos em território europeu só teria registros a partir do século X, em instrumentos que inicialmente teriam sido apenas dedilhados e que por grande período continuariam a ser tocados de ambas as maneiras, sem que houvesse motivo para serem usados nomes diferentes. Estas evidências foram apontadas por estudiosos sérios e muito embasados, de várias regiões da Europa e em estudos publicados desde o século XIX – ou seja, a bivalência teria registros bem antigos e continuaria em Portugal e no Brasil até os dias atuais, portanto, estudiosos já poderiam ter percebido, se não tivessem o foco distorcido por imaginarem que só teriam existido violas de arco.

Bastam, entretanto, os apontamentos que fizemos, de entre os séculos XIII e XVI, pela ordem cronológica, em espanhol, depois italiano e depois em português, para atestar que é por isso que temos hoje o paradoxo tema de nossa aula e deste Brevis Articulus – com o agravante de atestação que a partir do século XVII, com a queda das vihuelas, cordofones cinturados com braço passaram a ser chamados de guitarra na espanha, alcançando fama suficiente para serem seguidos por nomes muito similares como guitarre (francês), Guitare (alemão), Guitar (inglês). Na Itália, as violas dedilhadas passaram a ser chamadas chitarras e só em Portugal continuou o uso de um mesmo nome “viola” para dedilhadas e friccionadas por arco. Contextualizamos que este peculiar comportamento português tem explicações e atestações que apontam um peculiar nacionalismo destes – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”).

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Viola, Saúde e Paz!

Violas são testemunhas da História do Brasil: estiveram presentes, por exemplo, desde relatos de Anchieta e outros jesuítas (século XVI); poesias de Gregório de Mattos (século XVII); histórias de vida como as do Padre Mestre, Domingos Barbosa e do luthier Domingos Vieira de Vila Rica (a partir do século XVIII); narrativas de estrangeiros por grande parte da Colônia (século XIX). Seus primeiros estudos viriam desde Theodoro Nogueira (século XX) até doutoramentos como os de Ivan Vilela e Roberto Corrêa (século XXI).

Embora desde dezembro de 2021 tenhamos disponibilizado, traduzido, transcrito e contextualizado os registros acima, entre centenas de outros, em nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, ainda são poucos os interessados em contar e valorizar a verdadeira história de instrumentos que, quer seja antes (como “apenas um nome diferente”) ou já depois (como verdadeiros cordofones populares consolidados), ajudam tanto a contar a nossa História. A lenta atualização não muda, entretanto, dois fatos: as violas romperam os séculos apesar de intempéries (como serem confundidas, terem seus registros e sua importância negligenciados e outras) – e outro fato é que elas vêm sempre evoluindo e refletindo aspectos sociais, junto com a própria História deste país de diversidade, de multi-culturalidade.

Temos modéstia alguma em afirmar que novos tempos se iniciaram a partir de nossa iniciativa em buscar, alcançar e atestar revelações, como a contextualização das violas conforme a História dos cordofones europeus. Esta pesquisa inédita, que abrange registros em todas as línguas desde o latim do século II aC., apontou que o que sempre existiu por aqui, assim como em Portugal, é uma Família de Violas dedilhadas.

Entretanto, sempre afirmamos nossos pioneirismos no plural, pois devemos muito aos grandes estudiosos que corroboram nossos procedimentos científicos. E, embora possa parecer estranho a quem não percebeu ainda que falar de violas no Brasil é assunto pouco levado a sério, seguimos pontuando e registrando, sempre que podemos, cada conquista, cada revelação, cada ineditismo.

A intenção é muito clara: buscamos facilitar o trabalho de estudiosos sérios do futuro, para que não precisem passar as dificuldades que passamos e, oxalá em tempos mais evoluídos que os de hoje, possam ser mais ouvidos do que nós somos. Pois a tendência, pelas evidências, é que ainda haverá violas no futuro – e nossa esperança é que possam ser vistas com o grande potencial histórico, cultural, turístico e econômico que têm. Grandes “tesouros”, que é como as tratamos em nosso livro A Chave do Baú.

Assim, seguindo a História das violas, chegamos ao ineditismo destes nossos Brevis Articulus semanais: na verdade e na prática, um tipo de “oficina científica a céu aberto”: aprofundamentos, reflexões e embasamentos em dados reais, além de explanação e comprovação “on line” da metodologia científica aplicada. E alguma dose de zoação e de provocação também, além de fazermos registros históricos atualíssimos, contemporâneos – registros que em nenhum outro lugar estariam a ser divulgados e comemorados como deveriam.

A própria existência de uma coluna semanal com conteúdo científicamente embasado sobre violas é uma grande novidade, e indica evolução. Mais ainda, por estar a ser divulgado em portais internéticos tradicionalmente ligados ao caipirismo. É sem dúvida uma evolução apresentar: incentivo à leitura, difusão de Conhecimento científico e defesa de Patrimônio onde nunca teria sido feito antes; além disso, e feito onde a maioria dos admiradores da viola navegam. Já este marco histórico devemos, principalmente, à paciência e grande visão de dois baluartes: André Viola, de Uberlândia (MG) – coordenador do portal Viola Viva – e Cléber Vianna, de Salvador (BA), do portal Casa dos Violeiros. Ambos, há décadas defendendo a divulgação e valorização das violas. Ambos, comprometidos e apaixonados pelas violas, como nós também – a diferença é que os dois dedicam-se, com maior foco, ao caipirismo.

Eu ouvi palmas? Deveria. O amigo que agora lê, por favor, pare onde estiver e bata palmas por estes dois corajosos, dedicados e visionários violeiros. Merecem muito.

Já aprofundamos e dissecamos aqui nos Brevis Articulus, por exemplo, estudos inéditos mundialmente, como os curiosos casos das “organas”, das “violettas”, das origens das modas-de-viola e outros. E testemunhamos acontecimentos históricos de 2023 como o 21º Festival do Pinhão de Cunha (SP) – semanas de espetáculos onde violas foram obrigatórias e estrelas; mais uma edição do Rio de Violas, no Rio de Janeiro e a primeira iniciativa de salvaguarda das violas portuguesas como Patrimônio Imaterial, nos Açores – entre outros acontecimentos que vamos citando e comemorando.

Há mais, muito mais. Neste ano, pela primeira vez na História, a Família das Violas Brasileiras foi representada de forma completa, ou seja, todos os modelos representados em palcos – e outros eventos assim devem seguir acontecendo. É uma pena que uma evolução moral e ética ainda não acompanhe os responsáveis, que estão a “fazer história” e se esquecem de dar o crédito devido a quem teve esta visão. Quem, corajosamente, enfrentou todos (de doutores a “achistas” em geral) para atestar e divulgar a verdadeira História das nossas violas?

Para a História (por exemplo, para aqueles estudiosos sérios do futuro que comentei), ficarão os fatos, com os registros das datas. Nada passa despercebido a quem é sério com registros históricos, a História se conta de forma clara e honesta há séculos, para a quem a queira ler sem invenções e distorções.

Temos ainda para contar que vários grupos de violeiros pelo Brasil já estão a abandonar a ideia pouco correta de se auto-proclamarem “orquestras”; que também nestes grupos já surgem maestros (de verdade), que estão a estudar opções de regências (de verdade) para as especificidades das músicas tocadas por violas; que alguns violeiros já estão a entender que, além das suas excelentes performances instrumentais, pode ser útil à comunidade (e mais lucrativo a eles mesmo) também apresentar algumas performances cantando: somos um país cantante, o canto atrái público e interesse. E até alguns adeptos ao caipirismo, mais conscientes, estão a pensar melhor antes de simplesmente repetir “ladainhas” infundadas, relacionadas às violas, que dominaram a cena nos últimos 50 anos.

Especificamente, até o caipirismo tem sido rediscutido: isso é normal, a praticamente todos os assuntos e deveria ser sempre assim… Agora… Adivinha quem foi o primeiro maluco a ter coragem de questionar apontamentos sobre o caipirismo? Sugerimos checar diversos dos Brevis Articulus já publicados: encontrar-se-ão facilmente os embasamentos, as fundamentações carinhosamente levantadas a respeito. Entendemos que o caipirismo nunca deixará de existir, nem deixará de ser lucrativo, e possivelmente vai continuar tendo fundamentação mais na base da “fé” que qualquer outra coisa – foi em dúvida uma ideia genial, de um excepcional vendedor.

O que importa é que já se começa a entender as violas com mais coerência histórica, que vai muito além do caipirismo e é muito mais importante. Em tempo, temos vários amigos e conhecemos diversas pessoas às quais admiramos e respeitamos que amam o caipirismo – só o que queremos e esperamos delas é que sejam sempre verdadeiras, com embasamentos honestos e que não se deixem enganar por fontes equivocadas: nada mais nem nada menos que isso… A não ser, claro, que não nos levem a mal e possam nos perdoar, pois é só Ciência, nada pessoal.

Por fim, para hoje, temos alegria em anunciar que mais um marco histórico está previsto para acontecer em 23 de agosto de 2023: pela primeira vez apresentaremos nossas descobertas ao universo acadêmico – especificamente em uma aula optativa para diversas grades / áreas científicas. Este tipo de aula já é tradicionalmente ofertado via projeto Viva Música, da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais.

Vez que esta conceituada Universidade mantém dois cursos de Música (“orquestral” e “popular”), revelaremos parte de nossas descobertas a partir das origens comuns (os nomes) tanto das violas de arco quanto das violas dedilhadas. Possivelmente seja a primeira vez que são apresentadas juntas, em um mesmo estudo – e agora, numa mesma aula. Vamos contextualizar o desenvolvimento histórico que culmina no curioso fato de dois instrumentos tão diferentes terem se consolidado com “um mesmo nome” – uma questão que, se foi levantada antes, ainda não tinha sido esclarecida.

É uma conquista para as violas: representa uma nova maneira pela qual precisam ser vistas. Atrevidamente, mas de forma embasada, as violas levantam discussão sobre estudos já feitos pelo mundo e requisitam seu merecido espaço nas narrativas oficiais, desde as importantíssimas abordagens acadêmicas até o conhecimento pela população em geral. Nem o Brasil, nem o resto do mundo conhecem direito as violas brasileiras.  Isso já vem de séculos, com um agravante de distorção por motivações comerciais nos últimos 50 anos. O caminho da descoberta será, portanto, longo – mas cada passo é um passo a frente, podemos e devemos celebrar. Até onde elas vão chegar serão outras prosas… Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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9 Ago, 2023

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A ORIGEM DO ESTILO “SERTANEJO UNIVERSITÁRIO”

“[…] A música sertaneja tem certas características de melodia de simples assimilação. […] E tem o som da viola caipira, que já está no “iê-iê-iê”, também com este negócio de violão de 12 cordas que os Beatles usaram muito…”.

[Rogério Duprat, em entrevista ao Jornal do Brasil, 01/12/1970, nº 204, p. 38].

Viola, Saúde e Paz!

O assunto é já bastante discutido: há dezenas de opiniões de curiosos, historiadores, sociológos, antropólogos… É citado em artigos independentes e científicos, dissertações, teses… Mas não encontramos análises musicológicas embasadas cientificamente por dados de época e contextos histórico-sociais – por isso, resolvemos abordá-lo no livro A Chave do Baú e neste Brevis Articulus apresentamos aprofundamentos, com referências, as quais os leitores podem confirmar se quiserem. Desenvolvemos a origem a partir das violas e do caipirismo, pontuando o ano de 1966, como quase ninguém teria observado e relatado antes.

“Quase ninguém” porque, entre cerca de uma centena de textos que checamos, apenas no artigo Raízes Caipiras da Música Sertaneja (do paranaense Rodrigo Mota, publicado em 2011), encontramos uma citação vaga de que:

 “[…] no Festival da Viola promovido pela TV Tupi de São Paulo, em 1970, com a participação do maestro Júlio Medaglia, procurou-se dar um novo tratamento harmônico, melódico e temático à música sertaneja, inspirado, de certa forma, nas perspectivas abertas pela música “Disparada” de Théo de Barros e Geraldo Vandré”.

Neste bom artigo há também citação às motivações do maestro Rógerio Duprat, na mesma época, conforme trechos como o destacado na abertura – motivações que na maioria das vezes nem é apontada por estudos acadêmicos. Entretanto, não há no artigo o que chamamos de “desenvolvimento científico” – até porque, para Mota, a ligação da hoje chamada “música sertaneja universitária” com “Disparada” não seria clara, concisa.

Ligação entre a música “Disparada” e o surgimento do estilo sertanejo universitário? Não é “forçar a barra”, já que tantos estudiosos não teriam visto isso?

Antes de responder via nosso desenvolvimento, não podemos deixar de dar crédito ao Dr. Roberto Corrêa, que na sua tese Das Práticas Populares à Escritura da Arte, de 2014, fez um bom apanhado sobre o fenômeno envolvendo a música “Disparada” – até porque o sucesso dela teria sido um dos cinco pilares do suposto “avivamento da viola caipira na década de 1960”, defendido pelo pesquisador. Já citamos e comprovamos por numerosos registros de época que, na verdade, a nomenclatura “viola caipira” ainda não estaria consolidada naquela década – antes, ao contrário, o que se caracterizaria desde pelo menos 1959 até meados da década de 1970 seria uma dúvida pública sobre o melhor nome para as violas, entre “viola brasileira” e “viola caipira”, com a consolidação só tendo vindo a ser atestável a partir de meados da década de 1970. Apontamos inclusive todas as citações ao termo no período, em nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil, em dezembro de 2021.

Corrêa, entretanto, percebeu e citou muito bem dois aspectos importantes: primeiro, o envolvimento de Vandré e do Trio Novo (Théo de Barros, Airto Moreira e Heraldo do Monte), principais compositores e intérpretes de “Disparada”, com a multinacional Rhodia (Companhia Química Rhodia Brasileira), que à época promovia com aqueles artistas uma grande tournée nacional chamada Mulher, este Super-Homem. Corrêa também percebeu e discorreu que Duprat, em 1970, estaria às voltas com a divulgação do disco Nhô Look – e que, bem mais que um simples lançamento, Duprat na prática dava a ideia de uma intenção, que pode ser resumida numa espécie de “dar nova roupagem”, em todos os sentidos, à música sertaneja (“caipira”) que já existia, de estilo em tudo muito simples e rústico.

Dois aspectos chamaram a atenção e nos levaram a escolher o trecho destacado na abertura para ilustrar: no princípio, tanto o estilo “antigo” quanto o “mais moderno” seriam chamados de “música sertaneja”. E que embora Duprat devesse ter bom conhecimento de organologia (ciência que trata da classificação e descrição de instrumentos musicais), por algum motivo teria apontado em entrevistas como se fossem a mesma coisa: violas, violões, violões 12 cordas, guitarras – sendo que nunca foram.

A intenção era claramente comercial: a música caipira, alavancada de 1910 a 1945 com maestria e muito labor pelo visionário empresário artístico Cornélio Pires, era ainda, na década de 1960, uma realidade interessante em termos de vendas (de shows, palestras, livros, discos, etc.). E nenhum sucesso de vendas passa despercebido dos concorrentes…

  O que teria passado despercebido, porém entre pesquisadores, é que não teria sido iniciativa individual de Duprat uma “repaginação estética geral” da música caipira visando agradar a um público maior: por trás do disco e do “movimento” Nhô Look estaria a mesma multinacional Rhodia, como na época de “Disparada”.

Cabe uma explicação: a empresa química, além de cosméticos, lançou no mercado brasileiro tecidos com materias sintéticos, como o nylon e o poliester, por isso o investimento em eventos ligados à moda (roupas, “looks”). E promoveu diversos eventos ligados à música pelo atrativo de público, às vezes junto com desfiles, como Festivais, tournées nacionais e outros. É fácil entender os tipos de ações de marketing pelo próprio site oficial da Rhodia – porém, lá não constam a tournée de 1966 (com Vandré e o Trio Novo) nem a de 1970 (com Duprat). Uma significativa característica destas duas tournées é que haveria apresentações de duplas caipiras e de músicas também utilizando violas nas formações, mas em outras “roupagens”, outros tipos de ritmos e interpretações. Estas informações colhemos de diversas fontes como o livro A Era dos Festivais, de Zuza Homem de Mello (que viveu e trabalhou com música na época) – além de várias outras. Além das já citadas, acrescentamos em destaque por serem mais recentes (abrangendo outras mais antigas) e com visões que partem de outras regiões do país: a dissertação Música Caipira e Música Sertaneja, depositada no Rio de Janeiro em 2005 por Elizete Santos e o artigo Da Cultura Popular ao Erudito, lançado na Bahia em 2017 por Lucas Schafhauser e Ângela Fanini. 

   Fato é que “Disparada” foi um grande sucesso, para o qual o lendário envolvimento político de Vandré só veio a colaborar e, até hoje, faz parte dos repertórios de violeiros, de adeptos da MPB em geral e, naturalmente, de música nordestina – o que efetivamente é, embora até seus autores a tenham citado como uma espécide de “moda de viola que não deu certo”. O título original, inclusive, teria sido Moda para Viola e Laço – que comprova que falar de violas, à época, era interessante comercialmente.  “Disparada”, já com uma “nova roupagem” de uso de violas e seguindo uma trilha de sucesso comercial da música nordestina que passava por Luiz Gonzaga, “bombou” (como se diria hoje) – e isso também não passaria despercebido ao mercado. Sobre origem e entendimentos distorcidos das modas-de-violas, recomendamos, como sempre, lerem o livro A Chave do Baú ou o Brevis Articulus que já fizemos – sendo que, podendo comprar o livro, melhor, pois ajuda a manter os aprofundamentos que fazemos aqui de graça…

Sempre recorremos a registros de época e a contextos histórico-sociais que apontem reflexos em instrumentos musicais populares, por questão metodológica e de honestidade, clareza, embasamento científico. O que a virada para a década de 1970 aponta é que fatores mundiais já vinham apontando mudanças nas músicas populares desde o fim da segunda Guerra Mundial (1945): os Beatles estavam em plena evidência, assim como o movimento hippie e o rock com suas guitarras elétricas, como no Festival Woodstock (1969). No Brasil, teria sido época de ditadura (ou “governo militar”) – um período politicamente conturbado que duraria até 1985 – e em 1967 também já tinha ocorrido aqui a “Passeata contra as Guitarras”. Após o movimento Jovem Guarda – onde guitarras elétricas já eram utilizadas -, seguiram-se outros, onde guitarras também estariam em destaque, como o “Iê-iê-iê” e o Tropicalismo. Neste último movimento, inclusive, já teria havido a participação ativa do próprio maestro Rogério Duprat, daí seu nome surgir para a implantação da ideia de um “novo sertanejo”, que vendesse bem também para as classes média e alta.

A empreitada com Duprat não teria tido, aparentemente, o sucesso esperado, mas logo em seguida, a partir de 1972, uma dupla que anteriormente teria sido “caipira” como as demais despontaria com várias características do novo formato proposto: Léo Canhoto & Robertinho. Estes teriam iniciado a migração das formações de bandas para “guitarras, baixo e bateria” (como os Beatles e tantos mais que os seguiram), abdicando da antiga formação com violas e violões. No novo estilo, várias características dos movimentos anteriores (Jovem Guarda, Tropicalismo, Iê-iê-iê), como o romantismo das letras, além de outras aproximações com a cultura estadunidense nas roupas, nos cabelos compridos e até com esquetes durante os shows (similares a cenas de filmes sobre o Velho Oeste, inclusive com sons de tiros).

O sucesso teria sido imediato, com outras duplas logo aderindo (como Milionário & Zé Rico, que até no visual e figurino eram praticamente iguais). Outros estrangeirismos foram sendo integrados (como influências da música mexicana e sulamericana) e assim surgiu o que hoje se chama “sertanejo universitário”.

Musicologicamente, a presença ou não de violas nas formações diferencia claramente os dois estilos, entre outras diferenças que normalmente são mais citadas, como as temáticas das letras. Claramente se observa que uma comoção social de grande impacto mundial aconteceu (as Grandes Guerras), e que instrumentos musicais populares teriam reagido (como observamos ter sempre acontecido em toda a História Ocidental dos cordofones, a que nos dedicamos a estudar a fundo). No caso do Brasil, a ascensão das guitarras, em substituição a violas e violões.

De igual nos dois estilos, praticamente só resistiria até hoje a predominância do canto duetado em terças – tipo de canto que em outro Brevis Articulus já detalhamos: teria registros pelo menos desde o século XII, na península britânica, tendo chegado até Portugal e de lá até aqui por causa da influência celta e da atuação do Trovadorismo medieval ibérico (em si, outro fator histórico-social de grande impacto). Não, não teria sido original nosso, sequer dos portugueses, que também cantavam modinhas assim.

Alguns autores que aparentemente se arriscam a escrever sobre música sem nunca terem tocado, nem estudado, nem procurado ajuda de quem conhece melhor o assunto, querem inferir que o estilo chamado caipira teria “evoluído” para o sertanejo universitário, ou que seriam a mesma coisa, ou duas pequenas variações de um mesmo estilo. Seriam equívocos lamentáveis ou, como Duprat teria feito, argumentos interesseiros? Difícil provar o que realmente seja.

Já outros autores tentam inferir que só o sertanejo universitário teria cunho mais comercial, e que o caipirismo seria “puro”, natural – esquecendo-se que, na verdade, a interpretação de uma suposta “cultura caipira ancestral” não tem registro anterior a Cornélio Pires (ao contrário, o termo “caipira” tem registros de uso com outros significados, mas só desde o século XIX, inclusive nunca teria sido original indígena). “Esquecem-se” também que Cornélio foi um estupendo vendedor, e que a ele se devem as principais escolhas de músicas que seriam “caipiras” ou não, no início. O caipirismo é na verdade um entendimento coletivo sem comprovação histórica, com boa resposta comercial, amparado na religiosidade e no ego de vários aficcionados. Uma prova do aspecto comercial dominante no estilo é o ritmo “pagode de viola”, que teria sido criado só em 1959 e que, graças aos investimentos da gravadora alavancados no grande artista Tião Carreiro, hoje se alinha entre os principais “ritmos caipiras”… O caipirismo não seria ancestral? Como um ritmo novo pode ter se tornado o mais celebrado? E porque outros novos ritmos novos não apareceram?

Nós, que não ficamos nem em cima, nem em nenhum dos lados comerciais do “muro”, afirmamos: tanto o sertanejo “universitário” quando o sertanejo “dito raiz”, se forem “culturas” em algum possível entendimento, seriam culturas inventadas e mantidas principalmente por interesses comerciais. Nunca teriam sido culturas surgidas naturalmente, muito menos ancestrais (registros e contextos históricos apontam as datas claramente). São ações toleradas pelas leis que acontecem há séculos pelo mundo ocidental e que por isso, cientificamente, também fazem parte dos contextos históricos, junto a outros comportamentos sociais. E que venham as ameaças de morte, tudo bem: todos temos que morrer um dia…  

O investimento em favor do “pagode de viola”, que teve renovado e comprovado contexto a partir de 1976 com o início da utilização do nome “viola caipira” em discos e músicas de Tião Carreiro (LP É isso que o povo quer) foi fator preponderante para a consolidação deste “sobrenome” para o principal modelo da Família das Violas Brasileiras (Família que é postulação científica nossa) – mas aí já são outras prosas…

Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando… 

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro “A Chave do Baú” é fruto da monografia “Linha do Tempo da Viola no Brasil” e do artigo “Chronology of Violas according to Researchers”). 

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2 Ago, 2023

OS “CHUTES” DE CORNÉLIO PIRES

Os “chutes” de Cornélio Pires

[…] Por mais que rebusque o “etymo” de “caipira”, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos no tupy-guarany “capiabiguara”. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz “Caí” que quer dizer: “Gesto do macaco occultando o rosto”, “Capípiara”, quer dizer o que é do mato. “Capiâ”, de dentro do mato: faz lembrar o “capiáo”, mineiro. “Caapi” – “trabalhar na terra, lavrar a terra” – “Caapiára”, lavrador.

[Cornélio Pires, Conversas ao pé do fogo, 1921 – grifos nossos]

Viola, Saúde e Paz!

Para começo de prosa, neste Brevis Articulus não ousamos fazer qualquer análise realmente etimológica, no significado correto do termo (etimologia seria o estudo sobre a origem e evolução das palavras). Não o ousaríamos pelo fato de não termos formação nem competência para tanto – mas fazemos, outrossim: apuração, organização e análise de registros históricos de palavras e seus significados. Um princípio científico básico utilizado também por etimólogos, para o qual entendemos estar habilitados por já fazermos há algum tempo, no âmbito da musicologia mais ampla, com fontes em latim, occitano, catalão, francês, versões históricas de alemão e inglês, espanhol e português.

No caso, demonstramos que nossa metodologia é eficaz também para palavras do tronco linguístico tupi-guarani – uma metodologia que nada mais é que A Chave do Baú, nome de nosso livro mais recente, onde a utilizamos para contextualizar, pela primeira vez, todos os modelos de violas brasileiras com a História dos cordofones ocidentais. Se já temos a chave, então, “simbora” descobrir mais tesouros deste baú?  

Nossa motivação para este “estudo paralelo” (ou extensão da aplicação da metodologia) veio de desafios lançados pelo genial empresário cultural paulista Cornélio Pires (1884-1958), que além do trecho destacado na abertura, teria apontado que notáveis “lexicographos” brasileiros “[…] poderiam pescar regionalismos de verdade nas paginas que se seguem” (páginas, no caso, de outro livro dele, As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, publicado em 1924).

Cornélio apontou “lexicógrafo”, que na verdade significa “organizadores de conjuntos de palavras em publicações como dicionários” – porém, como as línguas indígenas são antigas e o objetivo seria atestar possível origem do termo “caipira”, o mais correto seria levantar registros de época – pois nunca se deve analisar o passado com base no que é conhecido (dito, escrito) no presente. A ciência correta, portanto, seria a etimologia e, curiosa e acertadamente, Pires utilizou no início do trecho o termo “etymo”, que em grego antigo e em latim significaria algo como “verdadeiro, original”.

Estes pequenos equívocos (ou confusões com os significados de palavras) seriam muito graves para um estudioso, mas é sempre bom lembrar: Cornélio Pires nunca teria sido um estudioso, um cientista de verdade – inclusive, jamais teria se autodesignado como um (ao contrário disso). Há quem gostaria e, de certa forma “endeusando-o”, até “forçam a barra” – mas as publicações dele eram artísticas. Era tão consciente da liberdade com a qual podia escrever que, no mesmo trecho citado por último, de 1924, afirmou que de fato o que narrava eram “casos e mentiras”. Genial vendedor, agitador cultural incansável, visionário em várias coisas… mas estudioso de verdade, cientista, não – e basta observar com atenção.

Seguindo, então, na observação da série de pequenos equívocos (ou seriam “sutilezas geniais”?), logo após afirmar “não ter deduzido nada com clareza”, listou uma série de termos dos quais, conforme sublinhado no destaque da abertura, afirmou: “encontramos no tupy-guarani”… Chamou-nos muito a atenção esta afirmação: quais dicionários ou quais conhecedores do idioma Cornélio Pires teria consultado? E chamamos de “chutes” porque quem não teria deduzido nada com clareza, mas ainda assim tenta apontar significados, estaria, confessadamente, “chutando”…

Cornélio não precisava citar fontes e nunca teria se dado a tal tipo de trabalho, pois, como enfatizamos, suas publicações eram artísticas, livres, “não-científicas”… Por isso, inclusive, chama ainda mais a atenção o fato de dezenas de publicações, até os dias atuais, citarem apontamentos de Cornélio como se fossem verdade científica… É bastante estranho isso…

A própria interpretação da existência de uma “cultura caipira ancestral”, defendida com afinco por ele, é largamente apontada como se fosse verdade científica, há décadas, por grandes estudiosos e outros tipos de pessoas sérias… Tivemos a curiosidade até de perguntar ao “oráculo moderno”, o senhor Google: “Quais os maiores sociólogos brasileiros de todos os tempos?” – e a resposta aponta que todos, sem exceção, confirmariam (aparentemente, sem discutir sequer uma linha!) a interpretação lançada por Cornélio Pires. Vários outros estudiosos, de outras áreas, também fazem o mesmo.

Ora… Se é apoiado por tantas pessoas sérias, então devemos facilmente confirmar por registros de época tudo o que disse Cornélio, certo? Hum… não é assim não… e por isso costumamos chamar de “entendimento coletivo” – um entendimento secundado por muitos, mas que, historicamente, não se comprova ter realmente existido antes de Cornélio. Pior: vários registros e contextos histórico-sociais apontam diferente… É estranho, muito estranho…

Chegamos a identificar que a mais remota (e muitíssimo citada) referência de certo “aval científico” teria vindo do sociólogo carioca Antonio Candido, no livro Os Parceiros do Rio Bonito, publicado em 1964. O livro teria sido fruto de uma tese de doutoramento, depositada em 1954 – mas ninguém, entre dezenas que conferimos, cita a tal tese (da qual também não conseguimos acesso): tão somente o livro – um livro onde, curiosamente, sobre “cultura e região caipira” só se observam citações curtas, de pouquíssimas linhas, como se fossem conhecimentos de “notório saber”, ou seja, que nem precisariam ser detalhados… Não há desenvolvimentos científicos a respeito e, às vezes, nem citação clara de autores e/ou fontes sobre estes conceitos… Isso seria muito estranho para uma tese de doutoramento, mas para um livro, escrito por um doutor, entende-se que é aceito, na boa-fé, que a origem teria sido aprovada por revisores sérios e de grande conhecimento, de uma grande universidade. Mas, sinceramente, não é também um pouco estranho?

Explicamos: “teses” são muito utilizadas em várias áreas do conhecimento – mas o procedimento normatizado (e muito digno, na nossa opinião) seria: identificar a problemática, levantar fontes para embasamento e então desenvolver cientificamente as justificativas da tese apresentada. Se partir de algum conceito já estudado antes, o correto é descrever pelo menos de onde a ideia original teria vindo (argumentos, estudo, autor, ano, etc.). Entendemos que tanto o caipirismo quanto a chamada “região caipira” seria difícil explicar, posto não serem embasados em textos científicos, estudos… mas nem tentar explicar nada? Aqui, mesmo em textos que até poderiam ser livres como os Brevis Articulus, apontamos e explicamos tudo – questão de retidão, de não querer enganar ninguém (quem duvidar, basta seguir as trilhas e concluir por si mesmo).

Enfim… Por tantas informações e procedimentos “no mínimo estranhos”, e por “caipira” ter se consolidado, a partir da década de 1970, como sobrenome do principal modelo de nossas violas, resolvemos tomar de empreitada o levantamento e checagem de fontes que Cornélio Pires poderia ter consultado – em especial os termos destacados na abertura, uma vez que em nenhum dicionário sério de tupi-guarani eles constam como Cornélio os citou (inclusive em vários hoje disponíveis pela internet). Não observamos ninguém que tenha apontado mais este outro fato “estranho” – um grande mistério, que tantos afficionados pelo caipirismo não parecem se importar, ou sequer teriam percebido. Não se manifestam nem depois que começamos a atestar e apontar publicamente estas estranhezas – o assunto parece tabu, ou “dogma”… Mistério!

Bom… Mistérios, nós gostamos bastante de pesquisar: são nossos preferidos, pois costumam ser tesouros perdidos! Resolvemos então levantar considerável lista de fontes, que teriam sido publicadas antes e que Cornélio poderia ter consultado: de relatos de quem conviveu com indígenas até dicionários. Além de publicações em português, conseguimos alguns com paralelos em latim e espanhol e até um livro inteiro que teria sido traduzido para tupi-guarani – chegando até ao Dialeto Caipira, publicado pelo primo de Cornélio Pires, Amadeu Amaral, em 1920. Curiosamente, parece que os primos não se afinavam plenamente nos conteúdos das publicações, no início… mas depois chegaram a ser sócios numa editora. Estudos intuitivos de Amadeu Amaral são constantemente citados em argumentos a favor de Cornélio.  

Juntamos e checamos uma por uma, comparando ao que apontou Cornélio, cerca de duas dezenas de fontes, desde o século XVI, a saber:

Do Principio e Origem dos Índios do Brazil (Fernão CARDIM, 1584); Arte da Gramática da Língua mais usada no Brazil (José de ANCHIETA, 1595); Arte de Grammatica da Lingua Brasilica (Luis FIGUEIRA, 1687); Arte de la Lengua Guarani (Antonio Ruiz de MONTOYA, 1724); Diccionario Portuguez, e Brasiliano – “DPB” (coletivo, 1795); Diccionario da Língua Portugueza (Antônio de Moraes SILVA, 1831); Voyage dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil (Auguste de SAINT-HILAIRE, 1833); Novo Diccionário Critico e Etymológico da Língua Portugueza (Francisco Solano CONSTÂNCIO, 1836 e 1858); Diccionario da Lingua Tupy chamada Lingua Geral (Antônio Gonçalves DIAS, 1858); Chronica da Companhia de Jesus (Simão de VASCONCELLOS, 1865); Glossaria Linguarum Brasiliensiun (Carl MARTIUS, 1867); O Selvagem (José Vieira COUTO DE MAGALHÃES, 1876); “Manuscripto Guarani” e “Vocabulário” (Baptista Caetano de ALMEIDA NOGUEIRA, 1879); Voyage a Rio-Grande do Sul (Brésil) (Auguste SAINT-HILAIRE, 1887); Diccionario de vocabulos brasileiros (Henrique BEAUREPAIRE-ROHAN, 1889); O Dialeto Caipira (AMADEU AMARAL, 1920).

Consideramos ainda o Vocabulário Elementar da Língua Geral Brasílica, de José Joaquim Machado de Oliveira, publicado já em 1936 – mas que, na verdade, é também um apanhado de várias citações encontradas nas fontes acima.

Apesar de nossas atentas e dedicadas buscas, o máximo que encontramos foram aproximações – só que elas, no conjunto, nos dão uma boa visão do que Cornélio teria feito:

caí foi realmente citado, secundária e pontualmente, como nome de macaco (assim como cairara e caíra) e também como adjetivo (envergonhado, medroso) – mas seu principal significado, fartamente apontado, remeteria a “queimar” e derivados ([CARDIM], 1881 [1584], p.80-86; DPB, 1795, p.66; MARTIUS, 1867, p.37; ALMEIDA NOGUEIRA, 1879, p.64). Indicações como estas últimas, entre parênteses, significam “pode ser conferido em”  – aí estão as trilhas, duvidou é só conferir. O que se atesta é que se caí fosse uma “raiz”, seria relativa a fogo, queimada ou similar. Cornélio, por algum motivo, apontou como “raiz” um significado menos utilizado – talvez, um apelido de algum tipo de macaco de pelo avermelhado como fogo? Seria mais ou menos como, ao ter várias bolas, escolher uma preferida, por algum motivo, para chutar…  

caapi, caa-apiá e/ou capiá seria “herva” ou “capim” (SAINT-HILAIRE, 1833, p.361; MARTIUS, 1867, p.388) ou ainda “herva forte, malvaisco” (CARDIM, 1925, p.131). Teriam sido, portanto, substantivos – e observou-se, por vários apontamentos, que a língua não aponta mesmos formatos para substantivos e verbos. O “capiau” de Cornélio até faria algum sentido, originalmente (que é o que interessa), mas não como “de dentro do mato” – talvez, como “o próprio mato”. Além da diferença de algumas letras, há diferenças no significado, ou seja: “chutou perto”, mas errou.   

– caa-pyir, caa-piir e caápi (uma citação) poderiam talvez ser “capinar, limpar capim” (segundo MONTOYA, 1724, p.101; DIAS, 1858, p.35; MARTIUS, 1867, p.37; ALMEIDA NOGUEIRA, 1879, p.63) – mas também poderiam ter vindo do latim carpere segundo Beaurepaire-Rohan (1889, p. 39); caipi seria ainda um “casaco”, segundo Saint-Hilaire (1887, p.249) e um cipó e uma bebida extraída dele, no nheengatu da amazônia, segundo mais tarde apontaria Câmara Cascudo (1954, p.201) – este último sem indicar as fontes que teria consultado (um “aprendiz de chutador”, neste item em particular? A moda parece que pegava já há tempos…). Esta (caapi como “lavrador”) teria sido a melhor aproximação de tudo que apontou Cornélio, entretanto, observa-se que teriam constatado e outros teriam apontado o que parecem conjecturas malucas: isso caracteriza que o termo não era utilizado assim na maioria das vezes, concreta e consistentemente, como parece que Cornélio quis dar a entender – mas foi um bom chute!   

– biguá seria “ave palmípede”, segundo Beaurepaire-Rohan (1889, p.39) – uma única citação observada, no considerável acervo de fontes – e guara foi largamente indicado para animais como lobos. Não dá nem para imaginar de onde teria vindo o capiabiguara como “aldeão”, apontado por Cornélio. Chutou longe…

– “Lavrador” (enquanto “capinador”) poderia ser caapim-pyrçaba segundo apenas Carl Martius (1867, p.37) e também, mas sem que tenha sido observado nas fontes, “caapiir-piára”, por comparação a tupipiára (“o que mora em casa”) e i-pipiára (“o que é aquático”), estes últimos segundo apenas Almeida Nogueira (1879, p.546). Cornélio apontou caapiara como “lavrador” e capipiára como “o que é do mato”, em conjecturas que até fazem sentido ao pensar do homem branco de séculos depois, porém que parecem não terem existido de fato no falar indígena. Curiosamente, neste “chute duplo”, Cornélio apontou que haveria alguma diferença de significado entre dois termos com poucas letras de diferença – o que parece que não levaria em consideração normalmente quanto aos termos originais do tupi-guarani e o português.  

– “De dentro do mato” poderia ser caapor (“o que tem no mato”) ou caayguar (“o que é do mato”), segundo Cardim (1584, p.81) e Almeida Nogueira (1879, p. 63).

– “Aldeão” seria taiguar ou tabaiguá, segundo Almeira Nogueira (1879, p. 475).

Atesta-se, portanto, que teria mesmo estado longe de ter “clareza” uma possível ligação de “caipira” com origem tupi-guarani – e os exercícios conjecturais “chutísticos” de Cornélio, agora vemos, teriam sido para ainda mais longe. Entrentanto, podemos dizer que a intenção do empresário deu certo, pois centenas de pessoas, inclusive grandes pesquisadores, até hoje acreditam que o apontamento daqueles termos, talvez por algum motivo mágico, pudessem atestar o que Cornélio acreditava.

Qualquer um pode dar “chutes” amadores quanto a origens de palavras, inclusive com boa lógica, se forem pessoas inteligentes como Cornélio (infelizmente acontece muito, até os dias atuais). Estas pessoas, assim como ele, acreditam que poderiam estar certas – e nunca é demais lembrar: Cornélio defendeu suas interpretações em publicações artísticas, não-científicas. As interpretações agradaram a muitos, ele vendeu bem e quem o secunda na crença do caipirismo também faz suas boas vendas até hoje em dia: está tudo certo, não há qualquer ilegalidade em querer vender. Conjecturar sem estudar nada de um assunto e sem apresentar dados de época talvez possa ser considerado “falsa ideologia”, mas, sobretudo em publicações artísticas e humorísticas como as de Cornélio, parece que a sociedade em geral não se importa… Então, está tudo certo.

Agora… Por que Cornélio Pires parecia ter tanto interesse em indicar que “caipira” seria termo indígena? E por que tantos estudiosos aceitam até hoje os apontamentos amadores dele como verdade, sem discussão, sem parecer que tenham sequer checado dados (ou, se os checaram, não os divulgam em público)?

O que nem Cornélio, nem Amadeu Amaral – e parece que ninguém depois teria observado (ou querido divulgar) – é que “caipira” (e também “caipora”) já existia(m) desde pelo menos 1821 e não seriam termos indígenas originais: seriam empréstimos, adaptações: alterações com a intenção de apelidar, pejorativa e politicamente, brasileiros e defensores de D. João VI. Também por isso, até hoje, ninguém conseguiu atestá-los de verdade como termos da língua tupi-guarani – embora vários ainda gostem, como Cornélio gostava, de os “chutarem” como se fossem. É no mínimo estranho, mas pelo menos mantém certa coerência desde o início, não?

Cornélio, vendedor inteligentíssimo (até genial, na nossa insignificante opinião), quer soubesse ou não do significado correto de “caipira”, por seus indiscutíveis méritos e esforços teria percebido a força do termo, e se abraçou fervorosamente a ele, promovendo por cerca de 35 anos uma distorção para um novo significado, que se mostra útil para alavancar vendas até os dias atuais. Aliado a uma suposta origem ancestral, “de raiz”, alavancou defesa contra preconceitos e até alguma inclusão social de um povo que não tem hábito de leitura, que, sendo então embasados na “sabedoria popular”, até hoje não precisariam dar tanto valor à leitura, à reflexão, à checagem de dados históricos. Genial. Esta genialidade teria sido conveniente ao candidado a deputado em São Paulo, Dr. Antonio Candido, e depois dele, tantos outros, sabe-se lá por quais reais motivos (mas bons motivos, segundo a visão genial de Cornélio, não faltariam)…  

Há registros suficientes e até estudos sobre o termo “caipira”, feitos por estudiosos muito sérios – igualmente “não etimólogos”, mas muito experimentados em várias línguas e que teriam convivido com indígenas. Já explicitamos estas últimas partes no livro A Chave do Baú e até em um Brevis Articulus específico aqui – portanto, são outras prosas…

Muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo escreve na coluna “Viola Brasileira em Pesquisa” às terças e quintas feiras. Músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor, seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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27 Jul, 2023

VIOLAS DA REGIÃO AMAZÔNICA

Violas da Região Amazônica

“[…] deste modo fomos belamente até a residência do Caeté, onde o padre Gonçalo de Veras, que também era vigário da vara para os brancos, nos agasalhou com toda a satisfação, não faltando as danças dos moradores que, à boca da noite, vieram com suas violas fazer festa a seu vigário-geral e juntamente a mim que ia em sua companhia”.

[João Felipe Bettendorf, entre 1690 e 1695 – Crônica da Missão do Maranhão

Viola, Saúde e Paz!

Chega de Barcarena, no Pará (a pouco mais de cem quilômetros de Belém), a notícia: ainda hoje, em julho de 2023, não se fala em “violas” por lá – e já há algumas décadas… É nosso amigo e vizinho Maurílio Theodoro – revisor ortográfico do livro A Chave do Baú – quem traz a espécie de “registro etnológico amador”, por assim dizer. Tínhamos pedido a ele que assuntasse o assunto, em suas férias, e ele teria inclusive localizado certo luthier experiente, por nome de Batista, reformador e construtor de instrumentos modernos, que é quem aponta a triste constatação.

De qualquer forma, resolvemos trazer para este Brevis Articulus pelo menos o que já tínhamos pesquisado: evidências de que, como no restante do Brasil, teria havido instrumentos chamados de “viola” na região Norte, tempos atrás, por um período continuado de cerca de pelo menos quatro séculos. A intenção é de alerta. Não tenhamos dados suficientes para atestar porque elas não teriam resistido, mas como bons admiradores de Guimarães Rosa, “sabemos quase nada, mas desconfiamos de muita coisa”…

Já transcritos antes em nossa monografia, vale lembrar os registros que pudemos levantar até agora, pois são levantamentos raros, verdadeiros “tesouros”:    

O mais remoto registro aponta fins do século XVII (entre 1690 e 1695), segundo duas citações na Cronica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Maranhão, do jesuíta nascido em Luxemburgo João Felipe Bettendorf (1625-1698): numa citação, destacada na abertura, moradores da aldeia de Caeté (PA) teriam dançado ao som de “violas” – e noutra o próprio Bettendorf teria cantado com acompanhamento de rabecas e “violas”.

No século seguinte (entre 1783 e 1792) o naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) apontou “violas que tocam os pretos”, vistas e desenhadas em suas viagens descritas em três volumes do livro Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá 1783-1792. Aquelas “violas”, entretanto, teriam sido cordofones bem diferentes, com corpo retangular e sete cordas cada uma com sua própria haste. Aproveita-se mais deste registro que chamava-se “viola” qualquer cordofone, costume também observado em registros portugueses.

Mais um século passado e, em 1828, em Santarém (PA), referindo-se a indígenas chamados Tapuios, o fotógrafo francês Hercule Florence (1804-1879) afirmaria que eles desejariam pouca coisa da vida, entre elas, “uma viola”. O registro vem do livro   Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas (1825-1829) e é um raro caso onde não teriamos conseguido a versão original para checar – neste caso, temos que confiar na tradução do Visconde de Taunay.

Em 1849 o explorador inglês Henry Walter Bates (1825-1892), em viagem pelo Estado do Pará, passando de barco pela região de Cametá, revelou um tocador e cantador de nome João Mendez. No livro The Naturalist on the River Amazonas ainda se observa a curiosa denominação wire guitar or viola (“guitarra de arame ou viola”) que reduz muito qualquer possibilidade de já ter sido um violão.

Em 02/09/1868 saiu o artigo “O Correio Mercantil e o sr. Amaro Bezerra”, no Jornal do Commercio (RJ), replicado sete anos depois no jornal A Provincia de São Paulo. Nele, o apontamento de “violas e guitarras” que teriam sido tocadas na região amazônica, segundo o Dr. José Maria de Albuquerque e Mello (?-?) – “juiz de direito, ex-chefe de policia do Amazonas, ex-deputado geral, etc.”.

Já em 1876, no livro Os Selvagens, que teria sido baseado em viagens feitas pela região amazônica, o folclorista mineiro José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) apontou “violas” como companheiras fiéis dos tapuios em viagens de canoa no Pará. Couto Magalhães indicou serem chamadas guararápeva aquelas “violas”, que armariam com três cordas de tripa. O pesquisador paulista José Ramos Tinhorão (1928-2021), no livro História Social da Música Popular Brasileira, criticou severamente este uso de violas por indígenas. Nós realmente observamos apenas mais um apontamento, feito pelo botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que cerca de 1818 teria visto numa aldeia – onde hoje seria Nova Almeida (ES) – indígenas que fabricariam guitares muito bem feitas, segundo ele com madeira de pés de genipapo e também de outra madeira branca, chamada tajibibuia. O livro é Voyage dans le district des diamans et sur le littoral du Brésil (“Viagem ao território dos diamantes e ao litoral do Brasil”). Também observamos que termo semelhante ao apontado por Couto de Magalhães teria sido apontado antes, em 1867, no livro Glossaria linguarum Brasiliensium, do botânico alemão Carl Martius (1794-1868): “[…] guara-peba: vióla i. e. [id est, ‘isto é’] arco (Uira-para) chato, Guitarre”.

Em 1883, observamos entre “violeiros” (fabricantes e/ou revendedores?) de várias regiões do país citados no Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Imperio do Brazil, do tipógrafo alemão Eduard von Laemmert (1806-1880), constariam os nomes de Francisco Alves dos Santos e Raymundo Ernesto Pereira de Souza, ambos de Belém (PA).

Entre 1973 e 1978, em pesquisas de campo sobre Violas de Cocho publicadas no livro Cocho Mato-Grossense, um alaúde brasileiro, a Dra. Julieta de Andrade registrou, entre outros exemplos de modelos de violas com número diferente de cordas: “a viola do Carimbó de Vigia, Pará, apresenta cinco cordas simples”. Infelizmente a pesquisadora não informou a fonte destas informações e também não foi observado na sua lista de referências nenhuma que indicasse o rastreamento e conferência.

Finalmente, entre 2011 e 2013, a equipe que cuidava da identificação do Carimbó como bem cultural candidato ao Registro nos Livro de Patrimônio Imaterial, em dossiê IPHAN a respeito, teria feito a triste constatação de que violas (e rabecas e pandeiros) “[…] já não mais seriam observados nas formações” ([IPHAN], 2013, p. 39).

Mesmo com a fama que o modelo Viola Caipira desenvolveu aproximadamente nos últimos 50 anos, em nossos monitoramentos percebemos pouquíssimos registros de violas e/ou violeiros na Região Norte. Uns três, se tanto, é o que podemos dizer – mesmo assim, que não estariam muito presentes nas redes sociais virtuais.

O ponto é que algum modelo de viola teria existido por lá por séculos, e teria desaparecido – ao contrário do resto do país.

Não temos como atestar ainda as possíveis motivações do fenômeno, pelos registros levantados – que são verdadeiras raridades em pesquisas sobre as violas brasileiras. Naturalmente, há a distância física e contextos histórico-sociais que apontam alguns outros aspectos culturais específicos da Região Norte do país – mas não podemos deixar de observar que as pesquisas sobre violas dedilhadas têm, na histórica maioria das vezes, o foco no modelo Viola Caipira.

Violas teriam existido pelo Norte – mesmo que, a princípio, apenas “instrumentos chamados de viola”; mas é também o que teria acontecido em Portugal e no restante do país, nos primeiros séculos: a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas (origem que só nós temos divulgado, por termos pesquisado com muito afinco), teria sido exatamente a partir e um nome forte – “viola” – mas “genérico”, que depois teria sido adotado para instrumentos de verdade, distinguíveis, únicos (hoje consolidados). É o que postulamos e contextualizamos cientificamente por nossos estudos ainda pouco conhecidos e quase nada apoiados.

A motivação comercial e a preferência às vezes até afetiva em torno do modelo Viola Caipira não são ilegais – longe disso, como sempre destacamos: mas a falta de conhecimento, citações e apoios aos demais modelos claramente prejudicam a sobrevivência deles e do que representam). Este sempre foi, inclusive, o principal argumento para nossa defesa solitária do Reconhecimento oficial das violas como Patrimônio Imaterial do Brasil, desde 2015.  Nossa ação, ao descobrir e divulgar a contextualização científica de toda uma Família das Violas Brasileiras é no sentido de alertar que alguns modelos (verdadeiros tesouros culturais brasileiros) correm o risco de simplesmente desaparecer com os anos, como parece ter acontecido com as violas da região Norte. 

Muito obrigado por ter lido até aqui – e vamos proseando…

(João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Seu livro A Chave do Baú é fruto da monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e do artigo Chronology of Violas according to Researchers).

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